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Virilidade, valentia e violência
Simões Lopes Neto,
Erico Verissimo e
Tabajara Ruas
ficcionalizam de
modo próximo cerca
de três séculos
de história do
Rio Grande do Sul
Ligia Chiappini
especial para a Folha
"A estória não quer ser História. A estória,
em rigor, deve ser contra a História"
João Guimarães Rosa
Três escritores, três épocas distintas, modos semelhantes de a história do Rio Grande e do seu povo
materializar-se em estórias, desde
sua formação, no final do século 17, até
meados do século 20. Estórias de guerra
e paz, dos sonhos de heroísmo ao desencanto de um mundo profundamente
transformado pela modernização. Estórias que poderiam sintetizar-se numa
reiteração insistente de virilidade, valentia e violência. Mas estórias e escritores
também muito diferentes, como diferente é o que se poderia chamar "espírito de
época", que cada um tenta apanhar a seu
modo.
O primeiro é João Simões Lopes Neto
(1865-1916), pioneiro, cuja obra completa (ou quase) sai agora numa bela edição.
Seus contos buscam, na tradição oral,
vestígios da formação híbrida do gaúcho
(cristão e árabe, índio, branco e negro) e
dos percalços da sua história, do ponto
de vista do peão velho Blau Nunes.
Benjaminianamente, ele guia o leitor
da cidade pelos caminhos do Rio Grande
e do seu passado: do povoamento à vida
nômade de preadores de gado, desta à
formação e desenvolvimento das primeiras estâncias, pouco a pouco cercadas e racionalizadas a custo do desaparecimento de um modo de vida e convivência tradicional que, nostalgicamente,
só resta relembrar, decodificando os sinais deixados na paisagem do pampa
transformado. No livro póstumo, "Casos
do Romualdo", é como se Blau Nunes
apresentasse o mesmo mundo pelo avesso. Esse mundo dos avessos exige a
transformação do próprio Blau, de "genuíno tipo crioulo riograndense", "guasca sadio", "perene tarumã verdejante",
"rijo para o machado e para o raio", "desempenado arcabouço" mesmo aos 88
anos, num antigaúcho, o caçador mentiroso, Romualdo, "baixinho e gordo",
"ruivo e imberbe", embora ainda "homem para as ocasiões". O Blau, assim
transformado num outro pampa e num
Rio Grande outro, não pode ser levado a
sério nem por ele mesmo, e suas estórias
agora se querem um pouco parecidas à
anedota.
Decadência
Concentrada em pequenos contos, que se conectam de modo fragmentário, a ficção de Simões Lopes contrasta, já quantitativamente, com
a do segundo autor aqui examinado, Erico Verissimo (1905-75). À sua vasta obra
pertence a trilogia "O Tempo e o Vento",
cuja última parte, "O Arquipélago", ocupa três volumes, completando a saga da
paradigmática família Terra-Cambará,
iniciada em "O Continente" e continuada em "O Retrato".
A trilogia percorre 200 anos da história
do Rio Grande do Sul e das suas relações
com o Brasil e o mundo, por meio da estória dessa família, sua formação, ascensão e decadência. "O Arquipélago" enfoca justamente a decadência e desvenda o
ponto de vista sob o qual é revisada essa
história, ou seja, a perspectiva de um dos
três filhos varões do dr. Rodrigo Cambará, o escritor Floriano Terra Cambará.
Alter ego de Erico, Floriano Cambará
conta uma história que, nessa última
parte, vai de 1920 a 1945, mas é narrada a
partir de um presente histórico, marcado
profundamente pelo encerramento da
chamada era Vargas, com o suicídio deste em 1954, quando se anunciam possibilidades de outros Brasis, apresentadas
ainda como uma espécie de enigma que
o narrador tenta decifrar.
Floriano pode ser lido como metáfora
das relações entre os intelectuais e o poder, recusando tanto a continuidade do
coronelismo quanto o engajamento partidário e a ortodoxia comunista (caminhos trilhados respectivamente por seus
dois irmãos). A alternativa liberal, representada por Floriano, ou o que poderíamos chamar de um certo humanismo
socialista, com que o próprio Erico costumava se identificar, seria híbrida, porque masculina e feminina, ao mesmo
tempo, na medida em que contrapõe a
frágil, mas firme, defesa da vida por parte
das mulheres à violência dos machos só
aparentemente fortes. Mas Floriano, como Erico, reconhece o seu "meio pertencimento" a esse "mundo de bárbaros".
Por isso mesmo, narrar a história da família é também repassar diversas iniciações de menino e moço, da iniciação sexual à iniciação guerreira. De ambas ele
não sai sem traumas e sem ressentimentos. O registro de suas impressões no
"Caderno de Pauta Simples", de onde
deriva o romance, é, simultaneamente,
vingança e terapia.
Fronteira
O terceiro escritor, Tabajara Ruas (1942), é aqui representado por
"Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez". Nesse livrinho aparentemente despretensioso, que tem características da
aventura infanto-juvenil, a história do
Rio Grande entra de modo mais indireto, ecoando o passado no presente, como
história de fronteiras, não apenas entre o
Brasil e a Argentina (a estória se passa
em Uruguaiana, cidade gêmea com Passo de los Libres), mas também entre o
passado e o presente, entre a violência e a
racionalidade, temperada de afetividade.
Trata-se da trajetória do contrabandista Juvêncio, filtrada pelas memórias de
um sobrinho que, já adulto, recorda os
acontecimentos do dia em que o tio volta
à Uruguaiana, de onde fugira havia mais
de sete anos, para morrer num cerco policial comandado por um tradicional inimigo, o delegado, ironicamente denominado Facundo. A chegada, o cerco, a resistência e a morte do contrabandista são
narrados paralelamente a uma partida
de futebol, da qual participam o menino
e seus colegas de escola. A batalha com o
time rival, dentro e fora do jogo, quando
se enfrentam jovens já marcados por atitudes machistas e arrogantes das elites
locais, é uma espécie de reprodução paródica das relações sociais tradicionalmente assimétricas, comandadas pela
violência.
Na estória do legendário tio ecoa a figura trágica de Jango Jorge, protagonista
do célebre conto "O Contrabandista", de
Simões Lopes, bem como a figura épica
do capitão Rodrigo, cujas aventuras o
menino lê avidamente no romance de
Erico Verissimo. Retalhos da vida de Juvêncio, legíveis nas lembranças do sobrinho, delineiam a figura como um gauchão, um dos últimos do velho estilo.
Qual Floriano Cambará, o narrador de
Tabajara Ruas rende homenagem a esse
gaúcho generoso, viril, valente e violento, mas também quer marcar, como Erico, o fim de uma era de afirmação do homem pela violência.
Por isso, no final do livro, embora lisonjeado por estar sendo tratado como
adulto pelo simpático e, ao mesmo tempo, sinistro rengo Maidana -companheiro de Juvêncio, que já planeja a vingança-, o menino não atende ao seu
convite, deixando de tomar um trago
com ele. Em vez disso vai refletir, contemplando o rio da fronteira no meio da
noite e desejando, vaga, mas firmemente, sair desse tempo-lugar para ser outra
coisa, talvez um escritor que, sem deixar
de carregar a sua história, relembraria o
passado para abrir perspectivas a um futuro outro, a serviço do qual se perfilam
narrativas como essa, nascidas de um vago remorso e marcadas pelo que um escritor contemporâneo de Tabajara Ruas,
Luiz Antonio de Assis Brasil, definiu como sendo a carga pesada da geografia e
da história do pampa, carga essa talvez
só aliviada na nova geração de escritores
que estariam a inventar outros Rio Grandes e outras estórias da história.
Ligia Chiappini é professora titular de literatura
brasileira no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim (Alemanha).
Obra Completa
1.087 págs., R$ 72
de Simões Lopes Neto. Já Editores/Sulina (av. Oswaldo Aranha, 440, conjunto 101, CEP 90035-190,
Porto Alegre, RS, tel. 0/xx/51/ 3311-4082).
O Arquipélago
1.151 págs., R$ 141 (três vols.)
de Erico Verissimo. Ed. Globo (av. Jaguaré, 1.485,
CEP 05346-902, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3362-2000).
Perseguição e Cerco a
Juvêncio Gutierrez
140 págs., R$ 25
de Tabajara Ruas. Editora Record (r. Argentina,
171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).
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