São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Virilidade, valentia e violência

Simões Lopes Neto, Erico Verissimo e Tabajara Ruas ficcionalizam de modo próximo cerca de três séculos de história do Rio Grande do Sul

Ligia Chiappini
especial para a Folha

 "A estória não quer ser História. A estória, em rigor, deve ser contra a História"
João Guimarães Rosa

Três escritores, três épocas distintas, modos semelhantes de a história do Rio Grande e do seu povo materializar-se em estórias, desde sua formação, no final do século 17, até meados do século 20. Estórias de guerra e paz, dos sonhos de heroísmo ao desencanto de um mundo profundamente transformado pela modernização. Estórias que poderiam sintetizar-se numa reiteração insistente de virilidade, valentia e violência. Mas estórias e escritores também muito diferentes, como diferente é o que se poderia chamar "espírito de época", que cada um tenta apanhar a seu modo. O primeiro é João Simões Lopes Neto (1865-1916), pioneiro, cuja obra completa (ou quase) sai agora numa bela edição. Seus contos buscam, na tradição oral, vestígios da formação híbrida do gaúcho (cristão e árabe, índio, branco e negro) e dos percalços da sua história, do ponto de vista do peão velho Blau Nunes. Benjaminianamente, ele guia o leitor da cidade pelos caminhos do Rio Grande e do seu passado: do povoamento à vida nômade de preadores de gado, desta à formação e desenvolvimento das primeiras estâncias, pouco a pouco cercadas e racionalizadas a custo do desaparecimento de um modo de vida e convivência tradicional que, nostalgicamente, só resta relembrar, decodificando os sinais deixados na paisagem do pampa transformado. No livro póstumo, "Casos do Romualdo", é como se Blau Nunes apresentasse o mesmo mundo pelo avesso. Esse mundo dos avessos exige a transformação do próprio Blau, de "genuíno tipo crioulo riograndense", "guasca sadio", "perene tarumã verdejante", "rijo para o machado e para o raio", "desempenado arcabouço" mesmo aos 88 anos, num antigaúcho, o caçador mentiroso, Romualdo, "baixinho e gordo", "ruivo e imberbe", embora ainda "homem para as ocasiões". O Blau, assim transformado num outro pampa e num Rio Grande outro, não pode ser levado a sério nem por ele mesmo, e suas estórias agora se querem um pouco parecidas à anedota.

Decadência
Concentrada em pequenos contos, que se conectam de modo fragmentário, a ficção de Simões Lopes contrasta, já quantitativamente, com a do segundo autor aqui examinado, Erico Verissimo (1905-75). À sua vasta obra pertence a trilogia "O Tempo e o Vento", cuja última parte, "O Arquipélago", ocupa três volumes, completando a saga da paradigmática família Terra-Cambará, iniciada em "O Continente" e continuada em "O Retrato". A trilogia percorre 200 anos da história do Rio Grande do Sul e das suas relações com o Brasil e o mundo, por meio da estória dessa família, sua formação, ascensão e decadência. "O Arquipélago" enfoca justamente a decadência e desvenda o ponto de vista sob o qual é revisada essa história, ou seja, a perspectiva de um dos três filhos varões do dr. Rodrigo Cambará, o escritor Floriano Terra Cambará. Alter ego de Erico, Floriano Cambará conta uma história que, nessa última parte, vai de 1920 a 1945, mas é narrada a partir de um presente histórico, marcado profundamente pelo encerramento da chamada era Vargas, com o suicídio deste em 1954, quando se anunciam possibilidades de outros Brasis, apresentadas ainda como uma espécie de enigma que o narrador tenta decifrar. Floriano pode ser lido como metáfora das relações entre os intelectuais e o poder, recusando tanto a continuidade do coronelismo quanto o engajamento partidário e a ortodoxia comunista (caminhos trilhados respectivamente por seus dois irmãos). A alternativa liberal, representada por Floriano, ou o que poderíamos chamar de um certo humanismo socialista, com que o próprio Erico costumava se identificar, seria híbrida, porque masculina e feminina, ao mesmo tempo, na medida em que contrapõe a frágil, mas firme, defesa da vida por parte das mulheres à violência dos machos só aparentemente fortes. Mas Floriano, como Erico, reconhece o seu "meio pertencimento" a esse "mundo de bárbaros". Por isso mesmo, narrar a história da família é também repassar diversas iniciações de menino e moço, da iniciação sexual à iniciação guerreira. De ambas ele não sai sem traumas e sem ressentimentos. O registro de suas impressões no "Caderno de Pauta Simples", de onde deriva o romance, é, simultaneamente, vingança e terapia.

Fronteira
O terceiro escritor, Tabajara Ruas (1942), é aqui representado por "Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez". Nesse livrinho aparentemente despretensioso, que tem características da aventura infanto-juvenil, a história do Rio Grande entra de modo mais indireto, ecoando o passado no presente, como história de fronteiras, não apenas entre o Brasil e a Argentina (a estória se passa em Uruguaiana, cidade gêmea com Passo de los Libres), mas também entre o passado e o presente, entre a violência e a racionalidade, temperada de afetividade.
Trata-se da trajetória do contrabandista Juvêncio, filtrada pelas memórias de um sobrinho que, já adulto, recorda os acontecimentos do dia em que o tio volta à Uruguaiana, de onde fugira havia mais de sete anos, para morrer num cerco policial comandado por um tradicional inimigo, o delegado, ironicamente denominado Facundo. A chegada, o cerco, a resistência e a morte do contrabandista são narrados paralelamente a uma partida de futebol, da qual participam o menino e seus colegas de escola. A batalha com o time rival, dentro e fora do jogo, quando se enfrentam jovens já marcados por atitudes machistas e arrogantes das elites locais, é uma espécie de reprodução paródica das relações sociais tradicionalmente assimétricas, comandadas pela violência.
Na estória do legendário tio ecoa a figura trágica de Jango Jorge, protagonista do célebre conto "O Contrabandista", de Simões Lopes, bem como a figura épica do capitão Rodrigo, cujas aventuras o menino lê avidamente no romance de Erico Verissimo. Retalhos da vida de Juvêncio, legíveis nas lembranças do sobrinho, delineiam a figura como um gauchão, um dos últimos do velho estilo. Qual Floriano Cambará, o narrador de Tabajara Ruas rende homenagem a esse gaúcho generoso, viril, valente e violento, mas também quer marcar, como Erico, o fim de uma era de afirmação do homem pela violência.
Por isso, no final do livro, embora lisonjeado por estar sendo tratado como adulto pelo simpático e, ao mesmo tempo, sinistro rengo Maidana -companheiro de Juvêncio, que já planeja a vingança-, o menino não atende ao seu convite, deixando de tomar um trago com ele. Em vez disso vai refletir, contemplando o rio da fronteira no meio da noite e desejando, vaga, mas firmemente, sair desse tempo-lugar para ser outra coisa, talvez um escritor que, sem deixar de carregar a sua história, relembraria o passado para abrir perspectivas a um futuro outro, a serviço do qual se perfilam narrativas como essa, nascidas de um vago remorso e marcadas pelo que um escritor contemporâneo de Tabajara Ruas, Luiz Antonio de Assis Brasil, definiu como sendo a carga pesada da geografia e da história do pampa, carga essa talvez só aliviada na nova geração de escritores que estariam a inventar outros Rio Grandes e outras estórias da história.


Ligia Chiappini é professora titular de literatura brasileira no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim (Alemanha).


Obra Completa
1.087 págs., R$ 72 de Simões Lopes Neto. Já Editores/Sulina (av. Oswaldo Aranha, 440, conjunto 101, CEP 90035-190, Porto Alegre, RS, tel. 0/xx/51/ 3311-4082).

O Arquipélago
1.151 págs., R$ 141 (três vols.) de Erico Verissimo. Ed. Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP 05346-902, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3362-2000).

Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez
140 págs., R$ 25 de Tabajara Ruas. Editora Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).



Texto Anterior: + livros: Jorro de sustos
Próximo Texto: + livros: O ponto de referência Lacan
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.