São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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O MAIS! TRAÇA O MAPA TENSO DA FORMAÇÃO DOS FUTUROS PADRES DA CIDADE DE SÃO PAULO, POLARIZADA ENTRE UMA INCLINAÇÃO "INTELECTUAL" E OUTRA MAIS "POPULAR", LIGADA AO PADRE MARCELO; NÚMERO DE VOCACIONADOS AUMENTA NA DÉCADA DE 90, MAS NÍVEL SOCIOECONÔMICO DIMINUI

VIDA DE SEMINÁRIO

Caio Caramico Soares
free-lance para a Folha

Na mesma hora em que Jesus, o Cristo, /sofreu a sede, sobre a cruz pregado, /concedia a sede de justiça e graça/ a quem celebra o seu louvor sagrado." Revezando-se em solos e partes corais, os seminaristas da casa de formação Bom Pastor, no bairro do Ipiranga, prosseguem a recitação da prece. Estão realizando a chamada oração da "hora média", que ocorre entre as 11h45 e as 12h todos os dias, "religiosamente". Após a oração, terão cerca de meia hora de almoço, no refeitório, para então se dedicarem a atividades de limpeza da casa, a estudos ou reuniões e à missa do final da tarde. Não são monges, mas quase tomam para si a divisa beneditina "ora et labora".
O seminário Bom Pastor foi um dos locais visitados pelo Mais! para verificar a formação do sacerdote católico hoje. Fundada em meados dos anos 80, é uma das quatro casas pelas quais essa formação transcorre dentro da Arquidiocese de São Paulo. Fica ao lado da Faculdade de Teologia Nossa Senhora de Assunção, principal instituto do gênero na cidade. Estudando no período matutino -o curso noturno é dedicado aos leigos-, os seminaristas que moram no Bom Pastor são aqueles que já chegaram à etapa final da preparação para o ingresso no clero, etapa constituída pelo bacharelado em teologia (ao longo de quatro anos), após a licenciatura em filosofia, "laica", que dura três anos (ou dois, noutras dioceses, sem oferecer o diploma de licenciatura).
É sinal dos tempos que esse tipo de tema vá para as páginas de jornal? É o que pensa o diácono (título correspondente à primeira ordenação de um clérigo, pouco antes de ele se tornar padre) Vandro Pisanesche, 27. Morador do Bom Pastor, ele diz: "Um seminário devia ser algo normal. Fazer uma reportagem sobre isso já mostra que se tornou algo de espetacular, de diferente, em nossa sociedade".
Projetada para no máximo 20 pessoas, sendo que 36 estudantes moram hoje no seminário, a superlotada capelinha do Bom Pastor é símbolo, nesses minutos de reza coletiva, de um sucesso de quórum que seria impensável há pouco tempo. Essa mesma tendência de alta nas vocações levará, aliás, a casa a ser remodelada e ampliada, até o final do ano, passando de uma capacidade total de 50 para 80 moradores. "Quando foi feito isso aqui, achava-se que poderia não ter muitas vocações, e o espaço poderia ser utilizado, se não houvesse seminaristas, para uma outra função. Mas a expectativa agora do novo cardeal-arcebispo [d. Cláudio Hummes] é de que tenha mais vocações, então por isso ele quer proporcionar esse novo seminário", justifica o reitor [diretor] da casa, padre José Miguel de Oliveira, 60.
A situação nos anos 80, quando foi erigido o Bom Pastor, de fato não autorizava muito otimismo. Vinha-se de uma década em que muitos padres haviam abandonado a batina, as vocações minguavam, tabus como a dedicação exclusiva e o celibato ameaçavam ruir.
Segundo os dados mais recentes do Ceris (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais), havia em 2000 um total de 13.824 seminaristas no Brasil. O número, praticamente idêntico ao de duas décadas anteriores (13.921), é significativamente maior do que o de candidatos em 1990 (9.358), razão pela qual é possível falar, senão num boom, ao menos em um movimento de recuperação após a grave crise de vocações da igreja brasileira. Na última década, o número total de padres no Brasil (que chegou, em 2000, à marca de 16. 772) cresceu 14,6%, o que confirma e acentua a tendência de alta já registrada entre 1980 e 1990 (13,6%) -embora aquém dos 27,2% de crescimento ao longo dos anos 60. Em comparação com 1980 e 90, o número de ordenações em 2000 é bem superior: 541 contra, respectivamente, 224 e 341.
A igreja ainda não considera os números ideais para dar conta de desafios como a concorrência dos evangélicos (que já correspondem, segundo o Censo do IBGE de 2000, a mais de 15% do total dos brasileiros, contra 73,8% de católicos, queda de dez pontos percentuais em relação a 1991). De todo modo, se, como dizem as Escrituras, a messe é muita, e os operários, poucos, ao menos eles já não se reduzem como na década de 1970, em que o total de presbíteros chegou a encolher 3,1%.
Como explicar esse milagre da multiplicação? Como entender que uma opção tão "institucional", tão supostamente cheia de privações e de grilhões, quanto a de ser padre sobreviva e dê sinais de um vigor novo, numa época propícia, no plano da religião, a sincretismos e "bricolagens" que permitem a um mesmo indivíduo, sedento por uma espiritualidade sem coações dogmáticas e morais, amanhecer numa vigília pascal católica e acabar a noite seguinte num terreiro?
Uma primeira explicação talvez esteja nessa própria "pós-modernidade religiosa". É o raciocínio seguido, por exemplo, por Silvia Fernandes, coordenadora do núcleo de pesquisas sociorreligiosas do Ceris, órgão oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Fernandes, que desenvolve doutorado sobre as motivações de seminaristas e noviças no Rio de Janeiro, diz que o "revival" das vocações é só uma das facetas do crescente apelo, especialmente entre os jovens, do desejo de ressacralização da vida, de contato com o divino, movimento também subjacente ao aumento de interesse por religiões orientais, esoterismo etc.
"Você tem ofertas múltiplas, um mundo no qual você pode escolher qualquer coisa. Isso para alguns dá a sensação de liberdade e para outros, a sensação de anomia. Afinal, quem sou eu nesse mundo de tantas ofertas? Eu preciso de alguma âncora, alguma segurança, e a vida sacerdotal vai dar isso [ao candidato seminarista], uma espécie de segurança interna", diz Fernandes. "Esses jovens [que aderem à vida consagrada] têm uma representação da juventude que passa muito pelo senso comum. Eles acham que a juventude é uma juventude perdida e sem Deus", sendo a vida religiosa o resgate possível e a saída desse espaço mundano.
O secretário-geral da CNBB, dom Odilo Pedro Scherer, observa que o esforço de promoção das vocações, que remonta ao início dos anos 80, se funda na descentralização e intensificação do trabalho nas paróquias do país e é uma reação a um período "em que muitos padres abandonaram o ministério, houve pouco incentivo às vocações, acreditava-se num outro modelo de padre que acabou não se concretizando. Calculava-se muitas vezes que o padre pudesse ser casado, ter uma profissão e que exercesse o ministério em meio expediente".


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