São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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A "CLERICIZAÇÃO DO CLERO"
E O AUMENTO DAS VOCAÇÕES

Marcado pelo "aggiornamento" (atualização), o espírito ecumênico e a aceitação das liberdades individuais e dos ideais da ciência e da democracia política e social, o Concílio Vaticano 2º (1962-65) é um dos mais importantes eventos da história moderna da igreja, inaugurado pelo papa João 23 e concluído, após a morte deste, por Paulo 6º. Com conseqüências fundamentais em todos os níveis da igreja, o concílio implicou também a emergência de um novo modelo de padre, descrito pelo teólogo Severino Dianich, no livro "Teologia do Ministério Ordenado", como "despojado das vestes sagradas, das insígnias, dos privilégios e de poder sobre a sociedade civil". Para tanto, defendiam-se, segundo texto publicado no site da Osib (Organização dos Seminários e Institutos do Brasil), medidas como "buscar posição e influência social através da conquista de diplomas para garantir uma profissão civil qualificada" e "casar-se para deixar de ser considerado estranho e levar uma vida normal como qualquer cidadão". Os tempos porém são outros, dentro e fora da igreja. O atual pontificado de João Paulo 2º implicou o esvaziamento da retórica politizada que contagiava expressivo número de teólogos e setores da hierarquia e recolocou em pauta problemas tingidos de forte teor moral, como o aborto, o homossexualismo, a camisinha, a clonagem. A igreja de João Paulo 2º chama a atenção pelo esforço de se diferenciar, de impor sinais de resistência, de contramão, ante os costumes e inclinações hoje em voga na sociedade, do uso de preservativos ao futebol aos domingos (motivo de recente queixa do Sumo Pontífice). Daí não causar estranheza que o processo de formação dos seus novos quadros volte a enfatizar signos de separação do seminarista em relação ao mundo comum. O sociólogo Luiz Roberto Benedetti, professor na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, define como "característica mais importante" da formação dos seminaristas hoje "o isolamento do "mundo dos homens': trabalho, negócios, política e sexualidade". Para ele, trata-se da "formação de um mundo auto-suficiente, que acredita ser capaz de conferir identidade a quem não é "ainda" padre e não se vê nem é visto como leigo. Assume uma identidade dada pela instituição que raramente corresponde aos seus anseios, uma vez que sua marca é burocrático-disciplinar. O seminarista é isolado do mundo para ver "se pode ser padre". Há enquadramento, controle, monitoração e, sobretudo, a dependência, provocada pelo afastamento do mundo do trabalho. Paradoxalmente, essa situação pode favorecer a mobilidade social pelo acesso aos estudos". A esse propósito, outro diácono do Bom Pastor, Benedito Medeiros da Silva, 58, critica a gestão de d. Paulo Evaristo Arns à frente da Arquidiocese (1970-1998) por, segundo ele, não exigir, na época, que o candidato passasse todo o tempo dentro do seminário. "O seminário", diz Benedito, o mais velho dentre os que estão para se tornar padre na Arquidiocese -aposentou-se como escrivão da Polícia Federal, há dois anos-, "é bom para ver se o candidato vai saber conviver com as pessoas da paróquia; aqui é uma experiência, o reitor analisa que tipo de pessoa você é". D. Paulo, em entrevista ao Mais! (leia depoimento do hoje arcebispo emérito de São Paulo sobre seus tempos de seminarista, à pág. 11), disse que seguia, sim, a regra do internato, mas que "havia exceções, por exemplo, o Júlio Lancelotti [então seminarista arquidiocesano] precisava cuidar da mãe. Alguns jovens precisavam dedicar-se a outras tarefas próprias deles e não podiam ser retirados de sua casa". Na visão de Benedetti, o perfil da formação dos padres é uma extensão do que ele conceitualizou como o "novo clero", cuja "novidade" é ser, na verdade, muito similar ao predominante antes do Vaticano 2º: "O novo clero", diz ele, numa tautologia proposital, "é clerical". "Faz questão de afirmar seu poder de produtor e administrador dos bens de salvação. Quer, como diz Pierre Bourdieu, o monopólio da gestão do sagrado. Busca o que distingue, o que separa, o que é exclusivo. Afirma-se não pela capacidade de diálogo, de confronto com o mundo, mas sim por aquilo que só o padre pode fazer porque só ele tem o poder legitimamente conferido". Benedetti observa ainda que o aumento de vocações no Brasil é fenômeno que não pode ser generalizado em escala mundial. Segundo o professor da PUC de Campinas, trata-se, na verdade, de uma tendência concentrada em países da América Latina e da África e que é contrastada pela crise prolongada do recrutamento sacerdotal em outras áreas, em especial no próprio berço histórico do catolicismo, a Europa.

Largar pai e mãe
A geopolítica da consagração sacerdotal, ao mostrar o Terceiro Mundo como campo mais fértil hoje à semeadura de novas vocações, ao menos levanta a suspeita de uma possível intervenção de fatores socioeconômicos na "rejeição religiosa do mundo" por parte de quem se dispõe a largar pai e mãe, assim como a possibilidade de mulher e filhos, para seguir a Cristo dentro do ministério presbiteral.
De fato, os dados do Ceris mostram que não é só impulsionado pelo "Primeiro Motor" divino, ou pelo que são Paulo chamava de "gemidos inefáveis" do Espírito Santo,que alguém se decide pelo sacerdócio hoje no Brasil. Segundo Silvia Fernandes, a exclusão social, ainda que um "fator subliminar", é outro "motor" importante aqui: "Ser padre é também uma forma de sentir-se integrado socialmente numa sociedade que exclui", o que seria comprovado pelo fato de a grande maioria provir de cidades do interior, ser de famílias de agricultores e ter nenhuma ou pouca (e ruim) experiência no mercado de trabalho das grandes cidades.
O padre José Miguel de Oliveira reafirma o diagnóstico, constatando que, entre seus pupilos, raramente alguém vem da classe média de São Paulo e, quando vem, é filho de família em dificuldades financeiras: "A classe média que tem dinheiro vive uma expressão religiosa descomprometida. Vai [à igreja] quando dá certo, quando tem vontade. Embora esteja sendo arrebanhada pela renovação carismática, isso ainda não gerou nessa classe uma compreensão do valor do sacerdócio".


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