São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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A RENOVAÇÃO CARISMÁTICA E
O IMPACTO DO "PADRE-ESPETÁCULO"

Iniciada nos EUA em fins dos anos 60, a Renovação Carismática Católica (RCC) foi trazida para o Brasil pouco depois, adquirindo maior projeção pública a partir dos anos 90, quando a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com a marca da forte interseção de fé e política, entram em refluxo. Dotada de uma forma de culto e de espiritualidade que lembra muito o neopentecostalismo, ela se afirmou como uma das tendências mais importantes dentro da igreja, embora o número de adeptos, que batia na casa dos 4 milhões em meados dos anos 90, não esteja crescendo tão velozmente quanto se supunha, segundo afirma um especialista na questão, o sociólogo e professor da USP Reginaldo Prandi.
A proveniência de classes desfavorecidas, em contraste com o que se via em épocas anteriores, ajuda a entender o fenômeno sintetizado pelo padre Antonio Manzatto, diretor da Faculdade de Teologia de Assunção: "O pessoal chega do ensino médio com um nível intelectual muito baixo. Na filosofia e na teologia a gente tem que acelerar um bocado a coisa, por isso os seminaristas vivem em regime de internato, para poderem se consagrar, entre outras coisas, ao estudo, que muitas vezes é para recuperar o tempo perdido". Uma das conseqüências desse déficit, segundo documento da CNBB, é a tendência ao "alheamento" do novo sujeito eclesial em relação a setores nevrálgicos da sociedade contemporânea, como os formadores de opinião, cientistas, professores universitários, empresariado.
Surge, nesse quadro, um tipo de "influência" social da igreja marcado pelo que Reginaldo Prandi chama de modelo do "padre-espetáculo" ou "padre de auditório", que canta, dança e usa uma linguagem "a la Silvio Santos" diante das câmeras de televisão. Esse papel, no avesso do que ele define como "padre intelectual", é hoje associado em especial, evidentemente, à figura do padre Marcelo Rossi, surgido das fileiras da Renovação Carismática Católica. "Após o movimento carismático, parece que aumentou o número de seminaristas e de pessoas interessadas. E o modelo que eles têm na cabeça é o desses padres que fazem sucesso, não é mais o padre que estuda latim, que entende de teologia", diz.
Autor de livros como "Um Sopro do Espírito", em que estuda os carismáticos, ele diz que o fenômeno do padre Marcelo exprime uma reação da hierarquia católica contra o caráter fortemente "leigo" do movimento carismático, originalmente voltado a práticas (grupos de oração e de cura etc.) nas quais o padre tinha papel reduzido. Hoje, ao contrário, há padres e até bispos, como d. Fernando Figueiredo (da diocese de Santo Amaro, em que atua o padre Marcelo) muito "receptivos" aos carismáticos, e a linha espiritualista e individualista dessa corrente se vê redimensionada na atuação de pregadores que falem mais diretamente às massas populares do que aos grupos de classe média, em que a Renovação Carismática tinha seu principal nicho.
Isso explica por que, segundo Prandi, o advento dos carismáticos não tende a acarretar uma mutação do perfil socioeconômico de origem dos seminaristas: "Quando o modelo é o padre intelectual, ele está mais próximo dos ideais universitários das classes médias. Esse outro padre, que tem habilidades mais artísticas, consegue ter um apelo maior para as camadas mais pobres. Os seminários hoje têm alunos que são de extração social mais pobre do que há 20 ou 30 anos, portanto famílias de "background" intelectual e escolar mais baixo, o que traz mudanças profundas em tudo aquilo que é a religião".
Prandi diz que há em boa parte dos seminários atuais um investimento em "formar padres que sejam capazes de falar para as massas, de tocar violão, de expressão corporal". O estímulo a esse tipo de mentalidade de formandos e formadores, porém, está longe de ser consensual no interior da igreja.
Santo Amaro é a diocese em que se localiza o Santuário do Terço Bizantino, do padre Marcelo. De 60 a 70% dos seminaristas locais são adeptos da Renovação Carismática. O curso passou por um recente corte de três para dois anos na filosofia. "É pouco tempo", admite o diretor, padre Vicente Gilson dos Santos, embora o curso tente ser "bem intensificado". Só o currículo do primeiro ano, segundo anuncia o site da diocese, envolve teodicéia (aproximadamente, a doutrina de justificação da existência de Deus e da bondade divina ante o fenômeno do mal no mundo), filosofia da natureza, metafísica, história da filosofia antiga e medieval, estética, sociologia, psicologia e antropologia filosófica. O segundo ano promete ao candidato a padre noções em matérias como ética, lógica, teoria do conhecimento, história das filosofias moderna e contemporânea.
Formado ele próprio há pouco mais de um ano em Santo Amaro, Santos diz que o "carisma" da música é muito difundido entre os seminaristas daquela diocese, vindos na maioria dos casos de grupos de oração em que esse recurso é muito utilizado, o que torna desnecessário que o próprio seminário invista nesse tipo de prática. E ele completa: "Os seminários estão lotados por causa da Renovação [Carismática]".
Ao contrário do que se passou na arquidiocese paulistana, o padre Valdeci Toledo, reitor do seminário de teologia de Santo Amaro, não aceitou -após vários adiamentos- o convite do Mais! para uma entrevista e o pedido de acesso a alunos e a algumas aulas do curso. Mas informou que seu seminário conta com 45 candidatos -nove a mais do que o de Bom Pastor- e que estão previstas para este ano nove ordenações (no Bom Pastor, em que as ordenações dão-se no início de cada ano, foram seis os novos presbíteros em 2004).
O reitor tenta relativizar a influência de padre Marcelo ali: "O número de vocações não está ligado a ele. Dentre nossos seminaristas, só alguns vêm do Santuário do Terço Bizantino". O padre Santos diz que entrou para o seminário sem conhecer o padre Marcelo.
Segundo o reitor, além das diferenças e especificidades, toda a formação ali ministrada segue os princípios -a chamada "ratio fundamentalis"- estabelecidos pela CNBB em consonância com o Vaticano. Para ele, a opção por uma formação específica atende à recomendação da CNBB de que os cursos seminarísticos se adaptem às realidades específicas das diferentes dioceses da igreja no Brasil.


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