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Caldeira fervente
Em nova obra, historiador diz que esquerda brasileira
se enganou
na interpretação
do Brasil e afirma que país
não era refém
da metrópole
RAFAEL CARIELLO
DA EQUIPE DE EDITORIALISTAS
Processos de revisão
histórica exigem trabalho redobrado.
Não basta chamar
atenção para fatos
que antes passavam despercebidos ou explicar, de maneira
inédita, o passado.
Uma vez estabelecida a nova
interpretação, é hora de perguntar: como foi possível que
os pesquisadores de décadas
passadas não vissem isso? O
que levou historiadores, por
tanto tempo, a se "enganar"?
Já faz mais de duas décadas
que a visão sobre o passado colonial brasileiro tem mudado
radicalmente. O novo livro de
Jorge Caldeira, "História do
Brasil com Empreendedores",
cumpre o importante trabalho
de sintetizar e divulgar boa
parte dos trabalhos acadêmicos recentes que contribuíram
para essa empreitada.
Mas vai além, ao buscar uma
explicação para a vigência da
interpretação anterior, que
prevaleceu na maior parte do
século passado.
Ficou para trás, como mostra
Caldeira, a ideia de uma América portuguesa pobre e espoliada pelas metrópoles europeias.
Passou a prevalecer a interpretação de uma economia
mais dinâmica e uma sociedade muito mais complexa do
que as explicações que colocavam ênfase na dependência colonial deixavam ver.
As razões do atraso do país
são mais recentes e determinadas não pela transferência de
recursos para Portugal, mas
pelas escolhas que uma elite
política e econômica, residente
no Brasil, fez.
A contribuição inédita de
Caldeira, autor da importante
biografia de Irineu Evangelista
de Sousa, "Mauá - Empresário
do Império" (Cia. das Letras),
está na segunda tarefa, para a
qual é dedicada metade de seu
novo livro.
Ele diz ter descoberto, de
maneira fortuita, uma espécie
de véu ideológico no trabalho
de Caio Prado Jr. (1907-90),
pai das explicações hegemônicas sobre o país entre os anos
de 1930 e 1980.
Há mais de uma década, enquanto pesquisava para seu
doutorado em ciência política,
na USP, ele notou semelhanças
impressionantes entre trechos
das obras de Prado Jr. e do historiador conservador Oliveira
Vianna (1883-1951).
A visão que Prado Jr. -autor
marxista e referência para gerações de pesquisadores de esquerda- tinha do Brasil havia
sido cunhada, em grande medida, por Vianna, pensador antiliberal e crítico da democracia
representativa, diz.
Parte da esquerda brasileira,
portanto, seria herdeira direta
do pensamento conservador da
virada do século 19 para o 20.
Ambas, às vezes pelas mesmas razões, às vezes por motivos diversos, leram mais de
quatro séculos de história como a narrativa de um país cronicamente inviável.
Foi Vianna, antes de Prado
Jr., quem colocou o "latifúndio" no centro de seu modelo
explicativo sobre as razões do
atraso brasileiro. Para o conservador, as consequências da
importância exacerbada da fazenda exportadora eram sobretudo políticas.
A sociedade brasileira se via
reduzida à oposição entre senhores e escravos, e entre eles
uma massa de homens dependentes dos proprietários, incapazes de se associar livremente
e criar o substrato social necessário para a vigência, mais tarde, da democracia.
Daí por que o modelo liberal
-incluindo o voto direto- era
estranho ao país e não deveria
ser importado, dizia Vianna.
Prado Jr. foi diretamente influenciado por esse modelo.
O capital ficava aqui
Caldeira compara trechos
extensos das obras dos dois autores para mostrar os empréstimos interpretativos do historiador marxista -que, no entanto, centrou esforços na explicação das consequências
econômicas do "latifúndio
agrário-exportador".
Por ser montada sobre uma
base material de grandes fazendas voltadas para o comércio
externo, a América portuguesa
-segundo o modelo de Prado
Jr. e da explicação hegemônica
sobre o país depois dele- era
pobre, dependente, desprovida
de lógicas política e ideológica
próprias tanto quanto de dinamismo econômico interno.
Versão falhada, mero simulacro, da sociedade europeia e,
mais tarde, da americana.
Pesquisas recentes, citadas
por Caldeira, demonstram que
a explicação estava errada. O
país não só dispunha de um dinâmico mercado interno já no
século 18 como boa parte da riqueza que sua elite acumulava
não era transferida para Portugal -ao contrário, era reinvestida na própria colônia.
Do ponto de vista social, a
maior parte da população não
era composta por senhores ou
escravos, mas por homens livres, mestiços, que estavam
longe de ser meros agregados
dos poderosos.
Muitos eram lavradores ou
comerciantes, e a forma mais
comum de propriedade não era
o latifúndio, mas o sítio, o pequeno pedaço de terra trabalhado pela família. Apenas um
décimo da população livre era
proprietária de escravos.
Forçando bastante a analogia
com os tempos atuais, é como
se as pesquisas das últimas décadas tivessem descoberto uma
enorme "classe C" no passado
colonial do país -além de uma
pujante elite financeira.
São esses os "empreendedores" da obra de Caldeira: não só
os traficantes de escravos e
"banqueiros" que se encontravam no topo da pirâmide econômica mas também os pequenos comerciantes e lavradores,
bandeirantes e proprietários de
pequenas manufaturas.
O comércio era intenso, a colônia enriqueceu e, ao final do
século 18, o Brasil já era indubitavelmente mais rico que sua
metrópole, Portugal.
O caminho para a acumulação não estava na produção em
grande escala de mercadorias,
como viria a acontecer em todo
o mundo depois da Revolução
Industrial. Na América portuguesa, exatamente como nos
países europeus do Antigo Regime, eram os grandes comerciantes que enriqueciam.
Acumulavam recursos e emprestavam dinheiro aos proprietários. Mas também havia
comércio e investimento em
menor escala, espalhados de
forma capilar pela colônia.
Eram esses canais que permitiam a acumulação de recursos, o reinvestimento na produção e o enriquecimento material -para falar em termos
atuais, o "crescimento do PIB".
Não se trata ainda de capitalismo. Não havia relações contratuais ou de troca monetária
em larga escala, como hoje. Para investir, e enriquecer, os
"empreendedores" dependiam
de relações de confiança, da
teia de vínculos sociais que
criavam.
Ao casar, criar laços de compadrio ou de dependência, a sociedade colonial se reproduzia
segundo uma lógica que não era
"utilitarista", que não visava
simplesmente o lucro, mas que
não excluía o ganho material.
Fiado e dote
Esse modelo misto já foi flagrado por outros historiadores,
e Caldeira tenta uma sistematização para o caso brasileiro.
O adiantamento de bens ou
recursos, a instituição do "fiado", o empréstimo e o dote criavam canais que levavam ao
enriquecimento do credor ao
mesmo tempo em que se baseavam em relações pessoais.
Sem esse "capital", não se poderia explicar de onde o interior da colônia tirava recursos
para se reproduzir materialmente, para ampliar seus negócios -da criação de gado ao
plantio de alimentos para a
venda no mercado interno.
Como se vê, há analogias óbvias, da "classe C" à expansão
do crédito, entre essa interpretação renovada do Brasil Colônia e certa euforia econômica
atualmente vivida pelo país.
Mas seria um erro fazer de
uma o reflexo da outra. As pesquisas que mudaram a compreensão sobre o passado do
país tiveram seu grande impulso em um momento completamente diferente, entre o final
dos anos 80 e início dos 90,
quando o ambiente político e
econômico no Brasil era outro.
Não será surpresa, no entanto, se a atual atenuação do secular complexo de vira-latas dos
brasileiros contribuir para uma
maior difusão desses trabalhos.
HISTÓRIA DO BRASIL COM EMPREENDEDORES
Autor: Jorge Caldeira
Editora: Mameluco (tel. 0/ xx/11/
3123-0110)
Quanto: R$ 49 (336 págs.)
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