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Senzala geral
Qualidade de vida de escravos e homens livres, ambos vivendo em condições precárias, pouco diferia na América portuguesa
MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA
Historiador tem mania de origem. Talvez porque os primeiros a se interessarem pelo
tempo o fizeram quando às línguas bastava flexionar passado
e presente, e tudo se encontrava de antemão em seu devido
lugar. O passado explicava e determinava.
Vício pior veio depois, quando de recitada a história virou
escrita. Enquanto não passou
de mais um gênero literário, ela
conseguiu guardar muito da
antiga flexibilidade argumentativa. Podia-se escrever sem
temor, por exemplo, que a profecia guiara certo líder ou que
filosófica deveria ser a forma
de narrar algumas trajetórias.
Foi necessário muito tempo
para que, convertidos em cientistas sociais, os historiadores
se vissem obrigados a de tudo
reter apenas o essencial e laico.
Por vezes a transição se fez
isolando seus objetos em verdadeiros chiqueirinhos binários, do tipo civilizado/primitivo, capitalismo/feudalismo,
moderno/arcaico, direita/esquerda. Mas, quando a ambigüidade transbordava o indivíduo e impregnava o coletivo, operar com códigos binários levava muitos estudiosos a jogar
fora a água e o bebê.
Tome-se o cativo como
exemplo. Simultaneamente
mercadoria e pessoa, nele a
ambigüidade se inscreve como
nódoa, não cabendo ao historiador transformá-la em "problema" a ser resolvido.
Mistura ambígua
De sua humanidade fala a família escrava, espaço de afirmação e de ressignificação cultural. Da condição mercantil dá a conhecer uma cifra eloqüente, pinçada de Moses Finley
(1912-1986): quando já não havia tráfico externo, um escravo
do sul dos EUA era comprado e
vendido em média 1,4 vez durante a vida.
Se ambígua era a condição
cativa, não é razoável que as sociedades escravistas pudessem
se reduzir à aporia cativeiro
versus liberdade.
Como na propagação de círculos concêntricos em água
maculada por sólido, o lusco-fusco encarnado no preto escravizado se espalhava por toda
a sociedade, bordando as relações com os amos, enodoando
os contatos com os outros homens livres e cativos, plasmando instituições formais e informais, desviando a sociedade da
"civitas".
Servos livres
Os escravos representavam
em média um terço da população da América portuguesa, padrão semelhante ao do mundo
greco-romano. Por referir-se a
cativos concentrados em poucas mãos, desse dado resulta
que a maior parte da população
colonial era constituída por homens e mulheres pobres e remediados.
Maioria livre? Sem dúvida,
mas apenas na letra da lei. Pois
se, como testemunhou o estatístico Gregory King (1648-1712), no berço do individualismo -a Inglaterra-, 40% das pessoas ainda estavam submetidas a alguma sorte de servidão, que dizer da profusão de
mestiços desapossados a errar
pela fronteira mais longínqua
da Europa?
Do outro lado, é certo que a
maior parte dos escravos nascidos ou desembarcados no Brasil morria como homens-mercadorias. Mas documentos referentes à mobilidade ascendente, da qual a alforria podia
representar apenas o primeiro
passo, resultaram em grandes
livros exatamente porque desvelaram variações de cativeiro
que embaralhavam a herança
jurídica romana.
Neles encontramos a escrava
dona de apenas um quarto de si,
pois três dos quatro amos que a
herdaram recusavam-se a alforriá-la. Ou aquela que, tendo
comprado a liberdade a prestação, era por alguns juízes considerada uma devedora livre e,
por outras, cativa até a quitação
da última parcela -é óbvio, o
estatuto dos filhos nascidos durante o processo também dividia os magistrados.
Papéis urbanos tecem enredos ainda mais inusitados: escravos pagando pela liberdade
a amos igualmente escravizados. Escravos escravistas vivendo longe das casas de seus
proprietários, sujeitos ao pago
de jornais semanais ou mensais, as únicas ocasiões em que
ambos se encontravam. O dia-a-dia de alguns cativos era marcado por tanta autonomia que
às vezes era preferível "melhorar de vida" dentro do cativeiro
do que buscar superá-lo.
Fotogramas
A historiadora Cacilda Machado demonstrou que recortes geracionais podem desvendar outros intrincados aspectos. E que, de quebra, tem razão
o britânico Peter Burke ao insistir na importância de estudar os casos de mobilidade descendente.
Ela descobriu no sul da América portuguesa de fins do século 18 uma família formada pelo
escravo Jerônimo e pela índia
Verônica, cujos cinco filhos
(Eusébia, Caetano, Micaela,
Antonia e Antonio do Carmo)
eram todos livres -a prole herdava o estatuto da mãe.
Um dos filhos de Eusébia
uniu-se a uma escrava em 1814,
razão pela qual os netos de Eusébia retornaram ao cativeiro
do qual a avó se livrara por ser
filha de Verônica. Antes, em
1812, o filho de Caetano tomara
por cônjuge outra cativa, pelo
que também Caetano viu seus
netos voltarem à escravidão da
qual escapara.
Se tomarmos essas trajetórias individuais e de linhagens
não como fotografias, mas como fotogramas que compõem
vários filmes, veremos que seus
atores vegetavam no mesmo
cenário de pobreza em que chafurdava a maioria dos homens
livres.
Talvez tenha surgido ali -na
pobreza, e não nos estatutos jurídicos ou nas etnias em particular- a ambigüidade que se
tornou o outro nome do Brasil.
MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .
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