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O hedonismo fraturado
Associated Press
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Bonecas Barbie empilhadas em loja de Nova York |
Sociólogo diz que o indivíduo vive sob a ameaça da "colonização da existência", ataca Naomi Klein e aponta
a pobreza e a educação como
os grandes problemas hoje
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
Depois da surgimento do capitalismo
de massa, no fim do
século 19, e da "sociedade de abundância", no pós-guerra, o mundo vive hoje uma nova forma
de consumo, iniciada nas duas
últimas décadas e marcada pela oferta incessante de produtos em escala e intensidade jamais vistas.
Nesta nova "era do hiperconsumo", o apelo ao consumismo
entranhou-se no cotidiano de
toda a pirâmide social -ricos,
pobres e classe média- e moldou uma forma inédita de relacionamento do indivíduo consigo mesmo e com o outro
-para o bem e para o mal.
Essa é a tese defendida pelo
sociólogo francês Gilles Lipovetsky, 61, em seu recém-lançado "Le Bonheur Paradoxal"
[A Felicidade Paradoxal, ed.
Gallimard, 378 págs., 21 euros,
R$ 60], ainda sem previsão de
publicação no Brasil.
Em seu estilo verborrágico e
coalhado de exemplos, o sociólogo faz a defesa do consumo
como forma de terapia contra
as frustrações cotidianas -"a
superficialidade é necessária"-, mas alerta que, no século 21, ele está se aproximando
perigosamente de uma forma
de totalitarismo, que "coloniza
as existências" dos indivíduos.
De um lado, uma poderosa
terapia que ajuda a afastar as
frustrações diárias; de outro,
um mecanismo de produção de
ansiedade em um mercado cuja razão de ser é a contínua
oferta de "novidades" -de que
são exemplo as novas e polêmicas chuteiras do atacante brasileiro Ronaldo, recauchutadas
pelo fabricante a partir do modelo anterior, mas cujo preço
mais que dobrou.
Caminhando o tempo todo
no fio da navalha em suas argumentações, Lipovetsky diz que
o hiperconsumo encurtou as
diferenças entre as classes sociais, mas, ao mesmo tempo,
passou a se nutrir delas. Pois,
afirma, ao estimular a compulsão pela compra como objeto
de desejo, a sociedade de hiperconsumo leva as pessoas com
menos renda a se tornarem, na
ausência de meios materiais,
consumidoras apenas potenciais -só "na imaginação".
A conseqüência dessa impossibilidade é "a delinqüência, a
violência, a criminalidade", diz
o sociólogo -curiosamente
aproximando-se da opinião do
governador de São Paulo, Cláudio Lembo, para quem "o consumismo estragou o Brasil"
(Folha, 31/5).
Lipovetsky bate de frente
com as teses de uma obra emblemática da crítica à fetichização do consumo, lançada em
2000: trata-se de "Sem Logo"
(Record, da canadense Naomi
Klein. Ao enfatizar a "tirania"
das marcas na sociedade, ela
não leva em conta que as pessoas "dispõem de liberdade"
para escolher; consumo não é o
equivalente do facismo", diz o
professor da Universidade de
Grenoble.
Na entrevista abaixo, concedida por telefone de Paris, o autor de "A Terceira Mulher"
(Cia. das Letras) e a "A Sociedade Hipermoderna" (ed. Barcarolla) começou falando da "medicalização" do consumo, como
"terapia cotidiana".
FOLHA - Por que o hiperconsumidor é alguém que vive uma relação
ambígua e quase esquizofrênica
com o prazer, como diz em seu livro?
GILLES LIPOVETSKY - Porque o
consumo se tornou uma terapia cotidiana, funcionando como uma espécie de droga psicológica: faz esquecer, faz mudar
de ares. Assim, ele é ao mesmo
tempo uma busca de prazer
-viajamos nas férias, decoramos a casa, vamos aos restaurantes- e uma forma de expulsar a angústia e a ansiedade.
FOLHA - Esse é o lado positivo do
consumo?
LIPOVETSKY - Sim, mas há outros
aspectos, que são negativos. Vivemos em um universo em que
as referências se evaporaram
ou ficaram desreguladas.
A própria obesidade é uma
conseqüência do hiperconsumo, porque ela destrói estruturas, referências e tradições sociais e culturais. Outrora, comia-se em horário fixo; hoje,
em uma cidade como São Paulo, por exemplo, pode-se comer
qualquer coisa a qualquer hora.
Segundo pesquisas realizadas na Califórnia, um em cada dois
norte-americanos não sabe o
que é uma refeição equilibrada.
Sabe-se também que uma porcentagem significativa da população da França e dos Estados Unidos não faz nenhum
exercício físico. Em uma vida
que é completamente hedonística, tudo leva à facilidade. As
pessoas assistem ao futebol na
TV, mas não o praticam, assistem ao Carnaval na TV, mas
não vão às ruas "pular".
Então, temos modos de vidas
que são completamente desregulados, em que há excesso de
todos os lados. Há excesso de
comida, excesso de gordura, excesso de ócio.
FOLHA - Essa desregulação é conseqüência direta da falência dos
grandes sistemas -sociais, religiosos, políticos?
LIPOVETSKY - Sim, mas foi o hiperconsumo que exacerbou tal
desregulação. Porque existe
uma oferta permanente, uma
estimulação contínua. Mas há
um segundo aspecto muito importante -e negativo.
O sistema de hiperconsumo
hedonístico desregulou totalmente o sistema de educação.
Cada vez mais você tem jovens
e mesmo crianças agitadas, que
não conseguem se controlar.
Os mais desfavorecidos também são hiperconsumidores,
embora apenas na cabeça
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Mas por quê? Porque os pais
hoje não são mais capazes de
lhes definir o sentido de limite,
incapazes de estruturar seu
comportamento. Há crianças
que passam, diariamente, cinco
horas diante da TV simplesmente porque os pais não conseguem lhes dizer "não". Os
pais hoje têm medo de frustrar
os filhos. Essa é uma conseqüência do hiperconsumo.
FOLHA - E por que os pais não conseguem dizer "não"?
LIPOVETSKY - Porque os valores
hedonistas, o culto da felicidade, se tornaram centrais. Então, teme-se que a criança se
frustre, que não seja feliz.
FOLHA - Os pais são hoje uma exacerbação do Maio de 68?
LIPOVETSKY - Exatamente, mesmo sem sabê-los, eles são "soixante-huitards" [referência aos
manifestantes de Maio de 68].
Os pais se tornaram fracos.
Assistimos hoje a uma falência
do sistema de educação, e acredito que esse é um enorme problema e um dos grandes desafios para o século 21. Esse aspecto também se pode detectar
entre as pessoas mais pobres,
que são completamente obcecadas pelo consumo.
O consumo em si não é negativo, não é em si um drama, mas
assim se torna quando invade
completamente a existência.
Quando pessoas pobres não
têm como pagar a eletricidade,
mas compram um aparelho de
TV, quando as pessoas não conseguem comer bem, mas gastam dinheiro para comprar
produtos de marca -um tênis
Nike, por exemplo-, vive-se
uma situação louca. Nesse sentido, o consumo colonizou as
existências.
Não sou contra o prazer do
consumo. O consumo é bom, a
superficialidade é boa, temos
necessidade deles. Não é preciso ser moralista, como o são os
marxistas. Mas sou contra o totalitarismo do consumo, que
impede o desenvolvimento dos
outros aspectos necessários à
existência. Porque o homem é
alguém quem pensa, que crê,
que deve se superar. Ele não
pode ser simplesmente um
"homo consumericus".
FOLHA - Pode-se dizer, então, que
existe uma dialética entre autonomia e dependência na sociedade do
século 21?
LIPOVETSKY - Não sei se dialética, mas certamente uma coexistência. Porque hoje temos
consumidores que são mais livres do que antigamente, mais
autônomos porque mais bem
informados; os códigos sociais
de antigamente são menos fortes e, de modo geral, pode-se,
viver de acordo com os seus desejos. Tem-se à disposição uma
oferta de consumo muito diversa, e isso é bom.
Mas, ao mesmo tempo, há
também uma dependência dos
indivíduos em relação ao consumo. E dependência e autonomia andam juntas hoje. Há 50
anos, o consumo era algo relativamente pequeno na vida das
pessoas. Vivia-se com muito
pouca coisa; já, hoje, há carros,
telefones, computadores, viagens para toda parte, o que leva
as pessoas a tornarem-se escravas do consumo.
É por isso que falo de "felicidade paradoxal", porque, ao
mesmo tempo, há mais autonomia e menos autonomia.
FOLHA - Mas esse hiperconsumo
não é para todos. Em um país como
o Brasil, por exemplo, parcelas expressivas da população estão alijadas do acesso a vários produtos...
LIPOVETSKY - Mas o problema é
que a sociedade de consumo
cresce par a par com o crescimento das desigualdades. E aí
reside um verdadeiro drama
porque, se é um fato que a pobreza sempre existiu, hoje as
pessoas mais desfavorecidas
também são hiperconsumidoras, embora apenas na cabeça.
FOLHA - Apenas na imaginação?
LIPOVETSKY - Sim. Assim como
todos os demais, as pessoas
com menos renda também
querem marcas, a moda, a televisão, o iPod... Elas também
querem a vida hedonística, e isso torna as coisas mais complicadas, pois nem sempre conseguem o que desejam.
FOLHA - E quais as conseqüências
sociais dessa impossibilidade de hiperconsumir?
LIPOVETSKY - A delinqüência, a
violência, a criminalidade. As
pessoas não querem viver mal,
elas também querem participar
da sociedade de hiperconsumo.
E, como isso é difícil, podem
lançar mão de formas imediatas para conseguir dinheiro
-como tráfico de drogas e roubo- e pagar pelas marcas. Porque, se você não tem os produto
de consumo, você está excluído
da sociedade.
FOLHA - O hiperconsumidor é alguém que vive para um futuro que
nunca se cumpre?
LIPOVETSKY - É preciso ter cuidado para não diabolizar o tema, porque os intelectuais que
se debruçaram sobre o fenômeno nos últimos 50 anos foram
terríveis, apocalípticos.
FOLHA - Como Naomi Klein?
LIPOVETSKY - Exatamente. Não
concordo com suas análises,
que acho pouco exatas. Naturalmente, elas têm algo de verdadeiro -o excesso de marcas e
a invasão do espaço privado pelo excesso de publicidade.
Mas essa invasão não é o
equivalente do facismo, pois os
indivíduos também dispõem de
muita liberdade. O consumo
não é o totalitarismo; o universo do hiperconsumo é também
aquele em que as pessoas vivem
bem e por muito tempo. Há
também o consumo médico, e
isso é bom.
Certamente que há um lado
criticável no consumo, mas não
é aquele que Naomi Klein
aponta. Ela vê apenas o lado superficial da questão, que são as
marcas. De fato, as marcas são
importantes, mas sobretudo
para os muito, muito pobres.
Para os outros, o consumo se
dá de modo bem pouco fiel...
Eles mudam de marca, e isso
não é um grande problema. O
verdadeiro problema hoje é a
educação, a pobreza e o desemprego, a depressão, a ansiedade
-e não as marcas.
FOLHA - Pode-se dizer que o hiperconsumidor é alguém em busca de
si mesmo?
LIPOVETSKY - Sem dúvida. Mas,
lendo o livro de Naomi Klein
["Sem Logo"; leia texto na pág.
ao lado], temos a impressão de
que os indivíduos não existem
-só existem as marcas e os negócios. Para ela, os indivíduos
recebem as marcas sem conseguir reagir, como se fossem escravos. Mas você pode assistir a
anúncios de uísque 24 horas
por dia e jamais beber uísque.
Você não vai a um restaurante
porque viu alguma publicidade
sobre ele, mas porque algum
amigo o indicou, por meio do
boca-a-boca.
Na verdade, considero que,
quanto mais marcas há, mais os
gostos se individualizam.
O universo do hiperconsumo
desenvolve a multiplicidade de
gostos individuais.
FOLHA - O surgimento da sociedade de hiperconsumo está ligado à
ascensão de uma "lógica igualitária" -como o sr. diz em seu livro-,
criada pela democracia?
LIPOVETSKY - Sim, mas lógica
igualitária não significa uniformização, mas, em seu sentido
mais profundo, o direito de cada um à felicidade e ao consumo. Isso significa que, mesmo
que não se seja rico, pode-se viver bem. Hoje pode-se viajar de
avião ao lado de quem tem um
nível de vida diferente do seu,
que pode ter muito mais dinheiro que você.
O que não significa afirmar
que as diferenças desapareceram -isso seria ridículo. Mas
também não significa dizer que
o mundo de pobres e ricos seja
estanque. Hoje mesmo as classes desfavorecidas têm acesso
ao consumo -e isso muda tudo.
A sociedade de hiperconsumo
ajudou a encurtar as diferenças
entre as classes sociais.
FOLHA - Por que o sr. diz que a sociedade de hiperconsumo é marcada por uma "feminização"?
LIPOVETSKY - Práticas que outrora eram privilégio das mulheres -como a moda e a cosmética- hoje cada vez mais se
integram ao universo masculino. Em um sentido mais amplo,
assistimos a uma feminização
do design. As formas agora são
mais doces, mais maternais e
menos agressivas.
Isso talvez seja a expressão
de uma sociedade mais ansiosa,
que acredita menos na modernidade e que deseja um bem-estar imediato.
Pois as formas antigas eram
uma espécie de profissão de fé
na modernidade. Havia um esforço em destruir a tradição,
enquanto hoje não se deseja
destruir nada, mas, antes, conservar tudo. Hoje as formas
pretendem transmitir paz, serenidade, razão pela qual o modelo dessa sociedade não é Dionisos, mas o zen.
FOLHA - Mas um zen com ansiedade. Isso não é contraditório?
LIPOVETSKY - Sem dúvida.
FOLHA - Esse é o pós-hedonismo?
LIPOVETSKY - Exatamente. Um
hedonismo ansioso.
FOLHA - O sr. fala de uma "cultura
preventiva" do consumidor. Isso é
uma relação um pouco paradoxal
com o prazer da compra, não? O que
é exatamente isso?
LIPOVETSKY - Esse é um grande
problema, que tem se desenvolvido, digamos, há cerca de
20 anos. É o que chamo, para
me divertir, de "Dr. Knock", referência a uma peça de teatro
em que os personagens estão
perfeitamente bem, gozam de
boa saúde, mas vão a um médico que lhes diz: "Você estão
com problemas, as coisas não
vão bem". E eles saem dali
"doentes", desestabilizados.
É o que vivemos hoje. Por
exemplo, você não pode se expor ao sol, porque causa problemas, você não pode beber Coca-Cola, porque tem muito açúcar, você não pode comer muita
carne, porque tem gordura, você tem que fazer exames médicos, você não pode fazer sexo
sem camisinha, porque pode
pegar Aids...
FOLHA - Mas essa preocupação
não é boa?
LIPOVETSKY - Certamente. Mas
isso paralisa o hedonismo, porque você instala a dúvida, a desconfiança, o medo, que se torna
algo permanente nas existências dos indivíduos. Nos anos
50, as pessoas comiam e tomavam banho de mar tranqüilamente; hoje, você precisa verificar se a água não está poluída,
se a comida tem produtos geneticamente modificados, que podem provocar câncer.
Não é uma crítica o que faço,
mas o fato é que, simplesmente,
vivemos em uma civilização da
prevenção, que é o contrário do
dionisíaco.
FOLHA - É um exemplo de hedonismo fraturado?
LIPOVETSKY - Sim. Eu diria que
não vivemos o dionisíaco; apenas consumimos o dionisíaco.
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