São Paulo, domingo, 11 de junho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Morte a crédito

Cineasta retrata de forma trágica a compulsão dos norte-americanos por cartões de crédito

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

Transformar um assunto como cartões de crédito em uma comédia pode parecer algo esdrúxulo. Numa comédia de humor negro, então, nem se fala. Mas é mais ou menos o que o jovem diretor norte-americano James Scurlock, 34, conseguiu fazer em "Maxed Out" (Chegar ao Extremo), um documentário sobre como as dívidas têm dado sustentação ao estilo de vida da família norte-americana comum. O filme (sem previsão de lançamento no Brasil) fez sucesso de crítica e público no South by Southwest Film Festival, em Austin (Texas), em março, e levantou uma séria discussão sobre o modo como a economia americana tem se alimentado.


Quanto mais inteligente a pessoa é, mais vergonha sente por não entender como caiu em tal situação


Intrigado com a maneira como os norte-americanos, principalmente os mais jovens, têm sido cada vez mais enredados em dívidas de cartões de crédito, Scurlock resolveu investigar as razões pelas quais esse pequeno pedaço de plástico se tornou algo tão sedutor e indispensável para tanta gente, num país em que a média de endividamento familiar com cartão de crédito chegou, em 2005, a cerca de US$ 9.300 (R$ 21 mil). Conta também como "falidos" e "quebrados" são motivo de lucro para essas empresas. Rodado em vários pontos dos EUA, o filme vai virar também um livro com as melhores entrevistas, a ser publicado em 2007 pela Simon & Schuster.

 

FOLHA - Por que decidiu fazer esse documentário? Está mais preocupado com a economia ou com o comportamento da sociedade?
JAMES SCURLOCK -
Estou preocupado com os dois. Nos anos 1970, começamos a partir de uma economia produtiva -em que as pessoas economizam e investem em companhias que produzem coisas, e é daí que vem o crescimento- para uma economia consumista, em que o crescimento vem do nosso consumo de coisas que são feitas em outros lugares. Por isso não precisamos mais de tudo aquilo que economizávamos para financiar a produção. Viramos uma economia em que companhias fazem dinheiro financiando produtos, e não vendendo-os. Somos todos culpados, em diferentes níveis, por pensar que esse comportamento pode continuar indefinidamente.

FOLHA - Os americanos estão sendo estimulados a criar dívidas?
SCURLOCK -
Sem dúvida. Os bancos e as empresas de cartão de crédito estão vendendo dívidas. Virou um produto como qualquer outro, exceto pelo fato de que, no caso da dívida, o abastecimento cria mais demanda. Em outras palavras, quanto mais dívida você vende, mais pessoas precisarão dela. Se você tem um cartão de crédito, vai precisar de outro para pagar o primeiro, aí terá de pendurar a casa para pagar os dois e assim por diante. É um ciclo vicioso criado por essas companhias, que criaram um produto para cada parte dele. Dívidas com juros altos tornaram-se um negócio muito rentável, especialmente quando se adicionam taxas e multas.

FOLHA - Como foi a pesquisa para o filme?
SCURLOCK -
Li muito a respeito e freqüentei o curso de finanças da Wharton School, na Universidade da Pensilvânia. Para encontrar os personagens, procuramos na internet e nos jornais histórias reais. A filmagem durou cerca de nove meses e foi muito difícil porque muitas pessoas não querem falar sobre falência. Há muita vergonha e muita culpa envolvidos no tema. Ironicamente, quanto mais inteligente a pessoa for, mais culpa e vergonha sente por não entender como foi possível cair em tal situação. Filmamos em todo o país, e a pesquisa provou que o assunto afeta a todos. Não interessa de onde você é, se rico ou pobre, negro ou branco, gay ou heterossexual, conservador ou liberal.

FOLHA - Você acha que suas conclusões podem ser exportadas a outros países?
SCURLOCK -
Sim, porque esse é um fenômeno global. O verdadeiro tema é a disparidade de riqueza no mundo. Alguns estão ficando muito, muito ricos e outros, muito, muito pobres. Então a maioria das pessoas está usando cartões de crédito para preencher esse buraco -inclusive para pagar coisas essenciais, como planos de saúde, educação, comida etc. Trata-se uma economia global muito instável e muito desigual, e o crédito é aquilo a que as pessoas se agarram quando estão se afogando. Acabo de ler que o número de japoneses que não têm poupança quase dobrou em dez anos. Essa é uma grande mudança numa sociedade que costumava se orgulhar de dizer que todos eram de classe média.

FOLHA - A criação de dívidas particulares faz a economia de um país crescer de alguma maneira?
SCURLOCK -
Com certeza. Se as pessoas estão fazendo mais e mais dívidas, elas continuam a gastar, e isso mantém a economia em movimento. Mantém os construtores construindo, fábricas produzindo e assim por diante. É por isso que, em princípio, parece uma panacéia, mas acaba construindo uma engrenagem que funciona muito bem. As pessoas ficam felizes porque ainda podem aparentar pertencer à classe média ou ter um certo nível de vida. E os bancos ficam felizes porque estão enriquecendo. Mas, em algum ponto, começam a sufocar sob os crescentes níveis da dívida a cada vez mais alto custo, e surgem os problemas.

FOLHA - Você diz que a dívida virou um vício. Nesse sentido, pode compará-la a outros, como álcool, cigarro, drogas legais ou ilegais?
SCURLOCK -
No ano passado as empresas de cartão de crédito enviaram cerca de 6 bilhões de ofertas de cartão de crédito para as casas dos norte-americanos. Isso corresponde, mais ou menos, a 60 para cada uma.
E todos anunciam algo por nada. Zero de juros, pague depois ou o que seja. O que você acha que pode acontecer se enviarmos 60 maços de cigarro ou 60 garrafas de vinho por ano para cada uma dessas casas? É claro que isso vai desenvolver algum tipo de apetite por essas ofertas sedutoras, ou não?


Texto Anterior: Klein visou a "tirania da marca"
Próximo Texto: No Brasil, juros agravam endividamento
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.