São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

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FANÁTICOS SEM FRONTEIRAS

PARA O FILÓSOFO ALAIN FINKIELKRAUT, PROTESTOS CONTRA A PUBLICAÇÃO DAS CHARGES REPRESENTAM UM CLARO DESPREZO PELAS CRENÇAS ALHEIAS

ALAIN FINKIELKRAUT

A comunicação imediata venceu o tempo e o espaço. O intervalo entre o próximo e o distante se reduziu. Há apenas alguns anos, esse fenômeno nos causava júbilo. Encantávamo-nos por nossa moral ter se tornado ubíqua. Víamos com emoção a técnica se colocar a serviço da ética.
A concordância entre o cosmopolitismo da telepresença e a exigência cosmopolita nos parecia milagrosa: no momento mesmo em que o reconhecimento da semelhança em todos os homens nos levava a denunciar o direito soberano dos tiranos a massacrar suas minorias ou sua oposição à abertura de suas fronteiras, a imagem indiscretamente democrática penetrava as mais espessas muralhas. E essa abolição das distâncias nos parecia conduzir de maneira bastante natural a uma aproximação entre os povos.


Por que jamais surgiu uma manifestação no mundo islâmico contra os sangrentos massacres em Nova York?


Mas agora temos de enfrentar a globalização do ódio. Um convidado inesperado se apresentou ao banquete da abolição de fronteiras: depois dos médicos, farmacêuticos, enfermeiros, advogados e repórteres sem fronteiras, chegou a era dos fanáticos sem fronteiras.
Na sociedade civil mundial que nossos melhores votos acalentam, a ingerência desumana se torna cada vez mais peremptória e estridente.

Incapacidade de diferenciar
Uma ínfima minoria daqueles que, do Paquistão à Argélia, protestam contra as charges publicadas pelo diário dinamarquês "Jyllands-Posten" saberia localizar Copenhague em um mapa. Mas o que importa a geografia? Na era da internet, o mundo inteiro é para todos, somos todos anjos, e aí está o horror.
Quem são os responsáveis primordiais pela crise? "Os cartunistas e os jornalistas que não quiseram temperar o exercício da liberdade de expressão com o respeito às crenças", dizem muitos dos chefes de governo ocidentais, acompanhados por numerosos intelectuais. Esses sábios se esquecem de que o respeito às crenças e à liberdade de expressão são os dois lados da mesma moeda.
Aqueles que combatem a liberdade de expressão em nome do respeito à crença que lhes é cara desprezam as crenças alheias e expressam claramente esse desprezo.
Os jornais de Teerã, de Damasco e do Cairo estão repletos de caricaturas vingativas e grotescamente desavergonhadas de judeus ortodoxos ou de desenhos que demonizam o Talmud [conjunto de interpretações das leis mosaicas]. É a dolorosa renúncia à convicção de seu absolutismo que embasa a um só tempo a liberdade de expressão e o respeito às crenças. E é a essa renúncia que as elites e as massas islâmicas opõem sua cólera santa.
A imagem que detonou a crise representa Muhammad usando um turbante em formato de bomba. Imagem injuriosa, nos dizem. Um vínculo ofensivo, um vínculo cruel, um vínculo difamatório entre o profeta e o terrorismo. Sem dúvida. Mas esse vínculo não foi estabelecido pelos caricaturistas dinamarqueses, e sim pelos adeptos da jihad [guerra santa]. Por que jamais surgiu uma manifestação no mundo islâmico contra os sangrentos massacres em Nova York, Madri, Mombaça, Bali e outras cidades?
Na verdade, as imagens de turbas furiosas saqueando as embaixadas escandinavas são infinitamente mais obscenas, infinitamente mais caricaturais, do que as charges vindas da Escandinávia.
Os crentes que se consideram ultrajados e caluniados por uma tal representação de Muhammad reagem pedindo a morte daqueles que insultam o islã. E aqueles que insultam o islã, aos olhos deles, não são apenas os autores dos desenhos a que objetam -são também os governos dos países nos quais esses desenhos foram publicados e os cidadãos desses países.
Essa incapacidade de diferenciar é o espírito do terrorismo. Matam-se inocentes porque não existem inocentes, não existem nem mesmo indivíduos: apenas espécimes. O anonimato reina: cada pessoa vale apenas por sua proveniência, cada pessoa é um alvo.

Inimigos renitentes
Será que Bin Laden representava apenas uma amostra do que está por vir? Somado à belicosidade nuclear da nova liderança iraniana e ao sucesso eleitoral dos islâmicos militantes na Palestina, recentemente, e em breve, com certeza, no Egito, essas manifestações delirantes nos forçam a apresentar a questão. Para viver em um mundo pacífico ou para obter a paz, não se pode abjurar todo espírito de conquista, confessar crimes e proclamar a todos que não temos mais inimigos.
A prova é que o temos feito e agora se torna forçoso reconhecer que, apesar de nossos esforços, nossos inimigos continuam determinados e renitentes.
Mas, atenção: esse "nós" não quer dizer apenas "nós, os franceses", "nós, os europeus" e nem mesmo "nós, os ocidentais". É preciso que ele englobe igualmente os muçulmanos tradicionalistas moderados, os muçulmanos laicos, as mulheres muçulmanas emancipadas ou que aspiram a isso, os cristãos que vivem em terras islâmicas.
O escritor Thomas Mann costumava dizer que Hitler não caiu como um meteoro sobre o solo da Alemanha e que a Alemanha não podia, em conseqüência, declarar ter extirpado o nazismo. Mas acrescentava que ele também era a Alemanha. Pois bem, em lugar de tentar lisonjear os fanáticos por meio de palavras pias e desonrosas sobre a alteridade e a aceitação, cabe-nos afirmar agora, sem nenhuma hesitação, nossa solidariedade a todos os Thomas Mann do mundo muçulmano.

Alain Finkielkraut é filósofo e professor de história das idéias no departamento de humanidades da Escola Politécnica de Paris. É autor de "A Ingratidão" (ed. Objetiva). Este texto foi publicado no "Libération".
Tradução de Paulo Migliacci.


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