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As civilizações e o silêncio
O sociólogo Helio Jaguaribe discute as restrições feitas pelo
historiador Evaldo Cabral a seu livro "Um Estudo Crítico da História"
Helio Jaguaribe
especial para a Folha
Li, com compreensível interesse, a
resenha de Evaldo Cabral de Mello
sobre meu livro "Um Estudo Crítico da História", no "Jornal de Resenhas" de 14 de julho. Desejaria, em primeiro lugar, agradecer o interesse pelo livro e o significativo esforço que representou, apenas dois meses depois de sua
publicação, empreender uma análise crítica, ainda que "por atacado", de dois
grossos volumes, totalizando cerca de
1.500 páginas.
Nas condições de um país como o nosso, um trabalho como "Um Estudo Crítico da História" tende a receber o destino
do que eu designaria de "respeitoso silêncio". A temática e as dimensões da
obra suscitam admiração e respeito. Mas
nossos historiadores, com raras exceções, como ocorre no caso dele, só se
ocupam da história nacional.
Nossos sociólogos não se interessam
pela história universal -o público cultivado não acredita que autores nacionais
possam tratar, competentemente, de outros assuntos que não os brasileiros. E
não se dispõem a ler um ameaçador catatau de cerca de 1.500 páginas. O fato de
que um estudioso brasileiro se tenha metido em tal empreendimento causa admiração e espanto. Mas o resultado final,
como disse, é o de um "respeitoso silêncio". Fico assim muito grato ao historiador por ter, pouco tempo depois da publicação do livro, empreendido uma
abrangente resenha de seus aspectos gerais, assim rompendo o silêncio que
usualmente cerca obras como essa.
Ainda a título introdutório, desejaria
dizer que muito me afligi quando vi que
a bonita edição da obra, produzida por
Fernando Gasparian, assumira o caráter
de um maciço livro de dois tomos, totalizando 1.472 páginas. Era minha intenção
produzir um texto para ser lido, não para
se tornar objeto de consulta. É certo que
a discussão de problemas da Pré-História e de 16 civilizações, com particular
desdobramento da ocidental, precedida
de um razoável esclarecimento da problemática teórico-metodológica implicada nesse empreendimento, tendia a
exigir um espaço relativamente amplo. É
certo, igualmente, que cerca de cem páginas desses dois tomos correspondem à
transcrição dos comentários finais dos
historiadores consultores.
Estimaria, agora, abordar, sucintamente, os aspectos mais relevantes da
crítica ao meu livro. É difícil para um autor fazer a crítica da crítica de sua obra. A
obra que um autor entrega para publicação representa, na oportunidade, o melhor que ele tem a dizer a respeito do assunto tratado. A maior parte dos autores
tem, sem dúvida, alguns reparos sobre a
obra que completou. Em alguns casos, o
tempo disponível foi insuficiente. Em
outros, o autor se dá conta de que não
dispunha de toda a informação que seria
desejável. Outras limitações são reconhecidas pela maior parte dos autores.
Inútil dizer que o mesmo se dá comigo.
Não por razões de tempo. A Unesco (Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura) amavelmente ampliou o prazo que me concedera de cinco para seis anos, o que, trabalhando arduamente, resultou suficiente.
O mesmo, entretanto, não poderia dizer no que se refere a um satisfatório nível de informação. Suponho que, no terreno da história, nenhum autor julgue
dispor de toda a informação desejável.
No caso de um homem como eu, proveniente das ciências sociais, embora sempre as tenha cultivado com profundo
sentido histórico, a incansável busca de
informação apropriada sempre se situava aquém do desejável. Com o agravante
de não comandar como tanto estimaria
as línguas clássicas e o alemão.
A perspectiva a partir da qual o prezado professor criticou meu livro não foi,
entretanto, presidida por demandas de
mais ou melhor informação factual ou
bibliográfica. Foi de caráter teórico. Em
suma, pareceu-lhe que, para o tema
abordado, como alternativa para uma
reapresentação da história universal, como as séries de Cambridge, ou de uma filosofia da história, como Spengler ou
Toynbee, ou para uma discussão teórico-historiológica, como em Collingwood, o que importava era uma aproximação ao modo de Max Weber. Uma
aproximação que Alfred Weber intentou
realizar em sua pioneira obra "Sociologia
da Cultura".
O que me surpreendeu e desapontou,
em sua resenha, foi o fato de o prezado
professor não ter reconhecido que meu
livro seguiu, precisamente, o caminho
que lhe pareceu recomendável, mas que
não logrou identificar em minha obra.
Desde meus precedentes estudos sociopolíticos até "Um Estudo Crítico da História", tenho sido comandado por minha plena concordância com o preceito
de Max Weber de que a sociologia deve
ser abordada historicamente, e a história, sociologicamente. Tenho sido comandado, igualmente, pelo entendimento, referido pelo prezado professor,
de que as ciências sociais devem visar a
um entendimento de seu objeto no sentido apontado por Rickert e Dilthey. Foi a
partir dessas premissas teórico-metodológicas, expressamente discutidas na
"Introdução Geral", que o conjunto dos
estudos foi empreendido.
Discordo, assim, radicalmente, de sua
afirmativa de que meu trabalho, não pretendendo ser uma nova história universal nem uma filosofia dogmática da história, não levou em conta a abordagem
comparativa proposta por Max Weber.
Na verdade, meu livro nada mais é do
que uma abordagem comparativa das
condições que influenciaram, predominantemente, a emergência, o desenvolvimento e, conforme o caso, a decadência
das civilizações nele estudadas.
As supostas generalizações banais referidas na sua crítica, como "as mudanças
sociais ocorrem mediante eventos que
produzem uma alteração importante e
duradoura em um dos subsistemas da
sociedade" ou, ainda, "a religião tem sido um dos fatores mais importantes da
história", se ingerem em níveis distintos.
A primeira afirmação, longe de banal,
constitui o resultado de uma ampla investigação, político-sociológica, contida
em meu livro "Political Development" e
resumida às páginas 642 e 663 do segundo volume do livro em discussão e, simplesmente, constitui uma formulação
inovadora e empiricamente fundamentada do processo de mudança social. A
segunda é uma frase de ordem geral que
não pretende exprimir conclusões, citada fora de seu contexto. Onde a matéria é
devidamente analisada (da pág. 663 à
665 do vol. 2), o assunto é tratado com o
devido apoio analítico-empírico.
Não representa, assim, uma afirmativa
procedente, relativamente ao conjunto
do meu livro, sua declaração de que ele
constitui "um somatório destituído de
maleabilidade de uma história da civilização e, ao leitor versado em alguma parte desse latifúndio, afirmações que, pelo
grau de generalidade a que se vêem acuadas, roçam pela banalidade e obviedade". Na verdade, entre as muitas limitações desse trabalho não figura a de conclusões óbvias. Formuladas em termos
de proposições gerais, todas as conclusões são, por definição, generalidades. O
que distingue generalidades óbvias de
generalidades decorrentes de apropriado tratamento empírico-analítico
-muitas das provas, como no caso de
meu livro, extremamente inovadoras-
é precisamente sua precedente fundamentação.
Disso trata o detalhado estudo de 16 civilizações contido em meu livro. Graças
a esse estudo pode ser fundamentadamente constatado, pela primeira vez no
longo curso da historiografia sobre as civilizações, que essas não se encontram,
como pensava Spengler, submetidas cada qual a circunstâncias mínimas. Tampouco, como afirmou o último Toynbee,
que elos sejam guiados pela Providência
divina para uma crescente aproximação
do homem a Deus. As civilizações não
são teleológicas. São consequenciais. Isso não obstante, como pela primeira vez
se constatou, empiricamente, no meu livro. Obedecem a determinadas recorrências sociológicas, no que se refere aos
seus processos de emergência, de desenvolvimento e de decadência.
Desejaria encerrar estas linhas observando, por um lado, a medida em que,
na crítica de uma crítica, o autor é naturalmente conduzido a discordar dos que
dele discordaram. Por outro lado, estimaria reiterar meus agradecimentos por
ter se ocupado de meu livro em alto nível
teórico e ter sido o primeiro a romper esse "respeitoso silêncio" que usualmente
cerca obras como essa que publiquei.
Helio Jaguaribe é sociólogo, decano do Instituto
de Estudos Políticos e Sociais e autor, entre outros, de "Um Estudo Crítico da História" (editora
Paz e Terra).
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