São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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+ cultura

Reunindo três DVDs com filmes de Yasuzo Masumura, Masahiro Shinoda e Yasujiro Ozu, caixa apresenta um panorama privilegiado da modernidade no cinema

Urros de uma loucura interessante

Lúcia Nagib
especial para a Folha

O Japão é um campo privilegiado para pensar o moderno no cinema. Três filmes de figuras diversas como Yasuzo Masumura, Masahiro Shinoda e Yasujiro Ozu, reunidos na caixa de DVDs "Um Olhar Japonês" recém-lançada pela Magnus Opus [tel. 0/ xx/11/5051-8817], são a prova da variedade de recursos narrativos modernos que o cinema japonês desenvolveu entre os anos 50 e 60 e, ao mesmo tempo, do grau de reciclagem que se opera entre as gerações recentes. Masumura, normalmente excluído da lista dos grandes nomes da nouvelle vague japonesa, como Oshima, Shinoda, Imamura e Yoshida, tem contra si apenas o fato de ter se iniciado na Daiei, e não na Shochiku, como seus colegas, e não ter optado, a seguir, como eles, pela via independente. Mas em muitos sentidos foi precursor deles todos, ao ir procurar na Europa novas técnicas narrativas e rejeitar o bom-mocismo típico do cinema do pós-guerra no Japão. Já em meados dos anos 50, as ousadias de Masumura nos campos político e erótico, cujas fontes vão desde o tcheco Machaty ao francês Malle, certamente abriram caminho para o radicalismo de Oshima nos anos 60 e 70. "Quero exprimir as sensações humanas, a raiva e a felicidade, do modo mais livre possível... Quero que os japoneses possam urrar, até parecerem loucos, as coisas interessantíssimas que escondem no fundo do coração", escreveu Masumura em 1958, quando dirigia os primeiros de seus mais de 60 filmes. "Cega Obsessão" ("Moju", 1969), sua obra agora lançada em DVD, é esse urro de "loucura interessante". Baseado numa novela de Edogawa Rampo (o introdutor do conto policial no Japão, cujo nome é a pronúncia japonesa de Edgar Allan Poe), dá expressão ao universo interior de um escultor cego, que inventa uma arte inteiramente tátil. Seu estúdio se compõe de paredes cobertas de partes humanas de gesso, grandes olhos, seios, pernas, braços, narizes, em composições fascinantes do cenógrafo Shigeo Mano. Para ali o cego atrai uma modelo e, vencida a resistência dela, ambos se entregam a um delírio de sensações carnais que, previsivelmente, termina numa orgia de corpos despedaçados. Qualquer semelhança com o grafismo corrente de um Takashi Miike não é mera coincidência: os ecos de Masumura, morto em 1986, continuam repercutindo no Japão, ainda que, infelizmente, para evidenciar a carência de senso estético nas produções contemporâneas. Para Masumura, os excessos de amor devem ser, antes de tudo, belos, mesmo quando incluem a sujeira e o sangue. Consciente dos códigos que manipula, ele desde logo se livra de possíveis corretivos psicanalíticos, explicitando a paixão edipiana entre a mãe e o filho cego, para a seguir mergulhar os três, mãe, filho e amante, nos abismos das sensações físicas puras, onde tudo é permitido.

O moderno na tradição
No mesmo ano de 1969, outra experiência radical foi realizada por Masahiro Shinoda, em "Duplo Suicídio em Amijima" ("Shinju Ten no Amijima"), um dos mais extraordinários filmes japoneses já feitos. Aqui, Shinoda desentranhou o moderno não de sentimentos individuais, mas da tradição japonesa, buscando seu tema na peça de bunraku (teatro de bonecos) do clássico Monzaemon Chikamatsu (1653-1725). Contou para isso com a ajuda do célebre compositor Toru Takemitsu, que se encarregou não apenas da música, mas da orquestração de todos os ruídos e diálogos do filme. Takemitsu foi ainda o responsável pelo roteiro, apenas retocado por Taeko Tomioka, especialista no dialeto de Kansai, onde a história se passa. O trabalho meticuloso do compositor é fundamental para o efeito reflexivo que define o filme, derivado tanto de Brecht quanto da estrutura do bunraku, que exibe seus manipuladores durante o espetáculo. Seguindo sugestão de Takemitsu, o filme começa com uma trupe de manipuladores nos bastidores de um teatro, treinando os movimentos dos bonecos, enquanto ouvimos uma conversa telefônica entre Shinoda e Tomioka, definindo as externas para a sequência final do duplo suicídio. A partir daí, os personagens (de carne e osso) são conduzidos aos seus locais de representação por esses manipuladores vestidos de preto, que freqüentemente os colocam sobre platôs cobertos de caligrafia, como se eles brotassem das páginas de um livro. Tudo no filme emana originalidade: os sons do gamelão da Indonésia marcando as mudanças de cena; a sobreposição das pontes que reproduzem o "michiyuki" (caminho da morte) do kabuki; o surpreendente uso da mesma atriz, Iwashita Shima, mulher de Shinoda, para representar tanto Osan, a mulher do comerciante falido Jihei, quanto sua amante, a cortesã Koharu; as portas de correr gradeadas que aprisionam os personagens nas duras leis do dever, ou "giri", tornando-os, ao mesmo tempo, objeto de permanente voyeurismo; as cenas de sexo tanto mais contagiantes quanto mais estilizadas; e, afinal, o duplo suicídio de Jihei e Koharu, encenado como um desesperado balé de libertação.

O banal da vida
Tudo aqui é incomum e por isso oposto ao terceiro filme da caixa, "Bom Dia", rodado em 1959 pelo mestre Yasujiro Ozu, no qual o assunto é exatamente a banalidade da vida cotidiana. A obra de Ozu é aquela em que jamais se encontrarão suicídios de amor ou membros decepados. "Bom Dia", feito poucos anos antes de sua morte, em 1963, é o testemunho definitivo dessa postura, reafirmando a ociosidade de frases como "bom dia", "o tempo está bom", "até logo" etc., mas também a absoluta necessidade delas para preencher o vazio dos sentimentos extremos que, entre pessoas comuns, jamais encontram expressão.
Sem incluir-se entre suas obras-primas, "Bom Dia" talvez seja o filme mais auto-reflexivo de Ozu, um testamento no qual o diretor tenta explicar a razão de ter contado quase sempre a mesma história em seus filmes. Adotando a perspectiva das crianças, inconformadas com a inutilidade do discurso adulto e tomadas do desejo consumista introduzido pela modernização do pós-guerra, Ozu coloca seu próprio cinema diante da nova ameaça: a televisão.
Pais assalariados, esmagados por uma competição cruel, afinal são forçados pelos filhos a gastar seus parcos recursos num aparelho de TV. Se isso resulta numa certa nostalgia de um país e um cinema que se perdem, esta logo se quebra no humor, desta vez bastante ousado para um filme de Ozu: um concurso de peidos entre as crianças rebeldes, que ingerem pedras-pomes para esse fim.
Rejeitado pela geração de Masumura e Shinoda por seu classicismo, Ozu afinal se une à modernidade deles justamente pela auto-ironia e a consciência dos limites de sua arte.


Lúcia Nagib é professora de cinema na Universidade Estadual de Campinas e autora de "O Cinema da Retomada" (ed. 34) e "Nascido das Cinzas" (Edusp).


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