São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

EM UM DEBATE POR E-MAIL, OS ESCRITORES RICARDO PIGLIA E ROBERTO BOLAÑO, MORTO NO ANO PASSADO, FALAM DA INFLUÊNCIA DA VANGUARDA E DO CLASSICISMO NA OBRA DE BORGES, DA TRADUÇÃO COMO ELO ENTRE DOIS MUNDOS E DA DIFICULDADE EM DEFINIR UMA IDENTIDADE LATINO-AMERICANA

da Redação

A convite do jornal "El País", o escritor argentino Ricardo Piglia, autor do romance já clássico "Respiração Artificial", e o chileno Roberto Bolaño, morto no ano passado aos 50 anos e de quem a editora Companhia das Letras está lançando no Brasil "Noturno do Chile", trocaram idéias por correio eletrônico -Bolaño em Barcelona, Piglia na Califórnia.
Entre outros temas, eles abordam a influência de Macedonio Fernández e de Alfonso Reyes sobre a obra de Jorge Luis Borges, a difícil definição do que é ser latino-americano e a importância da tradução como veículo entre várias culturas.

ROBERTO BOLAÑO - Querido Piglia, que tal começarmos comentando algo que você disse em seu texto "O Romance Polonês"? "Como calar os epígonos? (Para fugir deles, às vezes é preciso trocar de língua.)" Tenho a impressão de que nos últimos 20 anos, desde meados dos 70 até o início dos 90 e, claro, durante a nefasta década de 80, vários escritores latino-americanos manifestaram esse desejo, expressando não tanto uma ambição literária, mas um estado espiritual de caminho cortado. Chegamos ao fim do caminho (na qualidade de leitores, é bom esclarecer), e, à nossa frente (na qualidade de escritores), se abre um abismo.

RICARDO PIGLIA - Trocar de língua é sempre uma ilusão secreta, e às vezes não é preciso deixar o próprio idioma. Tentamos escrever numa língua privada, e talvez seja esse o abismo a que você se refere: a beira, a borda depois da qual está o vazio. Acho que encaramos esse desafio como um modo de evitar a repetição e o estereótipo. Por outro lado, não sei se a situação que você descreve diz respeito apenas aos escritores ditos latino-americanos. Talvez nesse aspecto estejamos mais próximos de outras experiências e de outros estilos não necessariamente latino-americanos, movendo-nos em outros territórios. Porque o que se costuma chamar "latino-americano" é definido por uma espécie de antiintelectualismo que tende à simplificação de tudo, ao qual muitos de nós resistimos.
Vejo essa resistência bem clara nos seus livros, Bolaño, mas também nos de outros como [Don] DeLillo ou [Claudio] Magris, que escrevem em outras línguas. Penso que há novas constelações em formação e que são essas constelações o que avistamos do nosso laboratório quando apontamos o telescópio para a noite estrelada. Mas, então, continuamos sendo latino-americanos? Como você vê essa questão?

BOLAÑO - Para nossa desgraça, acho que continuamos sendo latino-americanos, sim. É possível -e digo isso com tristeza- que o gesto de assumir-se como latino-americano obedeça às mesmas leis que o regiam no tempo das guerras de independência. Por um lado, é uma opção claramente política e, por outro, uma opção claramente econômica.

PIGLIA - Concordo com você quando diz que definir-se como latino-americano (o que fazemos poucas vezes, não é?) pressupõe, em primeiro lugar, uma decisão política, uma aspiração de unidade tramada com a história, e todos vivemos e lutamos nessa tradição. Acho que nós (e esse plural é bem singular) muitas vezes tendemos a apagar os rastros e a não nos fixarmos em nenhum lugar. Estou vivendo por alguns dias na Califórnia, em Davis, perto de San Francisco, onde tudo se mistura, como você bem sabe: as lembranças da viagem dos beatniks rumo ao Oeste, os romances de [Dashiel ] Hammett e os bairros paranóicos descritos por Philip Dick convivem com a intriga da cultura latina (no bairro de La Misión, hoje invadido pelos jovens milionários do Vale do Silício, vemos por toda parte uma figura ou uma imagem, um mural, uma "taquería", uma "bodeguita", com mais cor local que toda a cor local que Lowry, bêbado, possa ter imaginado ao passear por Cuernavaca). Isso faz com que, por contraste, aqui eu me sinta um escritor, digamos, ítalo-argentino (um falso europeu, outro europeu exilado).
Não acredito que essas categorias existam nas histórias da literatura (existem os ítalo-americanos, claro, mas eles se dedicam ao cinema). Para completar, leio W.H. Hudson ("Días de Ocio en la Patagonia"), outro falso argentino, um europeu que nasceu em Quilmes, na Província de Buenos Aires, e se criou entre gaúchos falando uma língua que devia ser uma versão pré-histórica do "spanglish". E que ao mesmo tempo escrevia, como sabemos, uma das melhores prosas em inglês de que se tem notícia. Melhor que Conrad, às vezes, menos barroco, mais nítido, uma estranha versão de [Joseph] Conrad, não só pela qualidade de sua prosa e porque os dois eram amigos, mas porque Hudson, assim como o polonês, sempre foi desajustado, solitário, deslocado.
Mas estou falando demais. Eu gostaria de saber o que você tem lido ultimamente.

BOLAÑO - Estou lendo o último romance de Eduardo Mendoza, "La Aventura del Tocador de Señoras", e estou gostando muito. Mas queria acrescentar um comentário sobre Hudson, um autor que li muito jovem. Na época eu pensava que Hudson escrevia em espanhol e só depois de ler três livros dele me dei conta de que escrevia em inglês, quando reparei no nome do tradutor.
Não conheço muito bem a literatura argentina do final do século 19, mas tenho a impressão de que Hudson é um de seus grandes prosadores. No Chile, pouco depois, aconteceu algo parecido com os primeiros livros de Huidobro, que foram escritos em francês. Ou com Rodolfo Wilcock, que acabou escrevendo em italiano. Há uma espécie de refluxo ou de fuga em alguns escritores, que os leva a procurar, a se instalar ou a indagar em uma língua menos adversa. Claro que não é o caso de Hudson. Você já leu o Mendoza?

PIGLIA - Gosto muito dos livros do Mendoza, embora não tenha lido o romance que você está lendo. Mas é mesmo intrigante esse jogo com as línguas estrangeiras e com as traduções.
Para mim, Hudson e Gombrowicz produzem efeitos estranhos na literatura argentina por introduzirem uma voz próxima, um fantasma familiar, que se move invisível em um terreno conhecido. Existe uma tensão entre o que se lê na própria língua e o que se lê fora da língua materna. E os tradutores estão nessa fronteira. Tenho muito interesse na vida dos tradutores; eles são um molde estranho de escritor. Ligado a Hudson.
Agora estou lendo uma biografia de Constance Garnett, uma mulher fantástica que passou a vida traduzindo os russos para o inglês. Imagine que ela traduziu todo Tolstói e todo Dostoiévski e acabou, claro, meio cega. Uma velhinha feminista, muito simpática. Quase todos os norte-americanos e ingleses, de Hemingway a Forster, admiravam Tolstói por meio dela. Nabokov a detestava, mas Nabokov detestava todo mundo.

BOLAÑO - Estou totalmente de acordo com você quanto à importância dos tradutores. O que você disse sobre Constance Garnett me lembrou o caso Consuelo Berges, que traduziu todo Stendhal para o espanhol e que sem dúvida se tornou a principal autoridade sobre Stendhal que existe em nossa língua. Suas traduções são extraordinárias. Também penso em Javier Marías, que não é uma velhinha devotada de um autor específico, mas que tem uma tradução exemplar de "Tristram Shandy", de Sterne.


Macedonio Fernández é um escritor excepcional, um Marcel Duchamp da literatura; pratica uma arte puramente conceitual, interessado mais no projeto que na própria obra


Penso que pessoas tão díspares como Garnett, Berges ou Marías talvez desfaçam no ar o problema formulado por Pound, que só um grande autor pode traduzir outro. Nesse caso, só Marías é um grande autor; Berges e Garnett, do ponto de vista tradicional, não.
Se bem que também é possível, e eu prefiro essa solução imaginária, que tanto a velhinha inglesa quanto a velhinha espanhola sejam, não no fundo, mas bem na frente do nosso nariz, grandes autoras invisíveis.

PIGLIA - Teríamos que criar uma Enciclopédia Biográfica de Tradutores Imortais (e invisíveis). Já pensou que ótimo? O contrário da Enciclopédia de Tlön, uma coisa mais na linha de Manganelli ou das biografias imaginárias de Marcel Schwob, mas detalhadas e reais, uma lista de obscuros personagens extraordinários, escritores assalariados que escrevem a tantos centavos por palavra, os únicos verdadeiros profissionais da literatura, os novos autores de folhetim, que vivem dedicados à literatura, mas como escritores clandestinos, malvistos e mal pagos, os verdadeiros malditos, sempre postergados, sempre ausentes, e que por isso mesmo serão talvez os grandes criadores do futuro.
Seriam pequenas histórias extraordinárias. Cortázar, que traduziu todo Poe num pequeno quarto de um pequeno hotel em Roma; o grande Sergio Pitol, que durante anos admiramos só por ter traduzido Gombrowicz; o extraordinário trabalho de Nicanor Parra, com o "Lear" de Shakespeare; Aurora Bernárdez, traduzindo "Fogo Pálido" [de Nabokov]. Devíamos procurar um mecenas para nos dedicarmos a essa enciclopédia infinita. Tenho certeza de que ela nos tornaria imortais, e seria não apenas um ato de justiça, mas também uma revelação e uma versão cômica da já cômica história da literatura.
Existem mil casos. Penso, por exemplo, no general Bartolomé Mitre, que travou múltiplas batalhas e chegou a presidente da República [Argentina] em meados do século 19 e que se dedicou a traduzir "A Divina Comédia".

BOLAÑO - "A Divina Comédia", apenas. Bom, não se pode dizer que não fosse pertinente. Quanto ao que você disse de Sergio Pitol, estou totalmente de acordo. O primeiro livro de Pitol que me caiu nas mãos foi sua tradução de um escritor polonês hoje bastante esquecido, Jerzy Andrzejewski. O livro se chamava "Os Portões do Paraíso", e seu argumento era o mesmo já usado por Marcel Schwob em "A Cruzada das Crianças".
Outro dado curioso: em meu exemplar de "A Cruzada das Crianças", o tradutor dedica sua versão da obra a Julio Torri, que é um escritor mexicano muito estranho (ou normalíssimo, depende do ponto de vista), que foi um homem de uma modéstia, eu diria, patológica e um grande escritor de textos breves.
De certo modo, Torri foi como o avesso de Alfonso Reyes, a brevidade contraposta à multiplicidade.
Mas deixemos a literatura mexicana. Tenho muitíssimo interesse na sua visão da literatura contemporânea argentina, com esses quatro pontos de referência que são Macedonio Fernández, [Jorge Luis] Borges, [Roberto] Arlt e Gombrowicz.

PIGLIA - Macedonio é um escritor excepcional, uma espécie de Marcel Duchamp da literatura. Pratica uma arte puramente conceitual, interessado mais no projeto que na própria obra. Na verdade, a obra não é nada mais do que o projeto. Ele trabalhou a vida inteira num romance que era apenas a idéia de um romance que nunca se começava a contar e que estava feito basicamente de prefácios e anúncios. Borges aprendeu tudo dele, principalmente a inutilidade de desenvolver um argumento que pode ser resumido e contado como se já estivesse escrito.
Lembrei-me de Macedonio num dia desses ao ler que [o compositor francês] Eric Satie nunca abria as cartas que recebia, mas respondia todas. Olhava o nome do remetente e lhe escrevia uma resposta. Encontraram as cartas fechadas em um desvão e as publicaram junto com as respostas de Satie.
A correspondência é fantástica, porque todos falam de coisas diferentes, e essa, claro, é a essência do diálogo.

BOLAÑO - Eu acho que as cartas de Satie mostram uma certa deferência pelo interlocutor, quer dizer, ele não deixa as cartas sem resposta. Mas o conjunto da correspondência é antes uma aceitação -bem razoável, diga-se de passagem- da impossibilidade do diálogo. Mas também cabem outras explicações, e a mais óbvia seria a desconfiança de Satie da palavra escrita, o que me parece improvável, pois Satie é um dos músicos que mais escreveram. Também há a possibilidade de que Satie, conhecendo seus amigos, julgasse desnecessário ou redundante abrir as cartas deles.
É curioso, mas podemos encontrar várias semelhanças entre Macedonio e Satie, mas nenhuma entre Borges e Satie. E eu acho que isso se deve ao fato de que Borges não aprende tudo de Macedonio mas também, e uma parte importante, de Alfonso Reyes, que o cura para sempre de qualquer veleidade vanguardista.
Macedonio é o risco, a audácia, o vanguardismo e o "crioulismo" juntos, enquanto Alfonso Reyes é o escritor, a biblioteca, e o peso dele sobre Borges é muito grande, tanto no desenvolvimento de sua poesia como em sua prosa. Digamos que Reyes fornece a Borges o elemento clássico, a medida apolínea, e isso de certo modo o salva, o torna mais Borges.

PIGLIA - Alguns de nós pensamos que o século 21 provavelmente será macedoniano e que Borges estará presente com o belo necrológio que leu no cemitério de La Recoleta, em meio à tristeza geral (garoava em Buenos Aires), quando fez rir os acompanhantes do enterro repetindo uma blague do próprio Macedonio ("os gaúchos foram inventados para distrair os cavalos nas fazendas"). Reyes era um cavalheiro, sempre que posso releio "El Deslinde". Quanto ao efeito Satie-Duchamp, acho que Borges é vanguardista como leitor, enquanto, como escritor, tenta ser clássico.
Quanto à cortesia de Satie com seus amigos, é verdade que nunca deixamos os amigos sem resposta, pouco importando o que dizemos nas cartas.

BOLAÑO - É, sim. A gente sempre responde aos amigos, o que pode ser terrível. Michel Tournier, em "Le Miroir des Idées" (O Espelho das Idéias), contrapõe o conceito de amor ao de amizade e diz mais ou menos o seguinte: que certas coisas inadmissíveis em um amigo -um ato de baixeza, por exemplo- são aceitas ou toleradas no amor, pois o amor muitas vezes, ao contrário da amizade, também se alimenta da baixeza, da covardia. O amor -e a história está cheia de exemplos que o comprovam- pode ser coprófago, coisa impossível na amizade. Bom, tudo isso é relativo, claro. William Burroughs encerra a questão à sua maneira ao afirmar que o amor é uma mescla de sentimentalismo e sexo. Lembro que, quando li essa declaração de Burroughs, aos vinte e poucos anos, fiquei arrasado.

PIGLIA - "Os amigos são o melhor da poesia", costumava dizer um poeta argentino, Francisco Urondo, que morreu assassinado pela ditadura militar. As amizades literárias têm sempre um ar estranho. A amizade entre Alfonso Reyes e Borges, por exemplo, ou a amizade silenciosa e muito breve entre Beckett e Burroughs, que se encontraram na Suíça e passaram uma tarde juntos sem dizer quase nada, conversando sobre certas nuanças do inglês na Irlanda que intrigavam Burroughs (Beckett quase não falou, só disse uma frase que Burroughs sempre considerou o maior elogio que recebeu: "Você é um escritor"). Ou a amizade entre Hannah Arendt e Mary McCarthy, fantástica, da qual nos ficou a correspondência.
Ou a amizade de Gombrowicz com o poeta Carlos Mastronardi, que sempre seguia o mesmo roteiro. Mastronardi, que era um homem muito fino e discreto, um grande noctâmbulo e um poeta extraordinário que em toda a vida escreveu um único livro, esperava por Gombrowicz no Querandí, um café de Buenos Aires, tomando um chá, e o amigo sempre chegava um pouco afobado. Mastronardi o recebia com gentileza e perguntava: "Como vai, Gombrowicz?". E Gombrowicz sempre lhe dizia: "Calma, Mastronardi, por favor". Como se Mastronardi estivesse tomado por uma emoção excessiva pelo simples fato de cumprimentá-lo com gentileza. "Calma, Mastronardi, por favor" foi, durante vários anos, um dos lemas da minha juventude.

O debate acima foi publicado no jornal espanhol "El País" em 3/3/2001.
Tradução de Sergio Molina.


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