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O ceticismo da preguiça
MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação
A partir de amanhã, quando será lançado o livro "Olho-de-Corvo", o leitor de língua portuguesa
poderá ter acesso àquele que certamente é o autor mais polêmico
da literatura coreana deste século.
Um privilégio quase exclusivo do
mundo lusófono, já que não há
noutras línguas ocidentais edições dedicadas a este escritor.
Trata-se de Yi Sáng (1910-1937),
poeta e prosador que, tendo vivido escassos 27 anos, conseguiu
produzir uma obra hoje reconhecida como uma espécie de divisor
de águas e enigma central da moderna cultura coreana. Os motivos para isso são muitos.
Nascido Kim Hé-kyóng, nome
que pode ser traduzido por algo
como "vastidão do mar", o escritor resolveu adotar aos 23 anos o
nome Yi Sáng (pronuncia-se "i-sám", com "a" aberto), que significa literalmente "sr. Caixa", reduzindo e invertendo o sentido de
sua "marca" de origem. Foi também naquele ano, em 1933, que Yi
Sáng deixou o emprego de arquiteto na Administração Central de
Josón (antigo nome da Coréia),
passando a dedicar-se exclusivamente à literatura e à vida dos cafés -tendo sido inclusive proprietário de alguns, todos levados
rapidamente à falência.
O ano de seu nascimento, 1910,
foi também o da ocupação da Coréia pelo Japão, que iria durar até
o final da Segunda Guerra, em
1945. Portanto Yi Sáng passou toda a vida em um país invadido,
subjugado e militarizado. Como
era de prever, o contexto político
no início dos anos 30, período
mais fértil e criativo do poeta, pesava sobre todos os coreanos, e a
literatura do país sufocava sob o
imperativo do engajamento e da
resistência aos japoneses. É desse
mesmo período a polêmica entre
"engajados" (vistos positivamente pela crítica) e "esteticistas" (tidos como alienados), entre os
quais Yi Sáng foi logo incluído.
Entretanto Yi Sáng ia sacando
de sua "caixa" pequenos textos
"indecifráveis" e "herméticos",
refratários a qualquer tipo de engajamento, ao mesmo tempo em
que definhava sob os rigores de
uma tuberculose tratada por ele à
base de álcool e noites insones.
Sua aura de maldito, boêmio e vagabundo era o oposto exato do
que se esperava de um escritor coreano naqueles anos.
Da geração de Yi Sáng esperava-se uma obra militante, afirmativa
-e poucos autores experimentaram e expressaram com tanta violência a rejeição à vida ativa quanto Yi Sáng. "A sociedade humana
me era estranha", declara o protagonista (ele mesmo chamado Yi
Sáng) de seu conto mais famoso,
"Asas", escrito em 35. Isso lhe valeu o ataque e a incompreensão
dos seus contemporâneos, que
qualificaram seus textos de "delírios de um demente", mas também a defesa incondicional de um
grupo crescente de admiradores.
O auge da polêmica veio com a
publicação da série de poemas
"Olho-de-Corvo" (1934), que
posteriormente se converteu num
fetiche para os cultores da poesia
experimental. O projeto original
era selecionar 30 poemas de um
total de 2.000 e publicá-los diariamente no jornal "Jo-Són-Jung-Ang", de Seul, o mais importante
na época. Na metade do caminho,
porém, o editor do jornal teve de
pedir demissão diante dos protestos furiosos do público, que encheram a redação de cartas indignadas. Assim, dos 30 poemas previstos saíram apenas 15, todos incluídos na edição brasileira.
Nessas pequenas composições
Yi Sáng destrói "a golpes de martelo" toda a tradição poética
oriental, assimilando -não se sabe se conscientemente ou não-
alguns procedimentos típicos das
vanguardas européias do início
do século e incluindo outros, radicalmente seus. Em vez de criar
uma literatura
edificante, talhada ao gosto
do senso comum, Yi Sáng
estilhaçou a escrita coreana,
escarneceu das
ciências, criou
um "Deus de
for0mas
a0tar0ra0ca0
das" (a desarticulação das sílabas era uma de
suas marcas), cunhou neologismos, flertou com o suicídio e projetou obsessivamente imagens de
uma rara estranheza.
Toda sua obra -ou pelo menos
esta incluída na antologia brasileira, que reúne não só os 15 poemas
de "Olho-de-Corvo", mas também os contos e escritos mais conhecidos- é feita de uns poucos
motivos recorrentes, fixados em
composições minimalistas e
claustrofóbicas: a mutilação física, a regressão a estados pré-conscientes, a incomunicabilidade, a
inércia. No obscuro universo do
"sr. Caixa" respira-se um tédio e
uma preguiça insuportáveis, elevados porém à condição de minúsculas tragédias.
Para o leitor ocidental é impossível não evocar a literatura de
Franz Kafka e de Samuel Beckett,
aos quais Yi Sáng está ligado por
"afinidades eletivas". Com o primeiro, parece partilhar a mesma
sorte de coisa inacabada, a mesma
transfiguração da realidade cotidiana numa paisagem simultaneamente familiar e fantasmagórica, povoando seus contos de
personagens que estão quase
sempre na fronteira do humano.
Com o segundo, parece afinar-se
no mesmo diapasão das opções
formais, recorrendo às estruturas
circulares, especulares e iterativas
que culminam na corrosão total
da linguagem.
Os personagens de Yi Sáng, entre os quais ele frequentemente se
inclui e imiscui, vivem todos sob
um medo pânico (como no "Poema 1" ou no conto "Registro de
Pânico"), que tem muito a ver
com o modo como as crianças experimentam o mundo. O pânico é
sucedido pela imobilidade que é
sucedida pela preguiça e pelo sono. É como se, diante de um mundo tornado incompreensível em
suas diversas esferas -ética, política, científica, religiosa, doméstica-, não restasse senão o recolhimento no bocejo cético.
Arquiteto de
formação, com
veleidades de
pintor, Yi Sáng
explorou a visualidade e os
recursos gráficos da escrita
coreana como
nenhum outro.
Mas, ao contrário da poesia experimental mais corrente, cujo apagamento da subjetividade foi muitas vezes levado à condição de dogma,
Yi Sáng não quis expurgá-la dessa
"excessiva autoconsciência", vista
por ele como "característica e enfermidade do homem moderno"
("Tédio", pág. 105).
Poucos meses antes de morrer,
Yi Sáng saiu da Coréia pela primeira e última vez. Partiu para
Tóquio, onde foi preso e torturado, certamente por ter sido confundido com um dos membros
da resistência coreana. Em
"Asas", hoje citado em todas as
antologias, Yi Sáng escreveu: "É
só irmos caminhando pelo mundo assim mancando sem fim, as
verdades sendo verdades e os
mal-entendidos sendo mal-entendidos. Será que não é bem assim?".
A OBRA
Olho-de-Corvo - Yi Sáng. Trad.
Yun Jung Im. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP
01401-000, SP, tel. 0/xx/11/885-8388). 264 págs. R$ 22,00.
LANÇAMENTO
"Olho-de-Corvo" será lançado amanhã, a partir das 19h, na Casa das Rosas (av. Paulista, 37, tel. 0/xx/11/251-5271, SP).
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