São Paulo, Domingo, 12 de Setembro de 1999
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O ceticismo da preguiça

MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação

A partir de amanhã, quando será lançado o livro "Olho-de-Corvo", o leitor de língua portuguesa poderá ter acesso àquele que certamente é o autor mais polêmico da literatura coreana deste século. Um privilégio quase exclusivo do mundo lusófono, já que não há noutras línguas ocidentais edições dedicadas a este escritor. Trata-se de Yi Sáng (1910-1937), poeta e prosador que, tendo vivido escassos 27 anos, conseguiu produzir uma obra hoje reconhecida como uma espécie de divisor de águas e enigma central da moderna cultura coreana. Os motivos para isso são muitos.
Nascido Kim Hé-kyóng, nome que pode ser traduzido por algo como "vastidão do mar", o escritor resolveu adotar aos 23 anos o nome Yi Sáng (pronuncia-se "i-sám", com "a" aberto), que significa literalmente "sr. Caixa", reduzindo e invertendo o sentido de sua "marca" de origem. Foi também naquele ano, em 1933, que Yi Sáng deixou o emprego de arquiteto na Administração Central de Josón (antigo nome da Coréia), passando a dedicar-se exclusivamente à literatura e à vida dos cafés -tendo sido inclusive proprietário de alguns, todos levados rapidamente à falência.
O ano de seu nascimento, 1910, foi também o da ocupação da Coréia pelo Japão, que iria durar até o final da Segunda Guerra, em 1945. Portanto Yi Sáng passou toda a vida em um país invadido, subjugado e militarizado. Como era de prever, o contexto político no início dos anos 30, período mais fértil e criativo do poeta, pesava sobre todos os coreanos, e a literatura do país sufocava sob o imperativo do engajamento e da resistência aos japoneses. É desse mesmo período a polêmica entre "engajados" (vistos positivamente pela crítica) e "esteticistas" (tidos como alienados), entre os quais Yi Sáng foi logo incluído.
Entretanto Yi Sáng ia sacando de sua "caixa" pequenos textos "indecifráveis" e "herméticos", refratários a qualquer tipo de engajamento, ao mesmo tempo em que definhava sob os rigores de uma tuberculose tratada por ele à base de álcool e noites insones. Sua aura de maldito, boêmio e vagabundo era o oposto exato do que se esperava de um escritor coreano naqueles anos.
Da geração de Yi Sáng esperava-se uma obra militante, afirmativa -e poucos autores experimentaram e expressaram com tanta violência a rejeição à vida ativa quanto Yi Sáng. "A sociedade humana me era estranha", declara o protagonista (ele mesmo chamado Yi Sáng) de seu conto mais famoso, "Asas", escrito em 35. Isso lhe valeu o ataque e a incompreensão dos seus contemporâneos, que qualificaram seus textos de "delírios de um demente", mas também a defesa incondicional de um grupo crescente de admiradores.
O auge da polêmica veio com a publicação da série de poemas "Olho-de-Corvo" (1934), que posteriormente se converteu num fetiche para os cultores da poesia experimental. O projeto original era selecionar 30 poemas de um total de 2.000 e publicá-los diariamente no jornal "Jo-Són-Jung-Ang", de Seul, o mais importante na época. Na metade do caminho, porém, o editor do jornal teve de pedir demissão diante dos protestos furiosos do público, que encheram a redação de cartas indignadas. Assim, dos 30 poemas previstos saíram apenas 15, todos incluídos na edição brasileira.
Nessas pequenas composições Yi Sáng destrói "a golpes de martelo" toda a tradição poética oriental, assimilando -não se sabe se conscientemente ou não- alguns procedimentos típicos das vanguardas européias do início do século e incluindo outros, radicalmente seus. Em vez de criar uma literatura edificante, talhada ao gosto do senso comum, Yi Sáng estilhaçou a escrita coreana, escarneceu das ciências, criou um "Deus de for0mas a0tar0ra0ca0 das" (a desarticulação das sílabas era uma de suas marcas), cunhou neologismos, flertou com o suicídio e projetou obsessivamente imagens de uma rara estranheza.
Toda sua obra -ou pelo menos esta incluída na antologia brasileira, que reúne não só os 15 poemas de "Olho-de-Corvo", mas também os contos e escritos mais conhecidos- é feita de uns poucos motivos recorrentes, fixados em composições minimalistas e claustrofóbicas: a mutilação física, a regressão a estados pré-conscientes, a incomunicabilidade, a inércia. No obscuro universo do "sr. Caixa" respira-se um tédio e uma preguiça insuportáveis, elevados porém à condição de minúsculas tragédias.
Para o leitor ocidental é impossível não evocar a literatura de Franz Kafka e de Samuel Beckett, aos quais Yi Sáng está ligado por "afinidades eletivas". Com o primeiro, parece partilhar a mesma sorte de coisa inacabada, a mesma transfiguração da realidade cotidiana numa paisagem simultaneamente familiar e fantasmagórica, povoando seus contos de personagens que estão quase sempre na fronteira do humano. Com o segundo, parece afinar-se no mesmo diapasão das opções formais, recorrendo às estruturas circulares, especulares e iterativas que culminam na corrosão total da linguagem.
Os personagens de Yi Sáng, entre os quais ele frequentemente se inclui e imiscui, vivem todos sob um medo pânico (como no "Poema 1" ou no conto "Registro de Pânico"), que tem muito a ver com o modo como as crianças experimentam o mundo. O pânico é sucedido pela imobilidade que é sucedida pela preguiça e pelo sono. É como se, diante de um mundo tornado incompreensível em suas diversas esferas -ética, política, científica, religiosa, doméstica-, não restasse senão o recolhimento no bocejo cético.
Arquiteto de formação, com veleidades de pintor, Yi Sáng explorou a visualidade e os recursos gráficos da escrita coreana como nenhum outro. Mas, ao contrário da poesia experimental mais corrente, cujo apagamento da subjetividade foi muitas vezes levado à condição de dogma, Yi Sáng não quis expurgá-la dessa "excessiva autoconsciência", vista por ele como "característica e enfermidade do homem moderno" ("Tédio", pág. 105).
Poucos meses antes de morrer, Yi Sáng saiu da Coréia pela primeira e última vez. Partiu para Tóquio, onde foi preso e torturado, certamente por ter sido confundido com um dos membros da resistência coreana. Em "Asas", hoje citado em todas as antologias, Yi Sáng escreveu: "É só irmos caminhando pelo mundo assim mancando sem fim, as verdades sendo verdades e os mal-entendidos sendo mal-entendidos. Será que não é bem assim?".



A OBRA
Olho-de-Corvo - Yi Sáng. Trad. Yun Jung Im. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/885-8388). 264 págs. R$ 22,00.



LANÇAMENTO
"Olho-de-Corvo" será lançado amanhã, a partir das 19h, na Casa das Rosas (av. Paulista, 37, tel. 0/xx/11/251-5271, SP).




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