São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2008

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+Literatura

O Nobel nômade


Anunciado na última quinta como ganhador do prêmio deste ano, o escritor francês Le Clézio sintetiza gosto pela ecologia e por culturas não-européias

IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Considerado "mais nômade que francês" pela Academia Sueca, que acaba de lhe outorgar o Prêmio Nobel de Literatura deste ano, Jean-Marie Gustave Le Clézio é o caso típico de desenraizado que encontra no conflito das vivências e na negação dos valores estabelecidos a própria razão de seu existir. Filho de pai inglês e mãe francesa, desde a infância viveu num ambiente de perfeito bilingüismo, e seus deslocamentos espaciais, que envolveram três continentes, fizeram com que seus horizontes se alargassem e, ao mesmo tempo, tornassem conflitante sua visão do mundo. Quando começou a escrever com o intuito de publicar, Le Clézio morava na Inglaterra e pretendia editar-se em inglês, mas logo passou a compor em francês, talvez por oposição à colonização inglesa das ilhas Maurício, pequeno país situado na parte ocidental do oceano Índico, para onde emigraram no passado seus ancestrais bretões. É ele próprio quem exalta o idioma num artigo escrito em 1985: "Língua viva, frágil, que me une ao começo inexplicável da linguagem, com aquela espécie de rumor feito de música, de dança, de signos". Le Clézio obteve grande atenção da crítica literária desde seu primeiro romance, "Le Procès-Verbal" (1963). Surgido numa época pós-existencialista e guardando ainda alguns laivos de Camus e Sartre, o jovem escritor de 23 anos procurava elevar o discurso acima do coloquialismo dominante, dando-lhe novamente o poder da invocação da realidade essencial. Já a essa altura, escrever, para ele, era um ato de sobrevivência: "Das duas, uma: ou nos arriscamos a nos deixar devorar pela literatura, ou por nós mesmos. Se nos deixamos devorar por nós mesmos, ficamos loucos. Se nos deixamos devorar pela literatura, nos tornamos escritores". Mesmo desde as obras iniciais, Le Clézio mostrava-se um autor comprometido com a ecologia, atitude que se torna enfática em suas obras posteriores, como "Terra Amata" (1967), "Le Livre des Fuites" (1969), "La Guerre" (1970) e "Les Géants" (1973). Ao que se seguiu o período que focalizava sobretudo a linguagem, a incapacidade da expressão total, a palavra como início da própria existência. Mas sua consagração definitiva ocorre em 1980, com a publicação de "Désert ("O Deserto", pela Brasiliense). Segundo o comitê do Nobel, a obra contém "imagens magníficas de uma cultura perdida no deserto do Norte da África, em contraste com a descrição da Europa vista pelos olhos dos imigrantes indesejados".

Paraísos terrestres
Le Clézio incursiona igualmente pela cultura indiana, traduzindo as grandes obras da tradição hindu, viaja longamente pelo México e a América Central, abandonando as grandes cidades à procura de uma nova realidade espiritual. Mais recentemente, seu fascínio pelos paraísos terrestres se manifesta em "Ourania" (2005) e "Raga" (2006), "em que documenta as formas de vida nas ilhas do oceano Índico que se arriscam a desaparecer com o avançar da globalização". Em trabalhos ainda mais recentes -como "Ballaciner" (2007), que sairá no Brasil pela Cosac Naify-, discorre de maneira extremamente pessoal sobre a arte cinematográfica e a importância do cinema em sua vida. Le Clézio manifestou a influência de Euclydes da Cunha na composição de seu romance "A Quarentena": "Eu diria que, ao começar a escrevê-lo, quis fazer um livro que ficasse entre o "Kidnapped" e "Os Sertões", isto é, entre uma aventura literária e uma reportagem".

IVO BARROSO é poeta e tradutor.



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