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Contra a farsa discursiva
Descrédito das promessas
dos candidatos pode
estar abrindo caminho para uma política mais responsável
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JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
O
primeiro turno
das eleições municipais de 2008 nos
trouxe surpresas.
Não houve a maré
vermelha, pelo menos do ponto
de vista estratégico, tal como
era esperada pela imprensa, o
PMDB se fortaleceu como a
noiva mais cobiçada do pedaço
e o PSDB tende a manter e até
mesmo conquistar posições
importantes na luta política.
Também emergem novas lideranças. Fernando Gabeira
[PV] vai para o segundo turno
na cidade do Rio de Janeiro como se tivesse mergulhado na
fonte da juventude. Numa cidade cuja política tem se deteriorado a cada passo, onde o
crime organizado pressiona
eleitores a ponto de a Justiça
Eleitoral precisar acionar o
Exército para garantir a livre
expressão das vontades, um
candidato de bem -e não receio usar essa palavra- disputa
a prefeitura, no mínimo se afirmando como um político acatado por ter opiniões definidas.
Desconfiança
O desempenho inesperadamente fraco do trio Aécio-Fernando Pimentel-Marcio Lacerda [respectivamente, PSDB, PT
e PSB, em Belo Horizonte] nos
faz desconfiar daquela disputa
política que não é nem cara
nem coroa.
Não é a trilha que tem caracterizado o lulismo? Este tem
engolido qualquer alteridade
política, desidratando as oposições, que, sem rumo, em vez de
perguntar pelo país que queremos, tentam se distinguir na
base do grito.
Creio que errou Aécio Neves
ao procurar desenhar uma liderança política dissolvendo ainda mais a polaridade ideológica
entre PT e PSDB, que está sob a
ameaça de se reduzir a uma disputa pelo poder meramente
enquanto poder.
Não há dúvida de que numa
eleição municipal preponderam fatores locais, mas me parece que o eleitor desconfia de
uma candidatura que unicamente se propõe a ser eficaz
num campo onde todas as vacas são pardas.
Não é contra isso que Leonardo Quintão [PMDB-MG] se
firmou como voz solitária e dissonante, valendo pela diferença?
Creio que dissonância semelhante ajudou Gilberto Kassab
[DEM] a sobrepujar Geraldo
Alckmin [PSDB] e Marta Suplicy [PT], saindo com vantagem ponderável na disputa do
segundo turno.
Mas no que ele foi diferente?
Tudo parece indicar o contrário. Os prefeitos em exercício
tendem a ser reeleitos. Pudera,
em geral os orçamentos municipais aumentaram quase 50%
e são poucos aqueles que deixam de utilizar a máquina pública a seu favor.
[A pesquisadora] Fátima Jordão me apontou uma diferença
interessante: enquanto a campanha de Marta foi mais nacional, inclusive usando imagens
que seriam significativas no
Nordeste, mas pouco relevantes para um paulistano, Kassab
acentuou o lado municipal de
seu programa, mostrou a eficácia da sua gestão. Ele chegou
mais perto do eleitor, mostrou-se, penso eu, mais verdadeiro.
É de notar que, na pesquisa
Datafolha publicada na quinta
passada, em que Kassab aparece 17 pontos à frente de Marta,
a comparação dos votos estratificados mostra uma inversão
significativa: Kassab sobe conforme aumentam a escolaridade e a renda familiar dos eleitores, enquanto Marta cresce
conforme elas diminuem.
Caberia dizer que Marta está
mais à esquerda do que Kassab,
quando obtém maior penetração nas camadas de renda e escolaridade mais baixas? Hoje
em dia é preciso ter muito cuidado no emprego do conceito
de esquerda. Esquerdista não é
apenas o político que tem mais
apelo popular, pois, sob esse
critério, Benito Mussolini teria
sido um político de esquerda.
Antes de tudo, não cabe à esquerda procurar atravessar o
véu retórico que encobre toda a
política? Não deveria ser ela
mais veraz do que um verdadeiro político? Seria ridículo imaginar Kassab representando a
esquerda, mas, segundo seu
comportamento, não pode vir a
ser um afluente dela?
Cada vez mais a política contemporânea se envolve numa
farsa discursiva. Nisso o lulismo é exemplar. O presidente
Lula costuma falar o que lhe
vem na veneta, mas com tanta
convicção e tal capacidade de
convencimento que parece ser
o arauto da verdade popular.
Santa incoerência
Quem disso duvida, repare
no que tem dito sobre a crise
econômico-financeira, desde
quando imputou toda a responsabilidade "ao Bush" até agora,
quando diz ter assumido o leme
do navio no meio da tempestade. Aliás, fazer sem levar em
conta o que já disse é uma das
características do movimento
político encabeçado por ele.
E somos agradecidos por essa incoerência. O que seria do
país se tivesse feito tudo o que
já prometeu durante sua vida
política?
O discurso político sem peias
é hoje fenômeno universal.
Basta prestar atenção ao que
dizem Silvio Berlusconi [premiê italiano] e Nicolas Sarkozy
[presidente francês] para que
se perceba que tendem igualmente a falar o que lhes passa
pela cabeça.
Interessante é que, conforme
se acirra a disputa entre Barack
Obama e John McCain, mais
este atira para todos os lados,
enquanto aquele contorce o
seu discurso, dotado de uma
elegância retórica ímpar, para
vir mais tarde agir como presidente conforme o peso das circunstâncias.
Em resumo, o político contemporâneo fala o que vai fazer,
mas de tal modo que possa mais
tarde fazer o contrário.
Exagero no caso de Obama,
pois, embora o mote da mudança ainda se apresente vazio, a
maneira pela qual organiza sua
equipe e convoca a população
para uma nova fase da política
americana já vai adquirindo
um contorno de verdade.
Aproximar o discurso do que
se pode tentar fazer verdadeiramente me parece uma das tarefas políticas que nos incumbem no momento. Não é porque o capital financeiro se deslocou da economia real que sua
crise a deixará incólume.
"Mutatis mutandis", o apodrecimento do discurso político não pode estar abrindo caminho para uma política mais
responsável no que ela afirma e
no que ela faz? A democracia
ensina o eleitor a pensar. Não
está na hora de os políticos se
mostrarem mais acurados e
mais verazes a respeito de tudo
aquilo que prometem? Estas
eleições de 2008 não fazem
transparecer essa demanda?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.
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