São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2006

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Brasil e América Latina

O bode expiatório

GLÁUCIO SOARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Muitos dizem e repetem que os EUA são um país voltado para si mesmo, o que é verdade; porém, poucos se lembram de que, por contingência geográfica, os países grandes, inclusive o Brasil, tendem a ser voltados para si mesmos. Primeiro, o fato: sobre o que legisla o Congresso americano? Stephen Purpura, da Universidade Harvard, e Dustin Hillard, da Universidade de Washington, classificaram os projetos de lei do Legislativo americano.
As questões internacionais representavam apenas 2% do total dos projetos, e as referentes ao comércio internacional, outros 4%. Muito pouco para um país que ocupa uma posição de muito destaque no cenário internacional. A produção legislativa, que já é reduzida, está muito concentrada nos países mais relevantes para os EUA: Reino Unido, outros países da União Européia, China, Iraque, Japão etc.
Sobra pouco para a América Latina e, dentro dela, uma percentagem altíssima está dedicada ao México e a Cuba. Algumas pessoas, sabendo que nos EUA a apresentação de projetos não é uma das prerrogativas do Executivo, concentrando-se no Legislativo, talvez superdimensionem as conseqüências da vitória democrata. Pois, no plano da retórica política, o mundo escuta os chefes de Estado, e não os deputados e senadores.

Blindagem
O sistema distrital influencia a legislação e a fidelidade dos congressistas ao seu distrito. A maioria democrata pode acarretar limitações ao Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), com mais ênfase na defesa do emprego nos EUA e menos peso para a defesa dos interesses das empresas dos EUA que criam emprego nos demais países.
Além da política externa dos EUA, devem-se considerar as implicações da guinada democrata para a política externa da América Latina, mas talvez a grande mudança só se faça após a saída de Bush.
Afinal, o extremismo de Bush funciona como uma excelente blindagem para os nossos extremistas latino-americanos. O presidente venezuelano, Hugo Chávez, ficaria esvaziado e muitas das suas agressões perderiam sentido numa administração americana mais de centro, mais internacional, mais cordial. É mais fácil ocultar os erros de uma política externa com a presença de Bush do quem sem ela. Como ficaria o antiamericanismo com a primeira presidente mulher dos EUA, como Hillary Clinton [democrata], ou com um primeiro (e pouco provável) presidente negro [como Barack Obama, senador democrata]?
Várias das visões de Bush (machista, fundamentalista cristão, ultra-reacionário, da "supremacia branca") perderiam sentido com sua saída. O norte da atual retórica populista latino-americana é... o Norte, mas um Norte dominado por Bush e pelos republicanos de extrema direita.

Contradições
Ela terá que mudar, e os conflitos entre países latino-americanos poderão ganhar espaço. Lula trouxe Bush para os debates presidenciais. Teria como trazer Hillary Clinton? Sem Bush, teria como evitar lidar com as óbvias contradições da sua política externa? Sem Bush, como lidaria com o tropeço da Bolívia e as crescentes dificuldades com o intervencionista Chávez?
A vitória democrata, se for apenas o primeiro passo para uma vitória maior nas eleições presidenciais, talvez tenha mais impacto sobre a política externa de vários países latino-americanos, incluindo o Brasil, do que sobre a política latino-americana dos EUA.


GLÁUCIO SOARES é sociólogo e pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).


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