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Brasil e América Latina
O bode expiatório
GLÁUCIO SOARES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Muitos dizem e
repetem que os
EUA são um
país voltado para si mesmo, o
que é verdade; porém, poucos
se lembram de que, por contingência geográfica, os países
grandes, inclusive o Brasil, tendem a ser voltados para si mesmos. Primeiro, o fato: sobre o
que legisla o Congresso americano? Stephen Purpura, da
Universidade Harvard, e Dustin Hillard, da Universidade de
Washington, classificaram os
projetos de lei do Legislativo
americano.
As questões internacionais
representavam apenas 2% do
total dos projetos, e as referentes ao comércio internacional,
outros 4%. Muito pouco para
um país que ocupa uma posição de muito destaque no cenário internacional.
A produção legislativa, que já
é reduzida, está muito concentrada nos países mais relevantes para os EUA: Reino Unido,
outros países da União Européia, China, Iraque, Japão etc.
Sobra pouco para a América
Latina e, dentro dela, uma percentagem altíssima está dedicada ao México e a Cuba.
Algumas pessoas, sabendo
que nos EUA a apresentação de
projetos não é uma das prerrogativas do Executivo, concentrando-se no Legislativo, talvez
superdimensionem as conseqüências da vitória democrata.
Pois, no plano da retórica política, o mundo escuta os chefes
de Estado, e não os deputados e
senadores.
Blindagem
O sistema distrital influencia
a legislação e a fidelidade dos
congressistas ao seu distrito. A
maioria democrata pode acarretar limitações ao Nafta
(Acordo de Livre Comércio da
América do Norte), com mais
ênfase na defesa do emprego
nos EUA e menos peso para a
defesa dos interesses das empresas dos EUA que criam emprego nos demais países.
Além da política externa dos
EUA, devem-se considerar as
implicações da guinada democrata para a política externa da
América Latina, mas talvez a
grande mudança só se faça após
a saída de Bush.
Afinal, o extremismo de Bush
funciona como uma excelente
blindagem para os nossos extremistas latino-americanos.
O presidente venezuelano,
Hugo Chávez, ficaria esvaziado
e muitas das suas agressões
perderiam sentido numa administração americana mais de
centro, mais internacional,
mais cordial. É mais fácil ocultar os erros de uma política externa com a presença de Bush
do quem sem ela. Como ficaria
o antiamericanismo com a primeira presidente mulher dos
EUA, como Hillary Clinton [democrata], ou com um primeiro
(e pouco provável) presidente
negro [como Barack Obama,
senador democrata]?
Várias das visões de Bush
(machista, fundamentalista
cristão, ultra-reacionário, da
"supremacia branca") perderiam sentido com sua saída. O
norte da atual retórica populista latino-americana é... o Norte,
mas um Norte dominado por
Bush e pelos republicanos de
extrema direita.
Contradições
Ela terá que mudar, e os conflitos entre países latino-americanos poderão ganhar espaço.
Lula trouxe Bush para os debates presidenciais. Teria como
trazer Hillary Clinton? Sem
Bush, teria como evitar lidar
com as óbvias contradições da
sua política externa? Sem
Bush, como lidaria com o tropeço da Bolívia e as crescentes
dificuldades com o intervencionista Chávez?
A vitória democrata, se for
apenas o primeiro passo para
uma vitória maior nas eleições
presidenciais, talvez tenha
mais impacto sobre a política
externa de vários países latino-americanos, incluindo o Brasil,
do que sobre a política latino-americana dos EUA.
GLÁUCIO SOARES é sociólogo e pesquisador
do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio
de Janeiro (Iuperj).
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