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Cultura e comportamento
Imaginário incorreto
TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Com a derrota dos republicanos, alguns
amigos americanos,
professores universitários, talvez se preocupem menos com os livros
que incluirão nas bibliografias
de seus cursos. Essa pode parecer uma situação surpreendente "na terra da liberdade".
Mas foi real nos anos duros
do republicanismo fundamentalista pós-2001. Colegas relataram terem sido chamados
por seus diretores para "conversar" sobre livros indicados
que haviam provocado a rejeição de alunos e seus pais.
E não está apagada da memória a série de correios eletrônicos que então trocamos
internacionalmente para protestar contra a opressão sobre a
universidade nos EUA.
Esse tipo de coisa pode mudar agora? É o que "esperam"
alguns amigos. Esperar não é
ter certeza. E isso porque, na
perspectiva da universidade, o
problema não é só a pressão do
autoritarismo interesseiro-patrioteiro dos republicanos radicais. Problema igual ou maior
continua a ser o politicamente
correto, que não dá sinais de
arrefecer apenas porque os democratas venceram.
Há algum tempo, uma professora (da Costa Leste, não do
"interior profundo") exibiu um
filme numa aula sobre cultura.
Dias depois, foi chamada pela
direção: um aluno "não-ocidental" relatara que sua "sensibilidade cultural" fora ofendida
pelo filme. A professora não sofreu as sanções pedidas. Mas se
acautelou. E, com isso, a essência da universidade já estava,
essa sim, ofendida.
O multiculturalismo e o relativismo ideológico (não o filosófico) não são uma invenção
da universidade republicana,
pelo contrário: seus promotores foram majoritariamente
eleitores dos democratas...
A diferença entre relativismo
ideológico e filosófico é que este é um princípio da razão crítica enquanto aquele é uma arma político-partidária, que não
se desarma com a mudança do
voto de vermelho para azul.
Irão diminuir os escândalos
culturais como aquele ao redor,
em 1989, da obra de Andrés
Serrano "Piss Christ" (foto de
um crucifixo banhada no jorro
da urina do artista) ou das homofotos de Mapplethorpe e
que levaram ao corte de dinheiro público para a arte sob o governo de Bush pai? (O que não
se faz, na cultura, em nome da
defesa dos dinheiros públicos,
não é mesmo?) Os amigos americanos assim esperam.
A meu ver, desde aquela data,
lá como aqui, as artes passaram
e passam por um processo de
domesticação tão intenso que
talvez nem surjam novos escândalos a serem tolerados...
Há, enfim, algum indício de
mudança cultural positiva nessa eleição americana? Talvez
sim: a percepção da corrupção
no governo como algo inaceitável. Aqui, pelo contrário, como
disse Simmel, o êxito social
abafa a percepção da corrupção: se alguém sobe muito na
vida, a corrupção que o acompanha ou que provoca não é levada em conta. Isso também é
cultura -da espécie pior.
E outra mudança cultural:
uma mulher na presidência da
Câmara, a democrata Nancy
Pelosi. Mulheres na política
não são sinônimo necessário
de avanço cultural.
O sexo (ou "gênero", como
gostam de dizer por lá, nesse
modo politicamente correto
que escamoteia outra dimensão da vida e do mundo) não é
maior que a cultura -e várias
mulheres que entraram na política nada de novo ou de bom
trouxeram. Lá e aqui.
Mas Michelle Bachelet é esperança no Chile e Ségolène
Royal (apesar de sua populista
idéia dos comitês de vigilância
popular ao pior estilo maoísta),
outra na França.
A esperança atua sobre o
imaginário, e o imaginário em
cultura é tudo. Amigos americanos estão com o imaginário
ligado, neste momento. Claro
que sabem, e temem, que muita coisa ruim pode acontecer
antes do fim do governo Bush.
TEIXEIRA COELHO é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo.
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