São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2006

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Cultura e comportamento

Imaginário incorreto

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com a derrota dos republicanos, alguns amigos americanos, professores universitários, talvez se preocupem menos com os livros que incluirão nas bibliografias de seus cursos. Essa pode parecer uma situação surpreendente "na terra da liberdade".
Mas foi real nos anos duros do republicanismo fundamentalista pós-2001. Colegas relataram terem sido chamados por seus diretores para "conversar" sobre livros indicados que haviam provocado a rejeição de alunos e seus pais. E não está apagada da memória a série de correios eletrônicos que então trocamos internacionalmente para protestar contra a opressão sobre a universidade nos EUA.
Esse tipo de coisa pode mudar agora? É o que "esperam" alguns amigos. Esperar não é ter certeza. E isso porque, na perspectiva da universidade, o problema não é só a pressão do autoritarismo interesseiro-patrioteiro dos republicanos radicais. Problema igual ou maior continua a ser o politicamente correto, que não dá sinais de arrefecer apenas porque os democratas venceram.
Há algum tempo, uma professora (da Costa Leste, não do "interior profundo") exibiu um filme numa aula sobre cultura. Dias depois, foi chamada pela direção: um aluno "não-ocidental" relatara que sua "sensibilidade cultural" fora ofendida pelo filme. A professora não sofreu as sanções pedidas. Mas se acautelou. E, com isso, a essência da universidade já estava, essa sim, ofendida.
O multiculturalismo e o relativismo ideológico (não o filosófico) não são uma invenção da universidade republicana, pelo contrário: seus promotores foram majoritariamente eleitores dos democratas... A diferença entre relativismo ideológico e filosófico é que este é um princípio da razão crítica enquanto aquele é uma arma político-partidária, que não se desarma com a mudança do voto de vermelho para azul.
Irão diminuir os escândalos culturais como aquele ao redor, em 1989, da obra de Andrés Serrano "Piss Christ" (foto de um crucifixo banhada no jorro da urina do artista) ou das homofotos de Mapplethorpe e que levaram ao corte de dinheiro público para a arte sob o governo de Bush pai? (O que não se faz, na cultura, em nome da defesa dos dinheiros públicos, não é mesmo?) Os amigos americanos assim esperam.
A meu ver, desde aquela data, lá como aqui, as artes passaram e passam por um processo de domesticação tão intenso que talvez nem surjam novos escândalos a serem tolerados...
Há, enfim, algum indício de mudança cultural positiva nessa eleição americana? Talvez sim: a percepção da corrupção no governo como algo inaceitável. Aqui, pelo contrário, como disse Simmel, o êxito social abafa a percepção da corrupção: se alguém sobe muito na vida, a corrupção que o acompanha ou que provoca não é levada em conta. Isso também é cultura -da espécie pior. E outra mudança cultural: uma mulher na presidência da Câmara, a democrata Nancy Pelosi. Mulheres na política não são sinônimo necessário de avanço cultural.
O sexo (ou "gênero", como gostam de dizer por lá, nesse modo politicamente correto que escamoteia outra dimensão da vida e do mundo) não é maior que a cultura -e várias mulheres que entraram na política nada de novo ou de bom trouxeram. Lá e aqui.
Mas Michelle Bachelet é esperança no Chile e Ségolène Royal (apesar de sua populista idéia dos comitês de vigilância popular ao pior estilo maoísta), outra na França.
A esperança atua sobre o imaginário, e o imaginário em cultura é tudo. Amigos americanos estão com o imaginário ligado, neste momento. Claro que sabem, e temem, que muita coisa ruim pode acontecer antes do fim do governo Bush.


TEIXEIRA COELHO é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo.


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