São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2006

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Minorias

A virada hispânica

David Maung - 10.set.2005/Associated Press
Padres, em lados separados da cerca entre México e EUA, rezam em memória dos que morreram ao atravessar a fronteira


MANUELA CARNEIRO DA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que os dois anos do segundo governo Bush, com sua maioria republicana no Congresso, representaram para os chamados hispânicos é sabido. Um muro -ou melhor, uma muralha-, antes de mais nada. Bush queria dar uma no cravo e outra na ferradura. A muralha entre os EUA e o México era para agradar à direita dos republicanos. Essa passou evidentemente no Congresso.
Mas, para não perder o voto hispânico, que vinha aumentando (31% dos votos hispânicos foram para ele nas eleições de 2000 e subiram para 44% na reeleição), Bush queria introduzir também um processo de legalização dos imigrantes ilegais já instalados nos EUA. Essa lei foi rechaçada pelo Congresso. Sobrou o muro.
Só há dois partidos que contam nos EUA, e eles têm representantes em números muito semelhantes. Isso significa que há um grande peso eleitoral possível para minorias organizadas. É a própria estrutura política do país que lhes confere essa oportunidade.
No espectro dito "étnico", o voto hispânico era o voto mais cobiçado pelo Partido Republicano, porque se considera que entre os outros há pouco espaço para crescimento: os negros, por exemplo, votam sistematicamente no Partido Democrata em uma proporção de quase 90%; a estratégia dos republicanos em relação a eles é tentar impedir que votem.

Atração democrata
Nestas eleições para o Congresso, comparando-as com as de 2002, houve um aumento do voto no Partido Democrata em todos os grupos étnicos, tais como os entendem os americanos: o voto asiático democrata passou de 56% em 2002 para 67% agora; quanto aos brancos, passaram de 41% para 48% os que votaram nos democratas.
Mas a subida mais espetacular do voto nos candidatos democratas foi a dos hispânicos: de 53% em 2002, passaram para 73% nas eleições de terça-feira passada. Os números são do "Wall Street Journal".
Por uma série de contingências, incidindo sobre uma estrutura política, pode-se argumentar, como fez [o antropólogo] Marshall Sahlins, que a história extraordinária de Elián Gonzalez -o menino cubano naufragado, cuja mãe morrera tentando aportar na Flórida e que o governo Clinton mandou restituir a seu pai, em Cuba- fez com que os cubanos da Flórida votassem maciçamente contra os democratas em 2000.
A Flórida foi o Estado que decidiu as eleições presidenciais. Em certo sentido, sem o naufrágio de Elián Gonzalez, não teria havido a era Bush e muitas de suas desgraças. Os hispânicos -para continuar usando um termo tipicamente norte-americano, que inclui gente com histórias e interesses diversos, desde cubanos exilados, brasileiros, peruanos, panamenhos mas também uma maioria de mexicanos e guatemaltecos- têm em comum o problema da significativa proporção de imigrantes na ilegalidade que são parentes de imigrantes legalizados e pais de americanos natos.
A cruzada antiimigração ilegal da última década, reforçada depois do 11 de Setembro, só fez aumentar as histórias dramáticas de famílias separadas ou ameaçadas de separação.

Agenda social
Os hispânicos podem ter tido assim um papel decisivo nas viradas da política norte-americana contemporânea. A recíproca não é, no entanto, verdadeira: a mudança no Congresso não significa necessariamente uma mudança no tratamento da questão dos imigrantes.
É mais, por serem em grande medida pobres, que os hispânicos devem se beneficiar com o novo Congresso. Baixar o preço dos remédios, repensar a Guerra do Iraque e repensar os cortes de impostos para os ricos estão na agenda do Partido Democrata.
Para que mude também o tratamento dos imigrantes ilegais, é necessário, entre outras coisas, que a direção do Partido Democrata se imponha sobre seus membros de forma clara. Vários deles foram eleitos com programas anticasamento gay, antiaborto, anti-restrição de armas... e antiimigrantes.


MANUELA CARNEIRO DA CUNHA é antropóloga e professora na Universidade de Chicago.


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