São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2006

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China

O fantasma democrático

LEANDRO KARNAL
ESPECIAL PARA A FOLHA

A posição do público norte-americano sobre a China sempre foi variável. Na década de 1930, por exemplo, os leitores pareciam atraídos pelos camponeses descritos no livro de Pearl Buck ("A Boa Terra", de 1931), ingênuos e destroçados pela fúria da natureza. A invasão japonesa [em 1931, que se tornou guerra aberta em 1937] reforçava a solidariedade dos EUA, especialmente com a divulgação das fotos de crimes de guerra em Nanquim.
Como de hábito, o sentimento positivo não eliminava a xenofobia contra a imigração chinesa. A revolução vitoriosa dos socialistas, em 1949, pintalgou o "perigo amarelo" com tons vermelhos.
Aparentemente, a vitória democrata deveria ser uma chance de uma política externa mais flexível e de proximidade com países como a China. Isso nem sempre é verdade. Foram os democratas, como Franklin Roosevelt [1933-45], que injetaram milhões de dólares para os arquiinimigos de Mao Tse-tung: os nacionalistas de Chiang Kai-shek.
Também foi um democrata, Harry Truman [1945-53], que, em 1949, constituiu Taiwan como símbolo insular da resistência capitalista. Truman e Lyndon Johnson iniciaram, respectivamente, as guerras da Coréia e do Vietnã. Esses conflitos, potencialmente agressivos sobre o território chinês, foram encerrados por presidentes republicanos.
Finalmente, a aproximação entre o presidente republicano Richard Nixon e Mao foi elaborada por homens visceralmente republicanos, como Henry Kissinger. Na década de 1970, o pai do atual presidente dos EUA serviu como embaixador não-oficial em Pequim, estabelecendo laços crescentes da República Popular da China com a potência capitalista.

Eixo global
Com as reformas chinesas pró-capitalismo cada vez mais evidentes nas décadas de 1980 e 90, o governo americano foi estabelecendo uma aliança econômica que hoje é um dos grandes eixos da economia global. O crescimento do comércio tendeu a atenuar a tradição de crítica de Washington à ausência de direitos humanos.
Outros países, como Cuba, menores em volume de interesses comerciais, parecem praticar mais atentados aos direitos humanos... Os laços de Bush com os chineses pareceram reforçados com os atentados do 11 de Setembro, haja vista a participação financeira chinesa na invasão do Afeganistão. O que representa para esse relativo idílio a vitória legislativa democrata? Toda profecia histórica tende à inutilidade.
Porém poderíamos supor como possibilidades uma dificuldade crescente do Executivo atual dos EUA em conseguir mais verbas para o esforço de contenção em áreas tensas, como Coréia do Norte ou Iraque.
A pauta dos direitos humanos, fortíssima no governo democrata de Jimmy Carter [1977-81], tende a reaparecer com os temas incômodos do Tibete ou da repressão aos estudantes na praça da Paz Celestial [em 1989, quando centenas teriam morrido].
A substituição de uma "realpolitik" centrada exclusivamente em interesses econômicos por um eixo que leve em conta valores como democracia é uma possibilidade desafiadora nas relações triplas entre o presidente dos EUA, o Congresso e a política externa.

Déficit gigantesco
É claro que o déficit gigantesco no comércio entre EUA e China também tem um papel explosivo, pois déficits implicam questões fiscais delicadas e possibilidades de impostos.
Mais impostos são a pedra de toque na sensibilidade do eleitorado norte-americano. A grande novidade das relações EUA-China reside no fato insuperável das relações intensas entre os dois países. O eixo sino-americano não pode mais ser ignorado por um Legislativo democrata ou republicano.
Mas, como foi tradicional na Guerra do Vietnã, a queimadura de napalm só dói, de fato, quando fotografada e exposta no "New York Times". Não existe nada mais interno do que a política externa dos EUA.


LEANDRO KARNAL é chefe do departamento de história do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.


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