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+ história
O historiador Luiz Felipe de Alencastro escreve ao cineasta português sobra o padre Vieira e a escravidão
Carta aberta a Manoel de Oliveira
Luiz Felipe de Alencastro
especial para a Folha
P
rezado mestre. Leio numa gazeta
brasileira que o senhor está preparando um filme sobre o padre Antonio
Vieira. Notícia alvissareira para todos os
que apreciam o seu cinema e as artes de
nosso padre Vieira. Aliás, é justamente
porque o padre Vieira foi também um
baiano de corpo e alma que me permito
expor-lhe algumas idéias.
Sou um fã de sua obra cinematográfica.
Depois de ver o seu filme "Francisca",
que me encantou, consegui entender o
miguelismo, coisa estranha a nós outros
da ex-América portuguesa, engendrados
por uma cultura pós-escravista. Cultura
que jamais respeitou quem trabalha aterra e, por isso mesmo, é incapaz de compreender a mistura de conservadorismo
e fidelidade unindo proprietários e camponeses do Minho oitocentista -lugar
onde rolou o miguelismo e se passa o filme- em torno de d. Miguel contra nosso d. Pedro 1º, o vosso d. Pedro 4º.
Anos mais tarde, assisti a "Non ou a Vã
Glória de Mandar", sobre o colonialismo
português. Ai, devo confessar que fiquei
intrigado. Seu filme, que evoca Alcácer-Quibir (1578) e retrata a guerra recente
nas ex-colônias africanas de Portugal
(1965-1974), fazendo um balanço da presença portuguesa na África, continha algo bizarro: os soldados portugueses cruzando o sertão angolano ou moçambicano dos anos 1970 pareciam os soldados
franceses atravessando um "bled" da Argélia dos anos 1960. Semelhança indevida, pois, como se sabe, a presença portuguesa antecedeu de três séculos e meio a
presença francesa -e européia em geral- na África. Durante esse tempo todo, a empreitada principal dos portugueses no Continente Negro foi o comércio de escravos. Empreitada nem sequer
mencionada em "Non ou a Vã Glória de
Mandar". Nem mesmo pelo jovem tenente português que profere no filme um
severo requisitório contra o colonialismo lusitano na África. Brasileiro, filho de
um país que também fez comércio negreiro, sei que esta história é difícil de ser
assumida.
Sucede, caro mestre, que o desconhecimento da violência praticada pelos portugueses (e brasileiros) na época do tráfico negreiro tem consequências amplas,
gerando, por exemplo, um certo desconforto diante das manifestações portuguesas em favor de Timor Leste.
Quando um homem respeitado e respeitável como o presidente Jorge Sampaio declara na Assembléia Geral da
ONU que o povo de Timor luta pela liberdade há 24 anos, ele parece sugerir
que antes disso -antes de 1975- os timorenses viviam livres e felizes sob a doce tutela portuguesa. Não estaria havendo, na circunstância, um barateamento
do passivo colonial? O fato de apoiar os
timorenses católicos e lusófonos contra a
Indonésia, potência asiática e muçulmana (ah, esses pérfidos mouros), não estará representando também uma maneira
de quitar a baixo preço as dívidas de Portugal com a Ásia e, sobretudo, com a
África ex-portuguesa? Com Angola, onde a pilhagem e a sangria praticada por
Lisboa (e por Pernambuco, pelo Rio de
Janeiro) foi muitíssimo mais devastadora que em qualquer dos territórios portugueses da Ásia? Que viva o povo timorense, que sobreviva entretanto o povo
angolano, vítima de um martírio multissecular que nenhuma força da ONU conseguiu ainda interromper. Desse modo,
"Non ou a Vã Glória de Mandar" é um
grande filme, uma das melhores reflexões sobre o colonialismo europeu. Mas
não dá conta da complexidade da presença portuguesa na África.
Agora, acabo de ver seu filme mais recente, "A Carta" (1999), baseado no clássico da literatura francesa "A Princesa de
Clèves" (1678), de Madame de La Fayette. É difícil falar brevemente desse filme,
feito todo em nuances, sobre a brandura
prazerosa gerada pela paixão inconclusa.
Mas é certo que essa sua obra se incorpora à corrente cultural -caudalosa em
Lisboa nos últimos 25 anos- que reamarra Portugal a seu destino europeu.
Mesmo se o senhor, dando prova mais
uma vez de sua audácia intelectual, inverte as cartas e lusitaniza a França a partir de um livro que não tem nada a ver
com a gente portuguesa. De fato, no seu
filme, a sede parisiense da Fundação
Gulbenkian vira o ponto de referência da
elite francesa, onde pontifica a glamourosa família Silva.
Porém a corrente cultural a que me refiro, caro mestre, não é um mero movimento de "afrancesados", epíteto usado
pelos conservadores lusitanos e brasileiros para combater idéias estrangeiras e
defender o reacionarismo de nossa "autenticidade". Trata-se, muito mais, de
uma corrente em prol da europeização
do destino lusitano, como se a história
portuguesa fosse, desde o tempo dos romanos, uma preparação para entrar na
União Européia e aderir ao euro. Idéia
que atravessa os volumes da "História de
Portugal" (8 volumes, Lisboa, 1994), de
José Mattoso, cujo feitio abusivamente
continentalista Francisco Bethencourt e
Kirti Chaudhuri tentam agora reequilibrar com a sua "História da Expansão
Portuguesa" (5 volumes, Lisboa, 1998).
Idéia presente nos pontos cardeais dos
pesquisadores que desembarcam em
Lisboa.
Assim, o Arquivo da Torre do Tombo,
que concentra a documentação da história continental portuguesa, dispõe de um
novo edifício, imponente, quase faraônico, de carpete macio e ar condicionado.
Enquanto o Arquivo Ultramarino, com a
documentação portuguesa sobre o Brasil, a África e a Ásia, continua enfiado
num edifício mal-ajambrado, onde funcionários dedicados tentam instalar os
pesquisadores em torno de uma única
mesa cercada de fios com tomadas elétricas esparramadas pelo chão.
Simpatias jansenistas
Voltando ao
seu filme "A Carta", há uma cena em que
a princesa de Clèves fala com simpatia do
jansenismo. Nos aproximamos assim de
Pascal e de Vieira, pelo caminho seguinte: defendendo os jansenistas, Pascal, como o senhor sabe, deu, em 1656, uma
traulitada nas teses do espanhol Antonio
de Escobar. Este tal Escobar, como outros jesuítas espanhóis e portugueses,
pretendia que a aquisição de um bem
dispensava seu proprietário de inquirir
as condições da legitimidade da entrada
desse bem no circuito mercantil. Descontextualizado, o enunciado parece
apenas um banal disparate. Posta em
prática no Atlântico Sul, a tese toma outras dimensões. Concretamente, ela significava que os missionários deviam, notadamente na confissão, evitar o questionamento da escravização dos nativos na
África e no Brasil.
Vieira às vezes transigiu com os colonos que escravizavam os índios. Reunidos em São Luís do Maranhão, em 1653,
sob a direção de Vieira, os inacianos haviam explicitado a pergunta mais premente da Amazônia portuguesa, império da escravidão indígena: "Que obrigação tínhamos os confessores (jesuítas)
acerca do pecado, como habitual, em
que viviam todos estes (moradores) com
os cativeiros dos índios, que pela maior
parte se presumem injustos?". Sob a
ameaça do colonato, os jesuítas decidiram que carecia tergiversar. Pondo em
prática a doutrina casuísta inaciana, alvo
da crítica arrasadora de Pascal, Vieira
responde: "Resolveu-se que, a quem não
confessasse deste pecado (de escravização de índios), não tínhamos obrigação
de lhes falar nele" ("Cartas...", tomo 1,
págs. 317-8).
Reconheço que o episódio é marginal.
Mesmo porque o fundamento do pensamento vieirista é o de que a escravidão
dos africanos devia servir de garantia à liberdade dos índios. É isso mesmo, caro
mestre, Vieira é um propagandista do
tráfico negreiro e, em particular, da deportação de angolanos para o Brasil. Em
seu sermão 14, um dos sermões do Rosário pregados para os escravos negros na
Bahia, ele enuncia uma das mais audaciosas justificações ideológicas do tráfico
de africanos:
"Assim, a Mãe de Deus antevendo esta
vossa fé, esta vossa piedade, esta vossa
devoção, vos escolheu de entre tantos
outros de tantas e tão diferentes nações, e
vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que
lá (na África) como vossos pais, vos não
perdêsseis, e cá (no Brasil) como filhos
seus, vos salvásseis. Este é o maior e mais
universal milagre de quantos faz cada
dia, e tem feito por seus devotos a Senhora do Rosário". E reitera, mais adiante:
"Oh, se a gente preta tirada das brenhas
da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a Sua
Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é
senão milagre, e grande milagre!".
Nas esferas do mercado atlântico, a
mão invisível de Deus conduzia o africano para o resgate eterno no Brasil. Milagre, "e grande milagre", resultava nessa
deportação maciça. Graças a Nossa Senhora do Rosário, os africanos estavam
sendo salvos da África e trazidos para o
trabalho redentor nas terras brasileiras.
Essa epifania negreira tem sido pouco
notada pelos atuais comentadores de
Vieira. Mas não escapou ao humanismo
laico de João Francisco Lisboa, historiador maranhense amigo de Alexandre
Herculano, o qual comentou: "Assim,
esse exílio eterno da pátria, e todos esses
horrores da travessia a que desde então
até hoje foram condenados os míseros
africanos, eram uma atenuação do mal, e
uma verdadeira vantagem, no conceito
do missionário jesuíta!".
A defesa dos escravocratas
Como
o senhor está atravessando o século 20,
Vieira atravessou o século 17. Despontou
como um brilhante noviço dos jesuítas
da Bahia, aos 18 anos de idade, quando
redigiu a "Carta Ânua" (1626), na qual
explicitava, entre outras reflexões, a necessidade do trato angolano. Setenta e
dois anos mais tarde, às vésperas da
morte, entrevado, cego, quase surdo,
mas sempre dono da maior inteligência
estratégica do império luso, ele ainda ditava cartas reiterando o mesmo imperativo. Em seu último texto -cinco dias
antes de morrer no Colégio de Salvador
(1697)-, Vieira assume pela derradeira
vez a defesa dos escravocratas.
Escrevendo a um fidalgo lisboeta, ele
considera "uma manifesta injustiça" a
atitude dos mercadores da Bahia que forçavam a baixa do preço do açúcar numa
conjuntura de alta dos preços "das coisas
de Angola", ou seja, dos escravos angolanos ("Cartas...", tomo 3, págs. 712-4). Ao
longo de sua vida na Bahia, Olinda, Lisboa, Paris, Haia, Londres, Roma, Maranhão, Pará, Porto e Coimbra, Vieira sempre entendeu o tráfico negreiro como o
horizonte inultrapassável de sua época.
Vieira redigiu textos milenaristas, sermões inspirados e documentos políticos
frios e calculistas. Espero que essa complexidade, específica da modernidade
portuguesa, transpareça, caro mestre, no
filme que o senhor prepara sobre este
grande homem do século 17
Luiz Felipe de Alencastro é historiador, pesquisador
do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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