São Paulo, Domingo, 12 de Dezembro de 1999


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+ história
O historiador Luiz Felipe de Alencastro escreve ao cineasta português sobra o padre Vieira e a escravidão
Carta aberta a Manoel de Oliveira

Luiz Felipe de Alencastro
especial para a Folha

P rezado mestre. Leio numa gazeta brasileira que o senhor está preparando um filme sobre o padre Antonio Vieira. Notícia alvissareira para todos os que apreciam o seu cinema e as artes de nosso padre Vieira. Aliás, é justamente porque o padre Vieira foi também um baiano de corpo e alma que me permito expor-lhe algumas idéias.
Sou um fã de sua obra cinematográfica. Depois de ver o seu filme "Francisca", que me encantou, consegui entender o miguelismo, coisa estranha a nós outros da ex-América portuguesa, engendrados por uma cultura pós-escravista. Cultura que jamais respeitou quem trabalha aterra e, por isso mesmo, é incapaz de compreender a mistura de conservadorismo e fidelidade unindo proprietários e camponeses do Minho oitocentista -lugar onde rolou o miguelismo e se passa o filme- em torno de d. Miguel contra nosso d. Pedro 1º, o vosso d. Pedro 4º.
Anos mais tarde, assisti a "Non ou a Vã Glória de Mandar", sobre o colonialismo português. Ai, devo confessar que fiquei intrigado. Seu filme, que evoca Alcácer-Quibir (1578) e retrata a guerra recente nas ex-colônias africanas de Portugal (1965-1974), fazendo um balanço da presença portuguesa na África, continha algo bizarro: os soldados portugueses cruzando o sertão angolano ou moçambicano dos anos 1970 pareciam os soldados franceses atravessando um "bled" da Argélia dos anos 1960. Semelhança indevida, pois, como se sabe, a presença portuguesa antecedeu de três séculos e meio a presença francesa -e européia em geral- na África. Durante esse tempo todo, a empreitada principal dos portugueses no Continente Negro foi o comércio de escravos. Empreitada nem sequer mencionada em "Non ou a Vã Glória de Mandar". Nem mesmo pelo jovem tenente português que profere no filme um severo requisitório contra o colonialismo lusitano na África. Brasileiro, filho de um país que também fez comércio negreiro, sei que esta história é difícil de ser assumida.
Sucede, caro mestre, que o desconhecimento da violência praticada pelos portugueses (e brasileiros) na época do tráfico negreiro tem consequências amplas, gerando, por exemplo, um certo desconforto diante das manifestações portuguesas em favor de Timor Leste.
Quando um homem respeitado e respeitável como o presidente Jorge Sampaio declara na Assembléia Geral da ONU que o povo de Timor luta pela liberdade há 24 anos, ele parece sugerir que antes disso -antes de 1975- os timorenses viviam livres e felizes sob a doce tutela portuguesa. Não estaria havendo, na circunstância, um barateamento do passivo colonial? O fato de apoiar os timorenses católicos e lusófonos contra a Indonésia, potência asiática e muçulmana (ah, esses pérfidos mouros), não estará representando também uma maneira de quitar a baixo preço as dívidas de Portugal com a Ásia e, sobretudo, com a África ex-portuguesa? Com Angola, onde a pilhagem e a sangria praticada por Lisboa (e por Pernambuco, pelo Rio de Janeiro) foi muitíssimo mais devastadora que em qualquer dos territórios portugueses da Ásia? Que viva o povo timorense, que sobreviva entretanto o povo angolano, vítima de um martírio multissecular que nenhuma força da ONU conseguiu ainda interromper. Desse modo, "Non ou a Vã Glória de Mandar" é um grande filme, uma das melhores reflexões sobre o colonialismo europeu. Mas não dá conta da complexidade da presença portuguesa na África. Agora, acabo de ver seu filme mais recente, "A Carta" (1999), baseado no clássico da literatura francesa "A Princesa de Clèves" (1678), de Madame de La Fayette. É difícil falar brevemente desse filme, feito todo em nuances, sobre a brandura prazerosa gerada pela paixão inconclusa. Mas é certo que essa sua obra se incorpora à corrente cultural -caudalosa em Lisboa nos últimos 25 anos- que reamarra Portugal a seu destino europeu. Mesmo se o senhor, dando prova mais uma vez de sua audácia intelectual, inverte as cartas e lusitaniza a França a partir de um livro que não tem nada a ver com a gente portuguesa. De fato, no seu filme, a sede parisiense da Fundação Gulbenkian vira o ponto de referência da elite francesa, onde pontifica a glamourosa família Silva. Porém a corrente cultural a que me refiro, caro mestre, não é um mero movimento de "afrancesados", epíteto usado pelos conservadores lusitanos e brasileiros para combater idéias estrangeiras e defender o reacionarismo de nossa "autenticidade". Trata-se, muito mais, de uma corrente em prol da europeização do destino lusitano, como se a história portuguesa fosse, desde o tempo dos romanos, uma preparação para entrar na União Européia e aderir ao euro. Idéia que atravessa os volumes da "História de Portugal" (8 volumes, Lisboa, 1994), de José Mattoso, cujo feitio abusivamente continentalista Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri tentam agora reequilibrar com a sua "História da Expansão Portuguesa" (5 volumes, Lisboa, 1998). Idéia presente nos pontos cardeais dos pesquisadores que desembarcam em Lisboa. Assim, o Arquivo da Torre do Tombo, que concentra a documentação da história continental portuguesa, dispõe de um novo edifício, imponente, quase faraônico, de carpete macio e ar condicionado. Enquanto o Arquivo Ultramarino, com a documentação portuguesa sobre o Brasil, a África e a Ásia, continua enfiado num edifício mal-ajambrado, onde funcionários dedicados tentam instalar os pesquisadores em torno de uma única mesa cercada de fios com tomadas elétricas esparramadas pelo chão.

Simpatias jansenistas Voltando ao seu filme "A Carta", há uma cena em que a princesa de Clèves fala com simpatia do jansenismo. Nos aproximamos assim de Pascal e de Vieira, pelo caminho seguinte: defendendo os jansenistas, Pascal, como o senhor sabe, deu, em 1656, uma traulitada nas teses do espanhol Antonio de Escobar. Este tal Escobar, como outros jesuítas espanhóis e portugueses, pretendia que a aquisição de um bem dispensava seu proprietário de inquirir as condições da legitimidade da entrada desse bem no circuito mercantil. Descontextualizado, o enunciado parece apenas um banal disparate. Posta em prática no Atlântico Sul, a tese toma outras dimensões. Concretamente, ela significava que os missionários deviam, notadamente na confissão, evitar o questionamento da escravização dos nativos na África e no Brasil. Vieira às vezes transigiu com os colonos que escravizavam os índios. Reunidos em São Luís do Maranhão, em 1653, sob a direção de Vieira, os inacianos haviam explicitado a pergunta mais premente da Amazônia portuguesa, império da escravidão indígena: "Que obrigação tínhamos os confessores (jesuítas) acerca do pecado, como habitual, em que viviam todos estes (moradores) com os cativeiros dos índios, que pela maior parte se presumem injustos?". Sob a ameaça do colonato, os jesuítas decidiram que carecia tergiversar. Pondo em prática a doutrina casuísta inaciana, alvo da crítica arrasadora de Pascal, Vieira responde: "Resolveu-se que, a quem não confessasse deste pecado (de escravização de índios), não tínhamos obrigação de lhes falar nele" ("Cartas...", tomo 1, págs. 317-8). Reconheço que o episódio é marginal. Mesmo porque o fundamento do pensamento vieirista é o de que a escravidão dos africanos devia servir de garantia à liberdade dos índios. É isso mesmo, caro mestre, Vieira é um propagandista do tráfico negreiro e, em particular, da deportação de angolanos para o Brasil. Em seu sermão 14, um dos sermões do Rosário pregados para os escravos negros na Bahia, ele enuncia uma das mais audaciosas justificações ideológicas do tráfico de africanos: "Assim, a Mãe de Deus antevendo esta vossa fé, esta vossa piedade, esta vossa devoção, vos escolheu de entre tantos outros de tantas e tão diferentes nações, e vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá (na África) como vossos pais, vos não perdêsseis, e cá (no Brasil) como filhos seus, vos salvásseis. Este é o maior e mais universal milagre de quantos faz cada dia, e tem feito por seus devotos a Senhora do Rosário". E reitera, mais adiante: "Oh, se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a Sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre!". Nas esferas do mercado atlântico, a mão invisível de Deus conduzia o africano para o resgate eterno no Brasil. Milagre, "e grande milagre", resultava nessa deportação maciça. Graças a Nossa Senhora do Rosário, os africanos estavam sendo salvos da África e trazidos para o trabalho redentor nas terras brasileiras. Essa epifania negreira tem sido pouco notada pelos atuais comentadores de Vieira. Mas não escapou ao humanismo laico de João Francisco Lisboa, historiador maranhense amigo de Alexandre Herculano, o qual comentou: "Assim, esse exílio eterno da pátria, e todos esses horrores da travessia a que desde então até hoje foram condenados os míseros africanos, eram uma atenuação do mal, e uma verdadeira vantagem, no conceito do missionário jesuíta!".

A defesa dos escravocratas Como o senhor está atravessando o século 20, Vieira atravessou o século 17. Despontou como um brilhante noviço dos jesuítas da Bahia, aos 18 anos de idade, quando redigiu a "Carta Ânua" (1626), na qual explicitava, entre outras reflexões, a necessidade do trato angolano. Setenta e dois anos mais tarde, às vésperas da morte, entrevado, cego, quase surdo, mas sempre dono da maior inteligência estratégica do império luso, ele ainda ditava cartas reiterando o mesmo imperativo. Em seu último texto -cinco dias antes de morrer no Colégio de Salvador (1697)-, Vieira assume pela derradeira vez a defesa dos escravocratas.
Escrevendo a um fidalgo lisboeta, ele considera "uma manifesta injustiça" a atitude dos mercadores da Bahia que forçavam a baixa do preço do açúcar numa conjuntura de alta dos preços "das coisas de Angola", ou seja, dos escravos angolanos ("Cartas...", tomo 3, págs. 712-4). Ao longo de sua vida na Bahia, Olinda, Lisboa, Paris, Haia, Londres, Roma, Maranhão, Pará, Porto e Coimbra, Vieira sempre entendeu o tráfico negreiro como o horizonte inultrapassável de sua época.
Vieira redigiu textos milenaristas, sermões inspirados e documentos políticos frios e calculistas. Espero que essa complexidade, específica da modernidade portuguesa, transpareça, caro mestre, no filme que o senhor prepara sobre este grande homem do século 17


Luiz Felipe de Alencastro é historiador, pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


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