São Paulo, domingo, 12 de dezembro de 2004

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Ponto de fuga

A bigger splash

JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Convocado em massa pela preparação publicitária, o público não é convidado a ver as obras. Ele é convidado a "ver a exposição". Mesmo que não veja os quadros ou os veja mal, o público deve estar maciçamente co-presente às obras." É Daniel Arasse, brilhante historiador da arte morto há um ano, que escreveu essas observações num admirável livrinho, "Les Visions de Raphael" (As Visões de Rafael, ed. Liana Levi, 2003, sem tradução em português).
O fenômeno das mostras marqueteiras não é, de modo nenhum, invenção tupiniquim. Mas atingiu um paroxismo com muitas assim, que ocorreram no Brasil. Nelas, em torno de algumas peças mais célebres, alinha-se um conjunto heteróclito. Está claro, é ótimo pôr à disposição do público "A Bigger Splash", de Hockney, como ocorreu na mostra da Tate, na Oca (SP). Mas a tela não pode ser presença solta. Espera-se de uma exposição que ela renove os modos de compreender e de intuir. Isso depende de especialistas e de equipes responsáveis, capazes de se afirmarem e convencidos pelo sentido verdadeiramente humanista, próprio aos objetos da cultura. Não há outro caminho para combater as encenações mistificadoras que dissimulam a arte e seus poderes.

Arte falida - Noutro dia, Luís Nassif escreveu, no caderno "Dinheiro", da Folha, uma análise intitulada "Fábulas Fabulosas". Nela, alguns argumentos técnicos são um pouco difíceis para o ignaro em economia. Mas o princípio geral é nítido: no mínimo, há três anos já se podia prenunciar a crise atual do Banco Santos.
O controlador do banco vinculou-se também às artes e à cultura, enquanto colecionador e "mecenas", como se diz. Estava à frente da Brasil Connects, empresa que promoveu exposições ostentosas. Deslumbraram um público vasto, desencadearam publicidade nos meios de comunicação. Arte e cultura davam a impressão de estarem no centro, graças ao caráter sacralizado que investimos nelas, mas, nos fatos, vinham tomadas apenas como pretexto. Aureolavam celebrações, vaidades: isso era o essencial. Terminavam sendo engolidas pelo que as envolvia. Na mostra "Brasil 500 Anos", esculturas barrocas naufragaram em canteiros de flores artificiais. Não importava que as obras fossem verdadeiras, falsas, aleijadinhos autênticos ou anões de jardim; o que valia era o cenário. Nelas, a arte, figurante gloriosa, devia ser discreta para não suplantar brilhos mais fáceis.

Citação 1 - Em 2001, mandaram para Nova York um altar barroco, inteiro, de Olinda, numa mostra muito infeliz, chamada "Brazil - Body & Soul". Foi dependurado no meio do museu Guggenheim. Uma extravagância nouveau-riche, entre tantas, mais espetacular, talvez.
Esta coluna comentava, então: "O caráter dessas exposições é nocivo, pois esvazia os sentidos da obra e suas forças. Impede a concentração que ela exige do olhar.
Ao contrário, tudo é determinado para que a visão se distraia, passando, sem repouso, sobre os objetos dispostos segundo a estratégia da exibição. Perdem-se as relações de inteligência; as obras não se iluminam uma às outras, já que não foram consideradas em sua natureza de arte. Nenhuma discussão teórica pode justificar esses modos de expor: os mais sutis argumentos são batidos pela evidência. As obras se vingam: elas se recusam a estarem presentes; enviam, no lugar, carcaças sem vida".

Citação 2 - Da crônica de Luís Nassif, "Fábulas Fabulosas", sobre o mecenato privado, do colecionador: "Todos os indícios apontam para uma megaoperação de saque continuado contra a instituição, no qual o "mecenato" desempenhou um papel duplo: o de blindar a imagem de seu presidente, Edemar Cid Ferreira, e o de possibilitar o desvio de recursos por meio de superfaturamento das obras adquiridas. Utilizar ativos de baixa liquidez (como o mercado de artes) para operações de esquenta-esfria é manobra tão velha quanto o mercado".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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