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Ponto de fuga
A bigger splash
JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Convocado em massa pela
preparação publicitária, o
público não é convidado a
ver as obras. Ele é convidado a "ver a
exposição". Mesmo que não veja os
quadros ou os veja mal, o público
deve estar maciçamente co-presente às obras." É Daniel Arasse, brilhante historiador da arte morto há
um ano, que escreveu essas observações num admirável livrinho,
"Les Visions de Raphael" (As Visões de Rafael, ed. Liana Levi, 2003,
sem tradução em português).
O fenômeno das mostras marqueteiras não é, de modo nenhum,
invenção tupiniquim. Mas atingiu
um paroxismo com muitas assim,
que ocorreram no Brasil. Nelas, em
torno de algumas peças mais célebres, alinha-se um conjunto heteróclito. Está claro, é ótimo pôr à disposição do público "A Bigger
Splash", de Hockney, como ocorreu na mostra da Tate, na Oca (SP).
Mas a tela não pode ser presença
solta. Espera-se de uma exposição
que ela renove os modos de compreender e de intuir. Isso depende
de especialistas e de equipes responsáveis, capazes de se afirmarem
e convencidos pelo sentido verdadeiramente humanista, próprio aos
objetos da cultura. Não há outro caminho para combater as encenações mistificadoras que dissimulam a arte e seus poderes.
Arte falida - Noutro dia, Luís Nassif
escreveu, no caderno "Dinheiro",
da Folha, uma análise intitulada
"Fábulas Fabulosas". Nela, alguns
argumentos técnicos são um pouco
difíceis para o ignaro em economia.
Mas o princípio geral é nítido: no
mínimo, há três anos já se podia
prenunciar a crise atual do Banco
Santos.
O controlador do banco vinculou-se também às artes e à cultura,
enquanto colecionador e "mecenas", como se diz. Estava à frente da
Brasil Connects, empresa que promoveu exposições ostentosas. Deslumbraram um público vasto, desencadearam publicidade nos
meios de comunicação. Arte e cultura davam a impressão de estarem
no centro, graças ao caráter sacralizado que investimos nelas, mas,
nos fatos, vinham tomadas apenas
como pretexto. Aureolavam celebrações, vaidades: isso era o essencial. Terminavam sendo engolidas
pelo que as envolvia. Na mostra
"Brasil 500 Anos", esculturas barrocas naufragaram em canteiros de
flores artificiais. Não importava
que as obras fossem verdadeiras,
falsas, aleijadinhos autênticos ou
anões de jardim; o que valia era o
cenário. Nelas, a arte, figurante gloriosa, devia ser discreta para não
suplantar brilhos mais fáceis.
Citação 1 - Em 2001, mandaram para Nova York um altar barroco, inteiro, de Olinda, numa mostra muito infeliz, chamada "Brazil - Body
& Soul". Foi dependurado no meio
do museu Guggenheim. Uma extravagância nouveau-riche, entre
tantas, mais espetacular, talvez.
Esta coluna comentava, então: "O
caráter dessas exposições é nocivo,
pois esvazia os sentidos da obra e
suas forças. Impede a concentração
que ela exige do olhar.
Ao contrário, tudo é determinado
para que a visão se distraia, passando, sem repouso, sobre os objetos
dispostos segundo a estratégia da
exibição. Perdem-se as relações de
inteligência; as obras não se iluminam uma às outras, já que não foram consideradas em sua natureza
de arte. Nenhuma discussão teórica
pode justificar esses modos de expor: os mais sutis argumentos são
batidos pela evidência. As obras se
vingam: elas se recusam a estarem
presentes; enviam, no lugar, carcaças sem vida".
Citação 2 - Da crônica de Luís Nassif, "Fábulas Fabulosas", sobre o
mecenato privado, do colecionador: "Todos os indícios apontam
para uma megaoperação de saque
continuado contra a instituição, no
qual o "mecenato" desempenhou
um papel duplo: o de blindar a imagem de seu presidente, Edemar Cid
Ferreira, e o de possibilitar o desvio
de recursos por meio de superfaturamento das obras adquiridas. Utilizar ativos de baixa liquidez (como
o mercado de artes) para operações
de esquenta-esfria é manobra tão
velha quanto o mercado".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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