São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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Modos opostos e complementares de representação do Holocausto em filmes como "Shoah" ou no recente "O Declínio" escancaram a contradição entre as maneiras "certa" ou "errada" de mostrar a história

A moral da memória

JACQUES RANCIÈRE
COLUNISTA DA FOLHA

Sexagésimo aniversário da entrada das tropas aliadas em Auschwitz [em 27 de janeiro], lançamento do filme "O Declínio" ["Der Untergang", 2004, de Oliver Hirschbiegel], que conta os últimos dias de Adolf Hitler [1889-1945] em seu "bunker" -a atualidade da história e do cinema faz novamente uma pergunta lancinante: o que se deve ou não se deve mostrar da grande empreitada nazista e de sua concretização, o extermínio dos judeus da Europa?
Esse problema evidentemente contém dois. O primeiro é o da ficção histórica em geral: como conciliar os requisitos da ficção com os da história? Antes da era das revoluções modernas, simplesmente não se fazia essa pergunta: os historiadores contavam os grandes fatos dos príncipes e dos generais; a grande poesia narrava os pensamentos, sentimentos e atos dos personagens situados acima do comum. Mas nos últimos dois séculos as cartas do fictício e do histórico foram embaralhadas, assim como as do grande e do pequeno. A ficção decretou a igualdade de todos diante de sua lei, a história viu-se dividida entre as decisões dos Estados e a vida lenta e obscura das multidões.
A ficção histórica tornou-se o entrelaçamento de duas lógicas. Ela nos mostra os grandes fatos da história por meio do olhar das pessoas comuns e da convulsão das vidas privadas. Assim, "O Declínio" é construído a partir de um livro de um historiador sobre os últimos dias de Hitler e do testemunho de uma ex-secretária do Führer.
[O cineasta alemão] Wim Wenders [1945] criticou vivamente o diretor [em texto publicado no Mais! em 12/12/2004] por essa mistura que permite ao autor eximir-se de um ponto de vista próprio. Mas ele poderia ter feito a mesma censura a [Victor] Hugo [1802-85] ou a [Leon] Tolstói [1828-1910]: "Os Miseráveis" assim como "Guerra e Paz" são construídos sobre essa oscilação de que Tolstói fez teoria e cuja fórmula foi retomada por inúmeros romancistas ou cineastas.

A forma do inaceitável
A crítica, portanto, não tem nenhuma importância em si. Ela encobre na verdade um problema muito diferente. Ao misturar as verossimilhanças da ficção com a familiaridade das personagens encarnadas, os feitos dos homens célebres são trazidos para perto de nós, relacionados a corpos aos quais somos sensíveis, a sistemas de explicação que os justificam. A ficção deve ser aceita, e pode sê-lo sem tornar aceitável o que ela mostra -no caso, a loucura assassina de um sistema? Pedir que o autor tenha um ponto de vista próprio é pedir-lhe para contrariar essa lógica natural da ficção, para introduzir o inaceitável no aceitável.
Que forma esse inaceitável deve tomar? "O Declínio" não pára de nos fazer escutar o propósito monstruoso de Hitler ou de seus seguidores e de nos mostrar espetáculos insuportáveis: corpos mutilados, cérebros explodidos com um revólver, cerimonial glacial da senhora Goebbels envenenando seus seis filhos um após outro. Mas os propósitos monstruosos são os de um homem desgastado, encerrado em seu "bunker" e em seu delírio, semelhante a um desses reis loucos que o teatro nos mostra. A monstruosa meticulosidade da senhora Goebbels desperta lembranças de antigos heróis subtraindo da servidão a si mesmos e suas famílias. Todos esses corpos ensangüentados pertencem a um povo de vencidos, e sempre há comiseração pelos vencidos.
Se o cotidiano comum do "bunker" trata o crime nazista por meio da banalização, o caráter extraordinário das palavras e dos atos monstruosos o faz cair no terror trágico.
Poderíamos dizer que o caso é problemático desde o início: o que é representado é a derrota do nazismo. Mas o que deve ser julgado não é sua derrota, e sim suas "vitórias" anteriores, a ordem monstruosa que ele havia instaurado. O que falta nesse filme são suas verdadeiras vítimas: não os generais que estouram os próprios cérebros, mas primeiramente os 6 milhões de mortos nos campos de extermínio.
Infelizmente, o mesmo problema se coloca por esse lado. E a escolha dos filmes apresentados pelas televisões para comemorar Auschwitz pôs em cena novamente a questão de como mostrar os campos.
Evidentemente não com imagens reais: estas são ausentes pela própria lógica do processo, que apagou seus vestígios. Então pela ficção, à maneira de "Holocausto" [série de quatro episódios exibida na TV americana em 1978 e assistida por mais de 120 milhões de pessoas em todo o mundo], isto é, por meio do destino de alguns indivíduos envolvidos no processo, do lado dos carrascos ou das vítimas?
Mas nossa empatia pelo destino trágico da família Weiss é igualmente suspeito: compartilhar a infelicidade de uma família sofredora não é esquecer o que essa família deveria encarnar, o destino dado a um povo inteiro? A comiseração que experimentamos por aqueles que vão entrar na câmara de gás e até nossa identificação com os combatentes do gueto não têm um efeito contrário? Elas tornam presentes aqueles cuja existência, e mesmo seus vestígios, o plano nazista pretendia suprimir. Elas nos impedem, portanto, de considerar friamente a monstruosidade do plano global de extermínio de uma coletividade e o silêncio em que esse processo se efetuou.
O segundo problema, portanto, seria formulado assim: como dar forma fictícia ao crime excepcional do extermínio? À banalização sentimental de "Holocausto" é comum se contrapor o rigor de "Shoah" [1985]. O filme de Claude Lanzmann realmente recusa ao mesmo tempo qualquer imagem histórica e qualquer ficcionalização da história. Ele quer que o passado esteja presente somente por meio da palavra dos sobreviventes, confrontada com o silêncio dos locais de extermínio. Ele pretende, assim, evitar duas formas de banalização: a da ficção que apaga o extermínio, tornando presentes os corpos e a do documento histórico que encontra razões para ele, remetendo a um encadeamento mais amplo e, finalmente, interminável de causas e efeitos.
A boa representação do extermínio seria, assim, a que separa o horror do crime de qualquer imagem que o aproxime de nossa sensibilidade, de qualquer explicação que lhe dê uma razão aceitável para nossa inteligência. Seria a representação do irrepresentável. Mas imediatamente se coloca a pergunta: então, essa boa representação é boa para quê? A resposta está certamente pronta na forma de uma fórmula repetida: os que ignoram seu passado estão condenados a revivê-lo. Portanto, dizemos, é preciso observar o "dever de memória" e olhar bem para o passado para evitar que ele se repita. Mas o que entendemos por isso, exatamente?


A boa representa-ção não tem um efeito mais garantido que a má


A fórmula pode querer dizer duas coisas: é preciso mostrar o horror em sua realidade sensível para provocar a sensação de insuportável que leva a recusar as idéias que engendraram o horror; ou é preciso mostrar como essas próprias idéias foram engendradas para que o conhecimento do processo provoque o conhecimento dos meios para impedir que ele se reproduza.
Mas o purismo da boa representação torna ambas as deduções caducas. Colocar em imagens corpos que sofrem o intolerável é oferecê-los à comiseração sentimental ou ao voyeurismo perverso. Dar razões para o extermínio é conferir-lhe uma justificativa. O horror do extermínio deve ser deixado sem outra causa além da monstruosidade de seu próprio projeto. Mas então não se deve esperar nenhum efeito do conhecimento do passado para evitar que ele se reproduza. A política da memória se contradiz. E a boa representação não tem um efeito mais garantido que a má.

Normas de aceitabilidade
Aí está o fundo da coisa. A comparação entre as boas e as más maneiras de representar a história confunde dois problemas. De um lado, define normas de aceitabilidade. Ela quer, por exemplo, que evitemos representações que transformam os criminosos em homens iguais aos outros. Ela supõe que seremos menos sensíveis à barbárie hitlerista se virmos o ditador enternecido por seu cão ou afetuoso com sua secretária. Mas ela também quer que essas normas de aceitabilidade sejam princípios de utilidade.
Ora, como a representação de um Hitler batendo em seu cão ou em sua secretária seria mais útil à causa do combate ao nazismo? E como a representação do extermínio como mecânica desencarnada é mais adequada para alimentar o ódio ao anti-semitismo do que a representação dos sofrimentos das vítimas ou do estado de espírito dos carrascos?
Podemos sempre estabelecer critérios para dizer que "Shoah" é mais adequado que "Holocausto" para traduzir a monstruosidade do genocídio e respeitar a memória de suas vítimas. Outra coisa é deduzir disso sua capacidade de proibir no futuro formas equivalentes de monstruosidade. Entre a boa maneira de falar do horror passado e a maneira útil de evitar o horror no futuro, não há nenhuma ligação necessária. O pensamento edificante que quer utilizar o conhecimento do passado para garantir o futuro talvez tenha ficado no tempo dos príncipes e dos preceptores que lhes ensinavam os exemplos a ser imitados para ganhar batalhas e governar povos.
Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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