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Modos opostos e complementares de representação do Holocausto em filmes como "Shoah" ou no recente "O Declínio" escancaram a contradição entre as maneiras "certa" ou "errada" de mostrar a história
A moral da memória
JACQUES RANCIÈRE
COLUNISTA DA FOLHA
Sexagésimo aniversário da entrada das tropas aliadas em
Auschwitz [em 27 de janeiro],
lançamento do filme "O Declínio" ["Der Untergang", 2004, de
Oliver Hirschbiegel], que conta os
últimos dias de Adolf Hitler [1889-1945] em seu "bunker" -a atualidade da história e do cinema faz novamente uma pergunta lancinante: o
que se deve ou não se deve mostrar
da grande empreitada nazista e de
sua concretização, o extermínio dos
judeus da Europa?
Esse problema evidentemente
contém dois. O primeiro é o da ficção histórica em geral: como conciliar os requisitos da ficção com os da
história? Antes da era das revoluções
modernas, simplesmente não se fazia essa pergunta: os historiadores
contavam os grandes fatos dos príncipes e dos generais; a grande poesia
narrava os pensamentos, sentimentos e atos dos personagens situados
acima do comum. Mas nos últimos
dois séculos as cartas do fictício e do
histórico foram embaralhadas, assim como as do grande e do pequeno. A ficção decretou a igualdade de
todos diante de sua lei, a história viu-se dividida entre as decisões dos Estados e a vida lenta e obscura das
multidões.
A ficção histórica tornou-se o entrelaçamento de duas lógicas. Ela
nos mostra os grandes fatos da história por meio do olhar das pessoas
comuns e da convulsão das vidas
privadas. Assim, "O Declínio" é
construído a partir de um livro de
um historiador sobre os últimos dias
de Hitler e do testemunho de uma
ex-secretária do Führer.
[O cineasta alemão] Wim Wenders [1945] criticou vivamente o diretor [em texto publicado no Mais!
em 12/12/2004] por essa mistura que
permite ao autor eximir-se de um
ponto de vista próprio. Mas ele poderia ter feito a mesma censura a
[Victor] Hugo [1802-85] ou a [Leon]
Tolstói [1828-1910]: "Os Miseráveis"
assim como "Guerra e Paz" são
construídos sobre essa oscilação de
que Tolstói fez teoria e cuja fórmula
foi retomada por inúmeros romancistas ou cineastas.
A forma do inaceitável
A crítica, portanto, não tem nenhuma importância em si. Ela encobre na verdade um problema muito
diferente. Ao misturar as verossimilhanças da ficção com a familiaridade das personagens encarnadas, os
feitos dos homens célebres são trazidos para perto de nós, relacionados
a corpos aos quais somos sensíveis, a
sistemas de explicação que os justificam. A ficção deve ser aceita, e pode
sê-lo sem tornar aceitável o que ela
mostra -no caso, a loucura assassina de um sistema? Pedir que o autor
tenha um ponto de vista próprio é
pedir-lhe para contrariar essa lógica
natural da ficção, para introduzir o
inaceitável no aceitável.
Que forma esse inaceitável deve
tomar? "O Declínio" não pára de nos
fazer escutar o propósito monstruoso de Hitler ou de seus seguidores e
de nos mostrar espetáculos insuportáveis: corpos mutilados, cérebros
explodidos com um revólver, cerimonial glacial da senhora Goebbels
envenenando seus seis filhos um
após outro. Mas os propósitos
monstruosos são os de um homem
desgastado, encerrado em seu "bunker" e em seu delírio, semelhante a
um desses reis loucos que o teatro
nos mostra. A monstruosa meticulosidade da senhora Goebbels desperta lembranças de antigos heróis
subtraindo da servidão a si mesmos
e suas famílias. Todos esses corpos
ensangüentados pertencem a um
povo de vencidos, e sempre há comiseração pelos vencidos.
Se o cotidiano comum do "bunker" trata o crime nazista por meio
da banalização, o caráter extraordinário das palavras e dos atos monstruosos o faz cair no terror trágico.
Poderíamos dizer que o caso é problemático desde o início: o que é representado é a derrota do nazismo.
Mas o que deve ser julgado não é sua
derrota, e sim suas "vitórias" anteriores, a ordem monstruosa que ele
havia instaurado. O que falta nesse
filme são suas verdadeiras vítimas:
não os generais que estouram os
próprios cérebros, mas primeiramente os 6 milhões de mortos nos
campos de extermínio.
Infelizmente, o mesmo problema
se coloca por esse lado. E a escolha
dos filmes apresentados pelas televisões para comemorar Auschwitz
pôs em cena novamente a questão
de como mostrar os campos.
Evidentemente não com imagens
reais: estas são ausentes pela própria
lógica do processo, que apagou seus
vestígios. Então pela ficção, à maneira de "Holocausto" [série de quatro
episódios exibida na TV americana
em 1978 e assistida por mais de 120
milhões de pessoas em todo o mundo], isto é, por meio do destino de alguns indivíduos envolvidos no processo, do lado dos carrascos ou das
vítimas?
Mas nossa empatia pelo destino
trágico da família Weiss é igualmente suspeito: compartilhar a infelicidade de uma família sofredora não é
esquecer o que essa família deveria
encarnar, o destino dado a um povo
inteiro? A comiseração que experimentamos por aqueles que vão entrar na câmara de gás e até nossa
identificação com os combatentes
do gueto não têm um efeito contrário? Elas tornam presentes aqueles
cuja existência, e mesmo seus vestígios, o plano nazista pretendia suprimir. Elas nos impedem, portanto,
de considerar friamente a monstruosidade do plano global de extermínio de uma coletividade e o silêncio em que esse processo se efetuou.
O segundo problema, portanto,
seria formulado assim: como dar
forma fictícia ao crime excepcional
do extermínio? À banalização sentimental de "Holocausto" é comum se
contrapor o rigor de "Shoah" [1985].
O filme de Claude Lanzmann realmente recusa ao mesmo tempo
qualquer imagem histórica e qualquer ficcionalização da história. Ele
quer que o passado esteja presente
somente por meio da palavra dos sobreviventes, confrontada com o silêncio dos locais de extermínio. Ele
pretende, assim, evitar duas formas
de banalização: a da ficção que apaga o extermínio, tornando presentes
os corpos e a do documento histórico que encontra razões para ele, remetendo a um encadeamento mais
amplo e, finalmente, interminável
de causas e efeitos.
A boa representação do extermínio seria, assim, a que separa o horror do crime de qualquer imagem
que o aproxime de nossa sensibilidade, de qualquer explicação que lhe
dê uma razão aceitável para nossa
inteligência. Seria a representação
do irrepresentável. Mas imediatamente se coloca a pergunta: então,
essa boa representação é boa para
quê? A resposta está certamente
pronta na forma de uma fórmula repetida: os que ignoram seu passado
estão condenados a revivê-lo. Portanto, dizemos, é preciso observar o
"dever de memória" e olhar bem para o passado para evitar que ele se repita. Mas o que entendemos por isso, exatamente?
A boa representa-ção não tem um efeito mais garantido que a má
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A fórmula pode querer dizer duas
coisas: é preciso mostrar o horror
em sua realidade sensível para provocar a sensação de insuportável que
leva a recusar as idéias que engendraram o horror; ou é preciso mostrar como essas próprias idéias foram engendradas para que o conhecimento do processo provoque o conhecimento dos meios para impedir
que ele se reproduza.
Mas o purismo da boa representação torna ambas as deduções caducas. Colocar em imagens corpos que
sofrem o intolerável é oferecê-los à
comiseração sentimental ou ao voyeurismo perverso. Dar razões para
o extermínio é conferir-lhe uma justificativa. O horror do extermínio
deve ser deixado sem outra causa
além da monstruosidade de seu próprio projeto. Mas então não se deve
esperar nenhum efeito do conhecimento do passado para evitar que
ele se reproduza. A política da memória se contradiz. E a boa representação não tem um efeito mais garantido que a má.
Normas de aceitabilidade
Aí está o fundo da coisa. A comparação entre as boas e as más maneiras de representar a história confunde dois problemas. De um lado, define normas de aceitabilidade. Ela
quer, por exemplo, que evitemos representações que transformam os
criminosos em homens iguais aos
outros. Ela supõe que seremos menos sensíveis à barbárie hitlerista se
virmos o ditador enternecido por
seu cão ou afetuoso com sua secretária. Mas ela também quer que essas
normas de aceitabilidade sejam
princípios de utilidade.
Ora, como a representação de um
Hitler batendo em seu cão ou em sua
secretária seria mais útil à causa do
combate ao nazismo? E como a representação do extermínio como
mecânica desencarnada é mais adequada para alimentar o ódio ao anti-semitismo do que a representação
dos sofrimentos das vítimas ou do
estado de espírito dos carrascos?
Podemos sempre estabelecer critérios para dizer que "Shoah" é mais
adequado que "Holocausto" para
traduzir a monstruosidade do genocídio e respeitar a memória de suas
vítimas. Outra coisa é deduzir disso
sua capacidade de proibir no futuro
formas equivalentes de monstruosidade. Entre a boa maneira de falar
do horror passado e a maneira útil
de evitar o horror no futuro, não há
nenhuma ligação necessária. O pensamento edificante que quer utilizar
o conhecimento do passado para garantir o futuro talvez tenha ficado no
tempo dos príncipes e dos preceptores que lhes ensinavam os exemplos
a ser imitados para ganhar batalhas e
governar povos.
Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed.
34). Escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
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