São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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UM ASSASSINATO SENTIMENTAL

O HISTORIADOR REFLETE A RESPEITO DA APROXIMAÇÃO DA ACADEMIA A TEMAS LIGADOS A TABLÓIDES SENSACIONALISTAS A PARTIR DE LIVRO QUE SERÁ PUBLICADO NA PRÓXIMA SEMANA NOS EUA

POR ROBERT DARNTON

A paisagem histórica está sofrendo uma curiosa alteração. Em meio à profusão de livros sobre os temas habituais -a cultura gay, a esfera pública, memórias, o Holocausto, ecologia, globalização, escravidão, guerra e paz, sexo e gênero-, surgiu um novo gênero. Ele se espalha por tantos subcampos que quase não foi percebido, mas pode ser encontrado em toda parte, até mesmo nas mesas junto da porta das livrarias e no setor de leituras "obrigatórias" para cursos universitários. Ele assume a forma de livros curtos sobre fatos dramáticos -assassinatos, escândalos, rebeliões, catástrofes, o tipo de coisa que costumava ser especialidade dos tablóides e da literatura barata, mas hoje é publicada em capa dura com o selo de editoras universitárias.
Apesar do tema sensacionalista, esses livros representam uma abordagem séria da história. Eles merecem reconhecimento. O melhor nome que posso imaginar é "análise de incidente", porque, apesar de sua grande diversidade, compartilham uma característica comum: concentram-se em um incidente que narram como um conto e depois acompanham suas repercussões pela ordem social e até, em alguns casos, ao longo de períodos de tempo sucessivos. Eles fazem perguntas atordoantes: como podemos saber o que realmente aconteceu?; o que separa o fato da ficção?; onde está a verdade entre interpretações concorrentes? E deixam seus leitores com um efeito "Rashomon": o passado, quando visto de perto, parece mais inescrutável do que nunca.
A obra mais conhecida desse gênero, que serviu de modelo para muitas outras, é "O Retorno de Martin Guerre" (1983) [ed. Paz e Terra], de Natalie Zemon Davis. Ela trata de um incidente dramático -o julgamento de uma camponesa acusada de coabitar com um homem que se fazia passar por seu marido, o qual havia morrido muito tempo antes- e descasca segmentos da narrativa para revelar aspectos das relações entre os gêneros e da vida agrícola na França do século 16. Ela também explica diversos relatos do caso, desde os registros de tribunal originais até uma versão cinematográfica atual. Natalie Davis serviu de consultora para o filme e até fez uma ponta nele.
Mas, depois de colaborar nessa recriação do acontecimento, advertiu os leitores de que não conseguiu solucionar seu enigma central -a história interna do casal Guerre- e transformou seu livro em um ensaio reflexivo sobre como um incidente pode ser conhecido e como ele é refratado ao longo do tempo por meio de sucessivos modos de comunicação.
Duas décadas depois, os historiadores continuam enfrentando os problemas de chegar ao fundo de suas histórias. Mas o jogo hoje é mais sério. Muitos incidentes envolvem os aspectos mais sombrios do século 20, e as dificuldades acadêmicas são acrescidas de uma fome de conhecimento histórico que é sentida com cada vez mais urgência em sociedades inteiras. Enquanto os sobreviventes revêem suas memórias, as novas gerações querem saber a verdade sobre os traumas do passado.
O massacre de civis indefesos por soldados japoneses durante a ocupação de Nanquim [leste da China] (ou Nanjing, como se costuma escrever hoje) em dezembro de 1937 ilustra essa tendência.
Quatro livros recentes analisam o acontecimento em grande detalhe, partindo da premissa de que, se ele puder ser compreendido corretamente, a natureza geral do imperialismo japonês será revelada.
"The Rape of Nanking" [A Violação de Nanquim, Basic Books] (1997), de Iris Chang, dramatizou o massacre diante de um amplo público de língua inglesa, comparando-o ao Holocausto, mas o livro crucial, que desafiou os japoneses a enfrentar seu passado, foi "The Nanking Massacre" [O Massacre de Nanquim, M.E. Sharpe], de Honda Katsuichi. Embora só tenha sido lançado em inglês em 1999, ele provocou um grande debate no Japão desde sua primeira publicação como uma série de artigos de jornal, em 1971. Katsuichi, um jornalista veterano da Guerra do Vietnã, viajou à China, entrevistou sobreviventes e reconstruiu as atrocidades com tal precisão e paixão que obrigou seus leitores a questionar não apenas os eventos em Nanquim, mas também a possibilidade de haver algo semelhante a uma culpa coletiva por trás das tragédias dessa guerra.
Dois livros mais recentes, "Nanking - Anatomy of an Atrocity" [Nanquim: Anatomia de uma Atrocidade, Praeger], de Masahiro Yamamoto, e "The Nanking Massacre in History and Historiography" [O Massacre de Nanquim na História e na Historiografia, University of Californa Press], uma coletânea de ensaios editada por Joshua Fogel, mostram como o debate sobre os eventos ainda reverbera na sociedade japonesa. Yamamoto tentou chegar a uma avaliação precisa da escala do massacre. Ele afirmou que as tropas japonesas mataram cerca de 50 mil chineses, na maioria prisioneiros de guerra ou soldados potencialmente perigosos disfarçados de civis. Essa estimativa desacreditou os revisionistas, para os quais virtualmente não havia ocorrido atrocidades, mas ficou aquém da opinião mais aceita, que estabelecia o número de mortos entre 100 mil e 400 mil e salientava a indefensabilidade das vítimas.
Aqueles que contribuíram para o volume de Fogel em geral apoiavam a última interpretação, mas mudaram o campo do debate. Em vez de se concentrarem basicamente no massacre, colocaram a discussão no contexto da política do pós-guerra e mostraram que a pesquisa histórica havia sido influenciada pelas mudanças de atitudes e as memórias de guerra dos japoneses em geral.
Essa dupla preocupação -de um lado com a reconstrução acadêmica de um fato e, de outro, com a história de sua nova narrativa- distingue a nova história de incidentes da história da Escola dos Annales. Trabalhando em ambos os registros, os analistas de incidentes conseguiram transmitir a importância dos momentos decisivos do passado.
Essa ênfase também os diferencia dos "micro-historiadores", seus parentes mais próximos entre os acadêmicos e profissionais de hoje. Desenvolvida por Giovanni Levi, Carlo Poni, Carlo Ginzburg, Edoardo Grendi e outros na Itália nas décadas de 70 e 80, a "microstoria" se concentra em pequenas unidades, como aldeias camponesas, onde é possível estudar fenômenos que não podem ser vistos em níveis de abstração mais elevados. Ela lida com as restrições da vida cotidiana das pessoas comuns e as estratégias que elas improvisaram para enfrentá-las. Pretende reconstruir mundos sociais de modo sistêmico e até fazer inferências da micro para a macroescala da história. Não é análise de incidentes. Ao se concentrar nos eventos, ela tenta entender a maneira como as pessoas interpretaram sua experiência, mais que o modo como elas se encaixam em estruturas.
Na prática, portanto, os analistas de incidentes geralmente estudam modos de comunicação, a opinião pública e a memória coletiva. Encontram seu material mais rico em relatos de catástrofes, do tipo que aparece em jornais e registros de tribunais.
Por exemplo, em "Martyred Village - Commemorating the 1944 Massacre at Oradour-sur-Glane" [Aldeia Martirizada - Comemorando o Massacre de 1944 em Oradour-sur-Glane, University of California Press], Sarah Farmer estudou uma atrocidade militar: o massacre pelas Waffen-SS de 642 civis inocentes franceses nessa cidade, em 10 de junho de 1944, e mostrou como narrativas concorrentes do evento expuseram fissuras nas memórias da ocupação alemã.
Em "The Collaborator -The Trial and Execution of Robert Brasillach" [O Colaborador -Julgamento e Execução de Robert Brasillach, University of Chicago Press], Alice Kaplan também reabriu feridas deixadas pela ocupação alemã. Ela recontou o julgamento de um dos mais famosos colaboradores da França, o propagandista pró-nazista e poeta Robert Brasillach, mostrando como os argumentos de ambos os lados correspondiam a divisões na França do pós-guerra e como a execução do mesmo por um pelotão de fuzilamento (depois que o general De Gaulle se recusou a perdoá-lo) ainda se reflete de diversas maneiras entre os grupos políticos franceses, especialmente a extrema direita.
"Bloody Saturday in the Soviet Union - Novocherkassk" [Sábado Sangrento na União Soviética: Novocherkassk, Stanford University Press], de Samuel Baron, conta a história do massacre dos grevistas de Novocherkassk, em 1º de junho de 1962, e também as tentativas de abafar ou explorar a greve, desde a negação inicial pelas autoridades comunistas até programas de rádio sobre a Guerra Fria transmitidos do Ocidente e as narrativas clandestinas que surgiram durante a "glasnost". "An Absolute Massacre - The New Orleans Riot of July 30, 1866" [Um Massacre Total - A Rebelião de Nova Orleans em 30 de julho de 1866, Louisina State University Press], de James Hollandsworth, examina o tema do massacre na história americana.
Hollandsworth mostrou como a disputa para vencer eleições municipais em Nova Orleans irrompeu em uma orgia de violência que deixou pelo menos 34 mortos e uma centena de feridos, expondo o racismo como ingrediente principal na política da "reconstrução". "An Ordinary Atrocity - Sharpeville and Its Massacre" [Uma Atrocidade Comum - Sharpeville e seu Massacre, Yale University Press], de Philip Frankel, trata de um incidente igualmente mortífero, a chacina de africanos indefesos na aldeia de Sharpeville em 21 de março de 1960, que se tornou o fato definidor na história do apartheid. Frankel vasculhou depoimentos complexos e contraditórios para explicar como o massacre aconteceu e como diferentes versões dele se emaranharam na política subseqüente na África do Sul.
A mais importante de todas as anatomias retrospectivas de incidentes foi "Neighbors - The Destruction of the Jewish Community in Jedwabne, Poland" [Vizinhos - A Destruição da Comunidade Judia em Jedwabne, Polônia, Princeton University Press] (2001), de Jan Gross. Ao juntar escrupulosamente todas as evidências que sobreviveram, Gross demonstrou que o massacre de 1.600 judeus na cidade de Jedwabne, no final do verão de 1941, não foi orquestrado por nazistas. Foi executado na maior parte por poloneses que haviam convivido pacificamente com suas vítimas durante muitos anos. Em uma frase que se tornou famosa, Gross concluiu: "A metade da população de uma pequena cidade do Leste Europeu assassinou a outra metade".
Sua conclusão provocou um profundo debate na Polônia, pois os poloneses, assim como os japoneses, tendiam a se considerar vítimas da guerra. O paralelo não vai muito longe, porque os japoneses foram agressores enquanto os poloneses sofreram terrivelmente a agressão em duas frentes, nazista, no oeste, e comunista, no leste. Mas Gross encontrou evidências de que alguns dos poloneses que fizeram o trabalho sujo para os nazistas depois se alistaram com os stalinistas. A Segunda Guerra devastou a Polônia de maneiras mais complexas e prejudiciais que qualquer coisa que poderia ser transmitida pela visão dominante do pós-guerra, que colocava as vítimas nativas contra os estrangeiros opressores. Por meio do estudo meticuloso de um incidente, Gross forçou um país inteiro a enfrentar sua cumplicidade nas atrocidades que mais o prejudicaram e a reavaliar o curso de sua história ao longo do século 20.


Monografias sobre escândalos e casos judiciais aparecem quase todo mês, e elas representam apenas uma corrente na maré crescente da análise de incidentes


Apesar da diversidade de assuntos, esses livros demonstram uma preocupação comum que percorre todas as análises de incidentes: a ambição de contar histórias sobre eventos, com detalhes tão convincentes que modificarão a compreensão geral do passado. Muitos outros exemplos poderiam ser citados, nem todos sobre grandes catástrofes como massacres. Muitas histórias de incidentes extraem seu material de julgamentos que dramatizaram questões sociais ou políticas -o caso de um afro-americano condenado pelo assassinato de uma trabalhadora branca em uma fábrica de Chicago, em 1888; uma série de julgamentos e execuções ligada ao assassinato de sir Thomas Overbury em 1613, que dramatizou a política dos tribunais diante do grande público nos primórdios da Inglaterra moderna; o julgamento e execução de dois falsificadores totalmente burgueses, que afetou o consumo conspícuo entre os novos-ricos de Londres na década de 1770; o caso de uma empregada que assassinou a patroa, abalando a hierarquia social e os valores vitorianos de Brandon (Canadá), em 1899; o julgamento Beecher-Tilton, em 1875, que expôs falhas no mundo moral e emocional dos nobres reformistas em Nova York. Monografias sobre escândalos e casos judiciais aparecem quase todo mês, e elas representam apenas uma corrente na maré crescente da análise de incidentes.

Uma nova preocupação
Essa tendência não deve ser confundida com histórias populares, que muitas vezes se fixam em incidentes espetaculares para explorar seu apelo sensacionalista. Ela representa uma nova preocupação entre historiadores profissionais, pelo imediatismo da experiência e pelos significados a ela atribuídos. Mas a análise de incidentes lida com uma mistura tão confusa de assuntos que surge inevitavelmente uma pergunta: qual a importância disso tudo?
Essa pergunta talvez não possa ser respondida, mas uma maneira de avaliar esse tipo de história é ver como ela é manipulada por um mestre artesão. O último livro do gênero, "A Sentimental Murder - Love and Madness in the Eighteenth Century" [Um Assassinato Sentimental - Amor e Loucura no Século 18, ed. Farrar, Straus and Giroux, 352 págs., US$ 25], ilustra as forças e as fraquezas da análise de incidentes como foi desenvolvida por um dos melhores historiadores da profissão, John Brewer, um inglês formado em Cambridge que hoje é professor no Instituto de Tecnologia da Califórnia.
Os primeiros livros de Brewer demonstraram um talento para tratar de temas importantes da história inglesa e virar de ponta-cabeça ou do avesso as interpretações consagradas. "Um Assassinato Sentimental" representa um afastamento radical dessa tendência a escrever grandes livros sobre grandes temas. É a história em letras miúdas. Brewer conta a história de um assassinato que ocorreu perto da ópera de Covent Garden em 7 de abril de 1779. Um religioso recém-ordenado, James Hackman, matou a tiros Martha Ray, a amante do conde de Sandwich, quando ela subia em sua carruagem. Então ele tentou se matar, mas conseguiu apenas ferir-se na testa. Dois bilhetes encontrados em seu bolso revelaram que desejava se casar com sua vítima e que a recusa dela o havia convencido a cometer suicídio.
No julgamento, o advogado de Hackman baseou a defesa na idéia de insanidade temporária. O próprio Hackman afirmou que não tivera a intenção de matar a mulher que amava, mas fora tomado por um "frenesi momentâneo" [pág. 28]. Ele se declarou disposto a morrer por seu crime, porém, e subiu ao cadafalso estoicamente. O crime, o julgamento e o enforcamento foram amplamente noticiados e comentados. Mas o incidente logo foi esquecido por um público preocupado com um assunto mais sério, a "guerra americana".
Por que reviver aquela história hoje? Dá um boa narrativa, é claro, e Brewer a conta bem. Ele oferece descrições vívidas dos três protagonistas: Hackman, o jovem ousado, o epítome do "homem de sentimentos" do século 18; Martha Ray, um pouco velha para seu papel (tinha 35 anos e havia dado nove filhos a Sandwich), mas ainda bela e abençoada com uma voz angelical para o canto; e Sandwich, o perfeito aristocrata, um libertino maduro (61 anos) e um político poderoso, grande demais como primeiro lorde do almirantado para se preocupar com sua reputação entre a arraia-miúda, mas não acima de manobras básicas para defender seu poder.
O crime e o castigo propiciam uma narrativa animada. Recebemos exatamente a quantidade certa de detalhes: Hackman na platéia olhando para Ray em seu camarote durante uma apresentação de "Amor numa Aldeia", uma história sentimental de amantes malfadados; a explosão de violência diante do teatro, Ray morta instantaneamente, Hackman ferido, gemendo no chão: "Oh! Matem-me!... Pelo amor de Deus, matem-me!"; o interrogatório em Bow Street: mais súplicas por uma morte rápida; o julgamento: dessa vez, uma alegação de culpa atenuada por insanidade temporária; o confronto com a morte no cadafalso: Hackman estóico até o fim, faz uma última oração por Ray e deixa cair o lenço em sinal para o carrasco de que estava pronto para ser "lançado à eternidade".
Depois de pentear todas as evidências circunstanciais, Brewer insere anedotas, nem muitas nem poucas, nos momentos mais reveladores. O "beau monde" no julgamento inclui John Wilkes, que passa um bilhete para James Boswell cumprimentando-o por encontrar um lugar perto da dama mais bela. O cadáver de Hackman é dissecado e posto em exibição pública no Surgeon's Hall, onde é visto por um jovem mestre espadachim, Henry Angelo, que depois vai a um restaurante próximo e não consegue comer. Nada é retocado, nada inventado. Não somos apresentados aos pensamentos profundos de Hackman ou às paixões conflituosas de Ray. Brewer se recusa a ultrapassar os limites do que pode ser demonstrado por meio de documentação. Ele inclui 35 páginas de notas e conta a história do assassinato em 27 páginas.
O texto da contracapa a reduz a duas frases: "Numa noite de abril de 1779, Martha Ray, a bela amante de um famoso aristocrata, foi assassinada à queima-roupa por um jovem clérigo que então tentou tirar a própria vida. Mas ele foi preso, julgado e enforcado". Até isso seria demais para uma história padrão da Inglaterra hanoveriana. Por que Brewer dedicou tanta arte e tantos anos de estudo a um incidente que parece tão efêmero?
Parte da resposta está nos próprios jornais. Havia um grande número deles em 1779: cinco diários e oito publicados três vezes por semana em Londres, e cerca de 40 publicados nas Províncias -mais do que existem hoje. É claro que os jornais do século 18 não se pareciam com os modernos. Não tinham manchetes, subtítulos, gráficos ou características familiares aos leitores de hoje. Pareciam panfletos, exceto que suas páginas eram geralmente divididas em colunas e continham um grande número de notícias curtas anunciando produtos à venda: daí terem nomes como "O Anunciante Público" e "O Anunciante Geral".
Os anúncios eram acompanhados de notícias, mas estas quase não podiam ser diferenciadas das fofocas, e as reportagens assumiam a forma de cartas enviadas por "correspondentes" não identificados. Não existiam repórteres profissionais. Muitos correspondentes eram "escritores de parágrafo" ou escritores comerciais que percorriam os cafés coletando anedotas que redigiam em textos curtos e vendiam para os livreiros ou impressores. Atuando como um editor primitivo, o livreiro ou mestre impressor juntava os parágrafos e produzia meia página de informação não digerida. Os parágrafos também eram enviados por leitores comuns, que queriam fofocar em letras impressas; por autores a fim de promover seus livros; e por políticos que queriam atacar adversários e cultivar patronos.
Como muitos dos leitores eram escritores e como a coleta de notícias ocorria sem a intervenção de profissionais, os jornais brotaram diretamente da cultura dos cafés onde eram produzidos e consumidos. Longe de oferecer uma clara visão do que acontecera, distorciam tudo o que passava por eles. Como comenta Brewer, eram "salões de espelhos em que visões parciais e opiniões tendenciosas eram refletidas de modo a parecer "fatos" transparentes. Ao adentrá-los, devemos lembrar que nada era exatamente o que parecia" (pág. 45).
Essa observação nos aproxima do tema do livro -não o que aconteceu em 7 de abril de 1779, mas como o assassinato foi refratado pela mídia da época. Sandwich tinha influência suficiente para garantir que a história publicada na imprensa diária não prejudicasse sua reputação, mas nem mesmo os jornais que eram hostis a ele trataram o crime como um indício de comportamento escandaloso nos altos escalões.
Embora o incidente se prestasse perfeitamente a detalhes sensacionalistas sobre cérebros espalhados pelo calçamento no centro de Londres, a imprensa não explorou muito o sangue e o sexo. Em vez disso, escolheu um tom menor e orquestrou suas matérias ao redor de um único "leitmotiv": sensibilidade.
Hackman apareceu nas reportagens como um homem de sentimentos profundos e nobres, tragicamente dominado por uma paixão desgovernada. Martha Ray, o objeto de seu amor, não é uma cortesã, mas uma vítima das circunstâncias, uma garota pobre de alma pura, apesar de sua ligação com Sandwich. E o próprio Sandwich assumiu uma aura sentimental: a morte de seu verdadeiro amor, que ele mantinha honrosamente como se fosse sua mulher, o deixou desolado. Longe de explorar a violência, à maneira dos tablóides modernos, a imprensa cobriu o caso como se fosse um episódio de uma novela de sensibilidade atual.
Em 1779 os leitores ingleses haviam-se acostumado à dieta pesada de sentimentos servida por Richardson, Sterne, Arthur Young, Goethe e Rousseau. Era muito natural para os escribas de café retratar Hackman como um primo do Werther de Goethe ou o Homem de Sentimentos de Henry Mackenzie. Mas a maré sentimental vazou dos jornais para revistas e livros, em que não podia ser canalizada com tanta eficácia pelos partidários de Sandwich.
Brewer dedica três capítulos a cada um dos protagonistas conforme apareceram em outros veículos impressos. Sandwich foi arrastado pela lama em livros e panfletos de reformistas que o transformaram em símbolo da decadência aristocrática e da corrupção política. Uma parte da sujeira veio do lado de John Wilkes, o libertino radical que tinha uma rixa particular com Sandwich, mas a maior parte pertencia a uma literatura grosseira sobre prostitutas e rufiões. Portanto, ela se desviou na direção oposta à sensibilidade e, no caminho, maculou a imagem de Martha Ray.
Essa literatura a colocou em má companhia -não o tipo habitual de mulheres caídas encontradas em obras como "Nocturnal Revels" [Deleites Noturnos], uma excursão pelos bordéis de Londres, mas as "demi-reps", "semi-respeitáveis", apresentadas em publicações mais elegantes como "Town and Country Magazine". Uma "demi-rep" era a consorte de um homem rico -geralmente uma bela jovem a quem ele havia tirado da obscuridade, dado um verniz de educação e instalado em sua casa na cidade, algo próximo de uma mulher comum. A "Town and Country Magazine" trazia uma série de "tête-à-têtes" discretamente escandalosos ilustrados com silhuetas sobre aristocratas dissolutos e suas manteúdas. Ray e Sandwich figuravam com destaque nessas e outras variedades de literatura sexual, que Brewer analisa com humor e bom gosto.


Hoje, como os eventos da mídia dominam os noticiários, uma história de como os eventos se tornaram incrustados na mídia deveria ter um interesse geral


Hackman, porém, não cabia nesse contexto. Ele permaneceu uma figura nobre -virtuoso, mas enlouquecido de amor- nos livros e artigos publicados após sua execução. O que o levara a cometer o crime? O mistério manteve a história viva enquanto ela evoluiu em narrativas posteriores, constantemente mudando de forma e significado. "The Case and Memoirs of James Hackman" [O Caso e as Memórias de James Hackman] (1779), um best-seller que teve dez edições, fez de Hackman uma vítima, mais que o autor da tragédia, descrevendo-o como um homem honrado que perdera o coração para uma "femme fatale". Ele havia sido enganado por Ray e por sua companheira, Caterina Galli, que o levaram a acreditar que Ray o havia abandonado por outro amante secreto. Ele matou a mulher que amava em um frenesi de paixão e desespero, como Otelo.
"Love and Madness, a Story Too True" [Amor e Loucura, uma História Real Demais] (1780) levou esse tema ainda mais longe ao transformá-lo em novela epistolar e pintar Hackman como um herói romântico completo. As cartas foram escritas com tal inspiração que muitos leitores as consideraram verdadeiras. Ambos os livros foram publicados pelo mesmo editor, George Kearsley, que lia muito bem o mercado e usava todo tipo de truque publicitário para explorá-lo. Brewer expõe sua história editorial de maneira tão magistral quanto explica seus textos. Ele mostra como as vidas de jornalistas venais, autores da Grub Street, políticos cínicos, libertinos e promotores de escândalos se entrelaçam em uma cultura comum -uma versão inglesa de "As Ilusões Perdidas", de Balzac.
É uma leitura fascinante, mas extensa. Brewer acompanha cada variante da história ao longo do século 19 e até a década de 1950. Temos a versão científica (Hackman sofria do mortífero terceiro estágio de "erotomania"), a versão wordsworthiana (uma longa exegese do poema "The Thorn"), a versão vitoriana (desprezo moralista pela decadência do século 18), a versão estética (o século 18 como uma era de elegância), a versão feminista (Ray, pintada como heroína, é uma vítima da dupla moral e da opressão geral das mulheres) e muitas outras. Depois de 280 páginas de variações sobre o mesmo tema, o leitor, exausto, chega à conclusão, esperando encontrar uma revelação sobre a importância disso.
Este leitor deve confessar que fechou o livro com uma sensação de decepção. Brewer é inigualável ao evocar a cultura das ruas londrinas no final do século 18; mas, quando divaga além disso, confirma opiniões anteriores. A versão romântica do assassinato vem a ser romântica; a vitoriana, vitoriana; e assim por diante. Nenhuma das exegeses elaboradas desafia o leitor a mudar de idéia sobre alguma coisa importante.
Brewer não pensou em si mesmo como contribuinte de um novo gênero histórico. Ele poderia muito bem objetar que esse gênero não existe; e que, se existisse, não tinha obrigação de adotar suas convenções. Apresenta seu livro como um "experimento" [pág. 292] que nos ajudará a elucidar a confusão inerente a qualquer tentativa de separar fato de ficção. Os fatos, ele insiste, não podem ser garimpados em arquivos como se fossem pepitas de realidade e não podem ser combinados em uma narrativa que corresponda perfeitamente ao que realmente aconteceu. Escrever a história é contar uma história e, portanto, utilizar muitos dos mesmos dispositivos retóricos que entram na ficção. Nenhuma versão do assassinato de Ray poderá ser definitiva. Suas variações expõem o artifício que faz parte de qualquer relato de um evento, o dele próprio incluído.
Está bem. Mas já estivemos aí antes. Ranke, Michelet e até Namier (cujos ensaios são obras-primas literárias) sabiam que precisavam confiar em técnicas literárias para transmitir seu entendimento do passado e que o entendimento histórico envolve interpretação, mais que a capacidade de fazer um texto se encaixar em um evento sem nenhuma distorção. Brewer não provoca uma reavaliação filosófica sobre a base epistemológica da história; ele ilustra o potencial da análise de incidentes. Sem saber que o está fazendo, ele o faz -e bem.
Como é a análise de incidentes quando malfeita? Pode ser sensacionalista; pode ser trivial; pode construir erroneamente os eventos com especificidades mal colocadas; pode soar falsa. Brewer cita "Dead Certainties" [Certezas Mortas], de Simon Schama, como um experimento em misturar fato e ficção que ele aparentemente pretendeu copiar [pág. 291]. Mas Schama bordou sua narrativa com material que inventou e deixou de colocar no texto sinais de advertência para que os leitores pudessem diferenciar o que ele havia inventado do que realmente aconteceu. Brewer nada inventou e tudo documentou. Como seus professores em Cambridge, é um bom empírico britânico.
O que, então, distingue a análise de incidentes de outros tipos de história? Não uma filosofia, mas sua matéria-prima, seu método e sua ambição. Ela lida com a concatenação de eventos, mais que apenas os próprios eventos. Tenta encontrar seu significado -o que eles significaram para as pessoas que os vivenciaram e as que souberam deles mais tarde. Portanto concentra-se em relatos de incidentes e na maneira como eles foram refletidos em vários modos de comunicação.
Hoje, como os eventos da mídia dominam os noticiários, uma história de como os eventos se tornaram incrustados na mídia deveria ter um interesse geral. Ela também pode abrir novos acessos a velhos problemas do passado. Os historiadores costumam falar em recuperar vozes perdidas quando encontram um incidente surpreendente nos arquivos. Eles não ouvem nada, é claro; simplesmente vêem algum fragmento de uma vida vivida há muito tempo que acende sua imaginação. F.M. Powicke, um venerando medievalista da velha escola de Oxford, descreveu sua experiência como um choque cognitivo: "Às vezes, quando trabalho em uma série de registros patentes e próximos, tenho uma sensação estranha; as entradas mortas começam a viver. É como a experiência de sentar-se na própria cadeira e descobrir que alguém sentou no gato".
O efeito sentar-no-gato pode ter gerado a energia que levou a análise de incidentes para as mesas à entrada das livrarias. Se permanecerá lá ou desaparecerá como outras modas passageiras, ninguém pode dizer. Mas se o livro de Brewer é um sintoma de uma tendência maior, parece que um novo gênero deu nova vida à história acadêmica e a trouxe para o alcance do público leitor em geral.

Robert Darnton é professor de história européia na Universidade Princeton, autor de, entre outros, "O Grande Massacre dos Gatos" (Graal) e "Edição e Sedição" (Companhia das Letras).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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