São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 2009

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O corpo no tempo

Sociólogo francês diz que o estudo do corpo ganha espaço nas universidades e renova as interpretações da história

GEORGES VIGARELLO

O corpo está presente nos textos dos historiadores ditos tradicionais: ninguém ignora a beleza das mulheres ou a sedução dos reis nem tampouco as doenças e as fomes generalizadas. Mas, mesmo presente, ele nunca é central. É apenas cenário, acidente. Acompanha os acontecimentos que supostamente fazem a história, mas não é "objeto histórico".
Suas evidências nunca são mais que anedóticas, ignoradas em sua coloração temporal.
Mas tudo vem mudando com os trabalhos recentes.
O corpo se tornou tema histórico por si só. As interrogações sobre a transformação de suas aparências, sobre a transformação de seus modos de fazer ou sentir, é hoje vista como tão "normal", tão "séria" quanto as que dizem respeito à história dos governos, dos personagens ou da sociedade.
Isso ocorre sem dúvida porque a atenção ao corpo em nossas sociedades, a seus consumos e seus cuidados, renovou a curiosidade.
É também porque as ciências sociais provocaram uma reviravolta nos questionamentos. Sociólogos, antropólogos e psicólogos investigam os comportamentos de uma maneira nunca antes feita, buscando indícios de cultura e identidade nas expressões, nos gostos, nas práticas ou sensações.

Novo sentido
O olhar se deslocou. O corpo ganhou um sentido que antes não possuía.
Uma história do corpo pode existir, já que a experiência corporal é um "ponto fronteiriço" original, em que o coletivo e o individual se cruzam.
Alguns exemplos ilustram esse fenômeno.
Para começar, a interrogação cultural. Mostrar -como fazem os historiadores da Idade Média hoje- que "a civilização medieval é uma civilização do gesto" é transformar em profundidade a visão que se tem das sociabilidades: aquelas que o estatuto ainda precário da escrita, nos tempos antigos, impõe aos comportamentos.
Juramentos e rituais, aparências e trajes ganham então uma importância nova.
Em seguida, a interrogação social. Mostrar -como fazem os historiadores do período clássico hoje- que a distinção entre as pessoas passa por um refinamento interminável dos humores é destacar a profundidade da distância social:
"Quanto mais alto se é situado na sociedade, mais se é sangrado e purgado".
E há ainda as interrogações sobre os gêneros.
A cintura, durante muito tempo apertada, das vestimentas femininas e a cintura mais livre das roupas masculinas não opõem apenas o imaginário da potência àquele da vulnerabilidade, não contrapõem apenas o pesado ao leve.
Elas também materializam os dois universos: de um lado, o trabalho da cidade e do campo, de outro o recolhimento da casa; de um lado, a brutalidade do externo, de outro a marginalidade do ambiente.

Corpo unificado
O corpo é também o lugar de representações "unificadoras".
O caso de uma visão totalmente inédita da respiração no final do século 18 é o exemplo mais marcante disso.
A vida repentinamente vista como gasto energético e princípio de rendimento, o pulmão convertido em lugar de combustão provocam uma reviravolta na aparência e na postura físicas.
O peito enrijece sob o colete dos homens, assim como cresce sob o corpete das mulheres no início do século 19.
A moda em termos de roupas até mesmo multiplica os acolchoamentos para melhor destacar essa aparência.
A atenção a um ar "que queima" reorienta as práticas sanitárias -sensíveis aos efeitos "revigorantes" atribuídos ao oxigênio- e reorienta as práticas alimentares -sensíveis à força combustível dos alimentos básicos. Uma mesma representação do corpo interliga a estética, o trabalho, a alimentação e a saúde.

Sujeito e identidade
Resta acompanhar as lógicas temporais dinâmicas, atravessando períodos e durações. Um deles é central: aquele que destaca, na história do Ocidente, a lenta "apropriação" do corpo pelo sujeito. Isto é, a ligação cada vez mais aguda entre a maneira como o corpo é vivenciado e a maneira como a identidade é afirmada.
Os sonhos, o imaginário vão pouco a pouco se tornando motivos de interrogação, como se o sujeito tivesse que explorar esse universo que faz sua "substância", sua identidade.
Até chegarmos à atitude atual de descobrir traumas de infância ou tensões esquecidas na origem das perturbações orgânicas.
O corpo tornou-se de fato o objeto inesgotável de uma história cada vez mais sensível às culturas e ao tempo.


GEORGES VIGARELLO é diretor de pesquisa da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e um dos organizadores de "História do Corpo" (ed. Vozes). A íntegra deste texto foi publicada no "Le Monde". Tradução de Clara Allain .


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