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Arca russa
Teatro completo de Gógol e "Os Pobres", de Dostoiévski, mostram o embate entre
a identidade nacional e o padrão europeu
RUBENS FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Boa parte do aparente
enigma da vitalidade
da literatura russa se
compreende melhor
à luz das circunstâncias históricas.
Por óbvia que soe tal afirmação, é importante repisá-la,
pois é insistente a tendência a
recorrer a explicações cósmicas, anímicas ou até (o que dá
na mesma) supor algum acidente genético ou evolutivo.
Um pouco menos óbvio é constatar que a combinação de fatores históricos em ação na Rússia alçava seus intelectuais a uma posição peculiar, sem comparação com outros países.
De um lado, o atraso material, a precariedade da educação e a miséria do povo marcavam como um trauma a consciência da elite mais esclarecida. De outro, a riqueza natural,
a diversidade cultural, as dimensões territoriais e demográficas nutriam ambições imperiais e o desejo de alcançar uma situação equiparável à dos países europeus.
Logo ficou claro que as resistências -internas, mas também externas- para concretizar tal projeto eram enormes.
Na ausência de um resultado material mais palpável e rápido, abriu-se para a literatura a
oportunidade de produzir, no
plano simbólico, uma equiparação com os países tidos como avançados.
Uma literatura e uma vida intelectual de alto nível eram o equivalente simbólico de um
país desenvolvido.
A contrapartida dessa situação ambígua -em que os países tidos como modelos eram
também, por força, objetos de
rancor- foi o incremento do nacionalismo russo e da identidade étnica eslava em geral -outro caso em que o simbólico vinha em socorro da carência material.
Grandeza futura
Por essa perspectiva, podemos focalizar o romance "Gente Pobre", de Dostoiévski [1821-81], e o "Teatro Completo", de Gógol [1809-52], publicados em muito boas traduções, e
com textos críticos de alto nível, de Fátima Bianchi e Arlete Cavaliere.
Gógol e Dostoiévski terminaram suas carreiras empolgados
com visões quase delirantes da
futura grandeza da Rússia e do
seu papel de redentora da Europa. As expectativas que a sociedade russa depositava em
seus escritores e em suas obras
pode ter produzido, em certo
autores, uma tensão intelectual e psicológica excessiva.
Mas "Gente Pobre" e "O Inspetor Geral" (principal peça do volume do teatro de Gógol)
precedem essa fase.
Coube a Gógol o papel de um pioneiro.
Seus contos passados em São Petersburgo, o romance "Almas Mortas" e a peça "O Inspetor Geral", situados nos confins rurais, apresentaram aos russos uma imagem de si mesmos como nunca tinham visto.
O teor cômico, que Gógol força até o grotesco e o absurdo,
conferem a tal imagem o caráter de uma provocação, de um choque.
Nota trágica
Tudo o que se apresenta em "O Inspetor Geral" era reconhecido de pronto, e as linhas
desfiguradas e bizarras como
que representavam os mecanismos ideológicos que impediam o reconhecimento, no cotidiano concreto, daquilo que, na peça, era logo identificado.
Assim, não admira que no cômico de Gógol se perceba uma nota melancólica ou trágica.
Em seu humor, vibra um desespero. Nas últimas peças,
muito bem analisadas por Cavaliere, Gógol alcança construções desconcertantes, vizinhas
ao moderno teatro do absurdo.
Os personagens meio alegóricos e os diálogos refratários à lógica usual trazem à memória,
de forma inevitável, as peças de Beckett [1906-89].
O caso de "Gente Pobre", primeiro romance de Dostoiévski, também põe em pauta o caráter
orgânico da literatura russa.
Como sublinha Bianchi, esse romance dialoga em especial com obras de Karamzin (escritor do século 18) e de Gógol.
Em vez de "dialoga", no entanto, eu diria polemiza, pois o teor polêmico foi adotado sistematicamente pela literatura russa e denota não só seu vínculo com a vida social imediata,
mas também sua tendência a constituir um conjunto em que as obras permanecem estreitamente interligadas.
Bianchi aponta que "Gente Pobre" foi muito bem recebido pelo crítico Bielínski. No romance, Bielínski percebeu que se punha em questão a vida de pessoas comuns, pobres, o mesmo traço ele havia reconhecido em Gógol.
Mas há diferenças relevantes entre "Gente Pobre" e "O Inspetor Geral".
O livro de Dostoiévski, composto por uma troca de cartas
entre um homem e uma mulher, deixa patentes influências
românticas, balizadas por um
emprego peculiar do folhetim e
do melodrama -influências das quais Dostoiévski nunca iria se desfazer.
Cômico e realista
"O Inspetor Geral", com sua
comicidade desenfreada, deslancha um realismo de fundo,
em que ressaltam em primeiro
plano figuras grotescas, unidas por um enredo em que o insólito resvala rumo ao absurdo.
Essa diferença significa muito. São vestígios de um processo em que os autores incorporam técnicas aprendidas na literatura europeia, mas as modificam sob o influxo das necessidades nacionais.
Também aqui encontramos aquele espelho impossível, em que a Rússia queria se ver à
imagem dos países avançados ao mesmo tempo em que desejava continuar a ser ela mesma.
RUBENS FIGUEIREDO é tradutor e escritor, autor de "O Livro dos Lobos" (Cia. das Letras).
TEATRO COMPLETO
Autor: Nikolai Gógol
Tradução: Arlete Cavaliere
Editora: 34 (tel. 0/xx/11/3816-6777)
Quanto: R$ 52 (408 págs.)
GENTE POBRE
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Fátima Bianchi
Editora: 34
Quanto: R$ 34 (192 págs.)
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