São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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POLÍTICA
O politicamente correto não ridiculariza os EUA como se pensa comumente
Cegueira brasileira

BARBARA MUSIMECI SOARES
especial para a Folha

É surpreendente a facilidade com que, no Brasil, especialmente nos meios jornalísticos e entre intelectuais, idéias preconcebidas, fantasiosas e supostamente críticas se generalizam e acabam, por absoluta falta de contestação, ganhando o status de realidade.
Um dos exemplos mais impressionantes do desconhecimento travestido de senso crítico é a imagem que se criou, entre nós, do que seja a sociedade norte-americana e, particularmente, do que significa, nos EUA, o politicamente correto. Supõe-se, em geral, que o país -tratado, frequentemente, como um bloco indiferenciado- esteja inteiramente dominado por leis repressivas que cerceiam a liberdade individual, enrijecem as relações entre homens e mulheres, abalam a espontaneidade e destroem o senso de humor.
Do que exatamente estamos falando, quando nos referimos ao politicamente correto? Trata-se somente de uma série de normas que asfixiam o vocabulário, restringem as relações interpessoais e substituem a competência pelo sistema de cotas? Alguém acredita, de fato, que a sociedade norte-americana passou a se devotar, gratuitamente, ao exercício da autocontenção e à disseminação de um vocabulário repleto de ridículos eufemismos? Não é curioso, senão melancólico, o fato de repetirmos os mesmos velhos comentários, pretensamente argutos, sobre o politicamente correto, tantos anos depois de o debate ter se iniciado e se diversificado nos EUA?
Para evitar a hegemonia de uma visão unilateral, sugiro abordarmos o tema de forma um pouco menos provinciana: em primeiro lugar, não podemos esquecer que, a despeito de todos os seus efeitos perversos, a discussão em torno do politicamente correto diz respeito a problemas que, no Brasil, temos enorme dificuldade em enfrentar, como a discriminação racial, a violência doméstica, a violência de gênero, a homofobia e o etnocentrismo, por exemplo. Os abusos que têm ocorrido na América do Norte, perpetrados em nome dos direitos civis, vêm sendo, frequentemente, confundidos, por nossa ignorância ilustrada, com a própria substância dos movimentos em torno desses direitos.
O fato de centenas de milhares de mulheres terem rompido o muro de silêncio da violência doméstica e das agressões sexuais e o fato de os afro-americanos terem tido acesso a posições que dificilmente alcançariam em outros tempos parece ter sido obscurecido por uma dezena de histórias bizarras que, generalizadas, passaram a refletir a sociedade dos EUA em sua totalidade.
Quando penso em "os americanos" não vejo apenas os homens brancos, protestantes, com bandeiras nacionais tremulando na porta de casa, ou as feministas ensandecidas que a imprensa brasileira costuma destacar e generalizar (o que é lamentável, em se tratando de um cenário caracterizado exatamente pela multiplicidade de feminismos) . A sociedade norte-americana é tudo menos homogênea e, tampouco, estática. Ao contrário, trata-se de uma sociedade profundamente experimental, no que concerne ao comportamento e às normas que procuram regulá-lo. Falar em "os americanos", desconsiderando a diversidade cultural de um país com enorme população de afro-americanos, asiáticos e hispânicos, entre tantos outros, é um "ato falho" que reflete não só o desconhecimento das dinâmicas culturais, mas, sobretudo, a necessidade de construir um modelo reduzido e simplificado de classificação dos fenômenos sociais.
Camille Paglia e Norman Mailer, críticos radicais do politicamente correto, representam apenas uma faceta de um debate intenso e de uma mobilização permanente, que a mídia brasileira sempre esquece de noticiar, quando retrata, unilateralmente, a chamada "ditadura do politicamente correto". Os casos que continuam a ser noticiados no Brasil, anos depois de ocorridos, como o do menino processado por beijar a coleguinha na escola, são também na América do Norte considerados ridículos e extremados. Mas insiste-se, no Brasil, em reproduzi-los como se fossem ilustrações vivas da camisa-de-força em que vivem "os americanos".
Houve e ainda há exageros, radicalismos e absurdos, ninguém nega. Esquece-se, entretanto, de que os efeitos perversos e a ameaça às liberdades individuais -fontes legítimas de inquietação- aconteceram em decorrência de mudanças profundas, que beneficiaram parcelas significativas da população, ampliando, como nunca, o universo da cidadania.
Nos EUA, o desafio já está posto há algum tempo e a sociedade discute intensamente os limites da regulação do comportamento e a redefinição das fronteiras entre o público e o privado. Enquanto ainda supomos que o país se deixa dominar por uma nova ortopedia social, "os americanos" já mobilizam poderosas reações, vivem confrontos, recuos, retrocessos e reafirmações e desenvolvem novos organismos destinados tanto a combater os excessos quanto a restaurar antigas prerrogativas.
Há, portanto, um processo dinâmico de debates permanentes que insistimos, no Brasil, em não enxergar. Confunde-se, aqui, a confortável inércia e a resistência à mudança, com a suposta espontaneidade de um modelo criativo de convívio entre dessemelhantes. Agarramo-nos infantilmente às falhas e aos excessos de uma experiência capaz, no limite, de ameaçar e desalojar velhos privilégios, para construir a imagem primitiva e cristalizada, de um país que estaria dominado pelo radicalismo conservador e falta de imaginação. Para quem acha graça em piadas racistas e precisa delas para alimentar seu senso de humor, uma sugestão: que tal se divertir com a enxurrada de piadas sobre o politicamente correto, popularizadas nos Estados Unidos e incorporadas, espertamente, ao poderoso mercado editorial?


Barbara Musimeci Soares é co-autora do livro "Violência e Política no Rio de Janeiro" (Relume-Dumará).



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