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POLÍTICA
O politicamente correto não ridiculariza os EUA como se pensa comumente
Cegueira brasileira
BARBARA MUSIMECI SOARES
especial para a Folha
É surpreendente a facilidade
com que, no Brasil, especialmente
nos meios jornalísticos e entre intelectuais, idéias preconcebidas,
fantasiosas e supostamente críticas se generalizam e acabam, por
absoluta falta de contestação, ganhando o status de realidade.
Um dos exemplos mais impressionantes do desconhecimento
travestido de senso crítico é a imagem que se criou, entre nós, do
que seja a sociedade norte-americana e, particularmente, do que
significa, nos EUA, o politicamente correto. Supõe-se, em geral, que
o país -tratado, frequentemente,
como um bloco indiferenciado-
esteja inteiramente dominado por
leis repressivas que cerceiam a liberdade individual, enrijecem as
relações entre homens e mulheres,
abalam a espontaneidade e destroem o senso de humor.
Do que exatamente estamos falando, quando nos referimos ao
politicamente correto? Trata-se
somente de uma série de normas
que asfixiam o vocabulário, restringem as relações interpessoais e
substituem a competência pelo
sistema de cotas? Alguém acredita,
de fato, que a sociedade norte-americana passou a se devotar, gratuitamente, ao exercício da autocontenção e à disseminação de um
vocabulário repleto de ridículos
eufemismos? Não é curioso, senão
melancólico, o fato de repetirmos
os mesmos velhos comentários,
pretensamente argutos, sobre o
politicamente correto, tantos anos
depois de o debate ter se iniciado e
se diversificado nos EUA?
Para evitar a hegemonia de uma
visão unilateral, sugiro abordarmos o tema de forma um pouco
menos provinciana: em primeiro
lugar, não podemos esquecer que,
a despeito de todos os seus efeitos
perversos, a discussão em torno
do politicamente correto diz respeito a problemas que, no Brasil,
temos enorme dificuldade em enfrentar, como a discriminação racial, a violência doméstica, a violência de gênero, a homofobia e o
etnocentrismo, por exemplo. Os
abusos que têm ocorrido na América do Norte, perpetrados em nome dos direitos civis, vêm sendo,
frequentemente, confundidos,
por nossa ignorância ilustrada,
com a própria substância dos movimentos em torno desses direitos.
O fato de centenas de milhares
de mulheres terem rompido o muro de silêncio da violência doméstica e das agressões sexuais e o fato
de os afro-americanos terem tido
acesso a posições que dificilmente
alcançariam em outros tempos
parece ter sido obscurecido por
uma dezena de histórias bizarras
que, generalizadas, passaram a refletir a sociedade dos EUA em sua
totalidade.
Quando penso em "os americanos" não vejo apenas os homens
brancos, protestantes, com bandeiras nacionais tremulando na
porta de casa, ou as feministas ensandecidas que a imprensa brasileira costuma destacar e generalizar (o que é lamentável, em se tratando de um cenário caracterizado
exatamente pela multiplicidade de
feminismos) . A sociedade norte-americana é tudo menos homogênea e, tampouco, estática. Ao
contrário, trata-se de uma sociedade profundamente experimental, no que concerne ao comportamento e às normas que procuram
regulá-lo. Falar em "os americanos", desconsiderando a diversidade cultural de um país com
enorme população de afro-americanos, asiáticos e hispânicos, entre
tantos outros, é um "ato falho"
que reflete não só o desconhecimento das dinâmicas culturais,
mas, sobretudo, a necessidade de
construir um modelo reduzido e
simplificado de classificação dos
fenômenos sociais.
Camille Paglia e Norman Mailer,
críticos radicais do politicamente
correto, representam apenas uma
faceta de um debate intenso e de
uma mobilização permanente,
que a mídia brasileira sempre esquece de noticiar, quando retrata,
unilateralmente, a chamada "ditadura do politicamente correto".
Os casos que continuam a ser noticiados no Brasil, anos depois de
ocorridos, como o do menino
processado por beijar a coleguinha na escola, são também na
América do Norte considerados
ridículos e extremados. Mas insiste-se, no Brasil, em reproduzi-los
como se fossem ilustrações vivas
da camisa-de-força em que vivem
"os americanos".
Houve e ainda há exageros, radicalismos e absurdos, ninguém nega. Esquece-se, entretanto, de que
os efeitos perversos e a ameaça às
liberdades individuais -fontes legítimas de inquietação- aconteceram em decorrência de mudanças profundas, que beneficiaram
parcelas significativas da população, ampliando, como nunca, o
universo da cidadania.
Nos EUA, o desafio já está posto
há algum tempo e a sociedade discute intensamente os limites da regulação do comportamento e a redefinição das fronteiras entre o
público e o privado. Enquanto
ainda supomos que o país se deixa
dominar por uma nova ortopedia
social, "os americanos" já mobilizam poderosas reações, vivem
confrontos, recuos, retrocessos e
reafirmações e desenvolvem novos organismos destinados tanto a
combater os excessos quanto a
restaurar antigas prerrogativas.
Há, portanto, um processo dinâmico de debates permanentes que
insistimos, no Brasil, em não enxergar. Confunde-se, aqui, a confortável inércia e a resistência à
mudança, com a suposta espontaneidade de um modelo criativo de
convívio entre dessemelhantes.
Agarramo-nos infantilmente às
falhas e aos excessos de uma experiência capaz, no limite, de ameaçar e desalojar velhos privilégios,
para construir a imagem primitiva
e cristalizada, de um país que estaria dominado pelo radicalismo
conservador e falta de imaginação.
Para quem acha graça em piadas
racistas e precisa delas para alimentar seu senso de humor, uma
sugestão: que tal se divertir com a
enxurrada de piadas sobre o politicamente correto, popularizadas
nos Estados Unidos e incorporadas, espertamente, ao poderoso
mercado editorial?
Barbara Musimeci Soares é co-autora do livro
"Violência e Política no Rio de Janeiro" (Relume-Dumará).
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