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PONTO DE FUGA
A identidade da cópia
JORGE COLI
especial para a Folha, em Nova York
De raro em raro, na Grécia antiga, um grande artista inventava uma escultura tão definitiva, que ela se tornava um
protótipo. Inventar era, naqueles tempos, uma exceção, e a
atividade artística concentrava-se nas cópias. Os originais
da "Palas", de Fídias, ou de
"Vênus", de Praxíteles, desapareceram; eles são conhecidos
apenas graças a diversas réplicas. Cada uma conserva as definições da obra original, mas
vem acompanhada por variantes que, mesmo mínimas, trazem perturbações sedutoras.
Ao contrário dos gregos, imagina-se hoje que todo objeto artístico deva ser original. No cinema, um "remake" -a retomada de uma trama ou de um
roteiro já filmados- é "recriação", "reinvenção". Pela primeira vez um diretor decidiu
calcar seu filme, desde os movimentos de câmera até a montagem, sobre outro que o precedeu. Se "Psycho", de Hitchcock,
desaparecesse para sempre, ficaria dele uma réplica fiel, realizada por Gus Van Sant. Numa discreta atualização, ela
inclui cores, modifica alguns
comportamentos e detalhes do
cenário. Tem-se a sensação
inusitada de se ver outro filme
através do filme, onde a sensibilidade nova da cópia, modesta e submissa, é regida pelos
parâmetros essenciais da primeira criação. Hitchcock havia
feito uma obra tão perfeita, tão
forte, tão "clássica", que a nova
versão não pode ser tomada como concorrente. Assinalar suas
"inferioridades" será, sem falta, uma boa armadilha para
críticas desavisadas.
BOHÈME - Muito antes de
Malevitch, Alohonse Allais já
havia apresentado abstrações
monocromáticas. Seu branco
sobre branco, de forma retangular, chamava-se "Primeira
Comunhão de Meninas Anêmicas, sob a Neve". É dele também a "Marcha Fúnebre Composta para um Grande Homem
Surdo", que não contém uma
só nota. A exposição "The Spirit of Montmartre", organizada pela Universidade de Nova
Jersey, mostra o quanto as vanguardas do século 20 devem
suas invenções, com muito humor de menos, a uma certa
postura mental tomada por esses boêmios parisienses desde
1875. Se alguns nomes são conhecidos isoladamente
-Jarry, Apollinaire, Lautrec,
Satie-, muitos outros são revelações. Sobretudo apresentá-los em coexistência lhes confere um sentido mais forte e
precursor. Nos cabarés reuniam-se grupos como "Os Hidropatas", "Os Incorerentes"
(cuja derivação baudelairiana
inclinava-se para um surrealismo "avant la lettre" desde o lema: "O inimigo da incoerência
é o tédio") e precederam o espírito de Dada, dos Futuristas, de
Duchamp, dentro de uma
imensa felicidade debochada.
PAIXÃO - A homenagem
prestada por Van Sant a
"Psycho" vem abençoada pela
filha de Hitchcock. Tudo banha num clima de camaradagem - há um agradecimento
final a John Woo, que emprestou a faca de cozinha. Amor intenso pelo cinema: um diretor
de hoje tenta entrar na pele de
um grande mestre, refazendo a
gênese de uma obra-prima. A
música de Herrmann sobressai,
lancinante, nas suas geniais
punhaladas sonoras.
ANTROPOFAGIA - A galeria Cheim & Read, no Chelsea,
trouxe da Hungria uma série
de cabeças, em bronze, de Messerschmidt, escultor austríaco
do século 18. Os músculos estiram-se ao extremo, para figurar o paroxismo de expressões
interiores: medo, sono, choro,
dificuldade em guardar um segredo, risada da loucura. Junto
a elas, escolhidas a dedo, obras
de Louise Bourgeois e de Francis Bacon que reagem entre si,
multiplicando seus poderes e
postulando, pelo corpo em pesadelo, um acesso aos
"bas-fonds" dos sentimentos e
das sensações.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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