São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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PONTO DE FUGA

A identidade da cópia

JORGE COLI
especial para a Folha, em Nova York

De raro em raro, na Grécia antiga, um grande artista inventava uma escultura tão definitiva, que ela se tornava um protótipo. Inventar era, naqueles tempos, uma exceção, e a atividade artística concentrava-se nas cópias. Os originais da "Palas", de Fídias, ou de "Vênus", de Praxíteles, desapareceram; eles são conhecidos apenas graças a diversas réplicas. Cada uma conserva as definições da obra original, mas vem acompanhada por variantes que, mesmo mínimas, trazem perturbações sedutoras. Ao contrário dos gregos, imagina-se hoje que todo objeto artístico deva ser original. No cinema, um "remake" -a retomada de uma trama ou de um roteiro já filmados- é "recriação", "reinvenção". Pela primeira vez um diretor decidiu calcar seu filme, desde os movimentos de câmera até a montagem, sobre outro que o precedeu. Se "Psycho", de Hitchcock, desaparecesse para sempre, ficaria dele uma réplica fiel, realizada por Gus Van Sant. Numa discreta atualização, ela inclui cores, modifica alguns comportamentos e detalhes do cenário. Tem-se a sensação inusitada de se ver outro filme através do filme, onde a sensibilidade nova da cópia, modesta e submissa, é regida pelos parâmetros essenciais da primeira criação. Hitchcock havia feito uma obra tão perfeita, tão forte, tão "clássica", que a nova versão não pode ser tomada como concorrente. Assinalar suas "inferioridades" será, sem falta, uma boa armadilha para críticas desavisadas.

BOHÈME - Muito antes de Malevitch, Alohonse Allais já havia apresentado abstrações monocromáticas. Seu branco sobre branco, de forma retangular, chamava-se "Primeira Comunhão de Meninas Anêmicas, sob a Neve". É dele também a "Marcha Fúnebre Composta para um Grande Homem Surdo", que não contém uma só nota. A exposição "The Spirit of Montmartre", organizada pela Universidade de Nova Jersey, mostra o quanto as vanguardas do século 20 devem suas invenções, com muito humor de menos, a uma certa postura mental tomada por esses boêmios parisienses desde 1875. Se alguns nomes são conhecidos isoladamente -Jarry, Apollinaire, Lautrec, Satie-, muitos outros são revelações. Sobretudo apresentá-los em coexistência lhes confere um sentido mais forte e precursor. Nos cabarés reuniam-se grupos como "Os Hidropatas", "Os Incorerentes" (cuja derivação baudelairiana inclinava-se para um surrealismo "avant la lettre" desde o lema: "O inimigo da incoerência é o tédio") e precederam o espírito de Dada, dos Futuristas, de Duchamp, dentro de uma imensa felicidade debochada.

PAIXÃO - A homenagem prestada por Van Sant a "Psycho" vem abençoada pela filha de Hitchcock. Tudo banha num clima de camaradagem - há um agradecimento final a John Woo, que emprestou a faca de cozinha. Amor intenso pelo cinema: um diretor de hoje tenta entrar na pele de um grande mestre, refazendo a gênese de uma obra-prima. A música de Herrmann sobressai, lancinante, nas suas geniais punhaladas sonoras.

ANTROPOFAGIA - A galeria Cheim & Read, no Chelsea, trouxe da Hungria uma série de cabeças, em bronze, de Messerschmidt, escultor austríaco do século 18. Os músculos estiram-se ao extremo, para figurar o paroxismo de expressões interiores: medo, sono, choro, dificuldade em guardar um segredo, risada da loucura. Junto a elas, escolhidas a dedo, obras de Louise Bourgeois e de Francis Bacon que reagem entre si, multiplicando seus poderes e postulando, pelo corpo em pesadelo, um acesso aos "bas-fonds" dos sentimentos e das sensações.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com




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