São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2001

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Até o fim do mundo

Em "Após o Apocalipse" o americano Eugen Weber rastreia as narrativas milenaristas ao longo da história

Alcir Pécora
especial para a Folha

No princípio, veio o susto: "Após o Apocalipse -Crenças de Fim (e Recomeço) de Mundo" tem uma capa horrorosa, bem ao estilo tricolor macabro que se usa nas apelações escandalosas dos livros esotéricos. Eugen Weber, professor aposentado de história moderna européia da Universidade da Califórnia, merecia coisa melhor. Mas não há dúvida de que pagou o preço do populismo comercial que anda à roda de seu tema. Ao que consta, Weber escreveu o presente livro a partir de um convite da Universidade de Toronto para tratar o tema dos "fins-de-siècle", que conseguiu trocar a tempo pelo dos "apocalipses", visto que o primeiro parecia-lhe restrito à passagem do século 19 para o 20 e o segundo acrescentava o desafio de um assunto constrangedor do ponto de vista racionalista ou científico.
A forma que adota para desenvolver a questão não parece em nada com uma interpretação ou explicação especializada. Tem mais a ver com uma narrativa variadíssima ou uma coleta de descrições de toda sorte, tempo e lugar em torno de um relato matriz, contido no capítulo 20 da "Revelação", narrada pelo autor que se apresenta como "João": "Vi então descer do céu um anjo que trazia nas mãos a chave do abismo e uma grande cadeia. Ele pegou o dragão, a serpente antiga, que é o diabo, Satanás, e o acorrentou por mil anos. Lançou-o no abismo e o fechou, pondo em cima um selo, para já não extraviar as nações até o fim dos mil anos, depois será solto por pouco tempo...".

Pré e pós-milenaristas A exposição de Weber segue, com humor, uma quantidade enorme de formulações apocalípticas em torno dessa passagem do texto escritural e destaca, como se adivinha pelo trecho assinalado, as versões que acentuam as suas tendências milenaristas. Embora estas sejam em número tal que seria um contra-senso tentar classificar os seus tipos, pode-se referir à distinção ampla que separa os "pré-milenaristas", violentos e catastróficos, que imaginam a vinda do Cristo antes do tempo de mil anos durante o qual o diabo passará amarrado, e os "pós-milenaristas", mais moderados e confiantes no poder do livre-arbítrio, que acham que Cristo apenas virá depois de instalado esse período pacífico.
A posição do padre Vieira, a meio entre as duas, com a sua fórmula admirável do "Vice-Cristo", não é mencionada por Weber, que tampouco a examina quando trata das teses da "Quinta Monarquia", proposta por autores ingleses do século 17, que guardam muitas semelhanças com as do "Quinto Império" imaginado pelo jesuíta português. Tampouco outro Antônio, o Conselheiro, comparece no livro de Weber. Do Brasil, o "apocalipsismo" terá como representante apenas a particular mescla de fontes cristãs e marxistas efetuada pela Teologia da Libertação.
Antes de anunciar a tese principal de Weber, gostaria apenas de salientar que ela é menos importante, para o próprio autor, do que a coleta de múltiplas narrativas que compõem o seu caminho e que são, a meu ver, a principal determinação metodológica do seu trabalho. Trata-se de um caminho que não é nem pretende ser exaustivo; não recorre a fontes originais e tampouco opera a partir de teorias ou modelos analíticos fortes.
Poderia dizer, talvez, que o que Weber faz é, por meio de uma espécie de ceticismo jovial, dar liga a um sem-número de variedades de relatos milenaristas, desde os mais conhecidos, como os de Joachim de Fiore, autor de um suposto terceiro "Evangelho do Espírito Santo", aos mais bizarros, como os dos "quackers" "tremedores" ou os de Joanna Southcott, que se anunciou como a noiva do Cordeiro, para não falar dos mais perversos e destrutivos, como os de Jim Jones (que resultou em 913 suicídios), Vernon Howell (que chegou à marca de 73), Luc Jouret (48) ou Chizuo Matsumoto, fundador da Aum Shinrikyo, que, após borrifar Tóquio e seus arredores com toxinas variadas, lançou gás sarin na tubulação do metrô, matando 11 pessoas e afetando milhares.
Dito assim, até pareceria que a grande questão de Weber é demonstrar o irracionalismo perigoso dessas seitas, mas não é nada disso. Sem eliminar a gravidade e mesmo o descontrole alucinado de alguns de seus possíveis efeitos, as narrativas recolhidas por ele levam-no a uma posição oposta à de autores, de resto, muito distintos entre si, como Norman Cohn, Eric Hobsbawm ou mesmo E.P. Thompson. Para estes, grosso modo, as idéias milenaristas estão relacionadas a privação, protesto, perplexidade ou busca de revoltas radicais, que se traduzem, em última instância, pela tese thompsoniana do "quiliasmo do desespero", isto é, a de que o fenômeno é mais ou menos típico de pessoas oprimidas e sem instrução, movidas por desejos pré-políticos de vingança social. Tal tese, que, segundo Weber, trata de "varrer a questão para baixo do tapete", em nome de modelos mais racionais de ação política, pode ser contraditada pelo rol infindável de argumentos indutivos "por exemplo" fornecidos ao longo do livro.
Fantasias históricas Os relatos que o livro acumula pretendem deixar claro, pois, que todo tipo de gente, incluindo gênios e cientistas decisivos, membros perfeitamente respeitáveis das classes médias e superior, compartilharam as mesmíssimas idéias escatológicas que aqueles historiadores tendem a reservar a idiotas, excêntricos e excluídos. A tese de Weber, a qual não tem nenhuma explicação particularmente original ou sedutora, é a de que apocalipsismo e milenarismo, longe se serem excepcionais, são demasiado comuns, penetram em todas as classes sociais e têm uma obstinada sobrevivência na história das civilizações. A razão que oferece é basicamente existencial: a ruptura apocalíptica e o inacreditável fazem parte do repertório usual dos argumentos admissíveis para a construção das significações das vidas humanas, povoadas pela morte inescapável.
Apocalipses são, para ele, a amplificação do sofrimento cotidiano em catástrofes cósmicas e constituem um esforço de dar-lhe significação, ainda que seja apenas o da grandeza da amplificação. Eles fornecem explicações toleráveis para a dor e a banalidade: dão descrições suficientemente dignas, em sua amplitude, para o que não pode ser tolerado na sua pura contingência. Se são "fantasias históricas", são também "parte da história" que a faz ser como é, para poder ser também diferente do que é: esforços de organizar o tempo e proporcionar marcos que garantam um futuro ao futuro.



Após o Apocalipse
270 págs., R$ 28,50
de Eugen Weber. Tradução de Luís Gomes. Ed. Mercuryo (al. dos Guaramomis, 1.267, CEP 04076-012, SP, tel. 0/xx/11/ 531-8222).



Alcir Pécora é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de, entre outros, "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp).


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