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Corpos fechados
Brasil está defasado em relação a vizinhos sul-americanos quanto à preservação da memória da ditadura
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Os temas dos direitos humanos e da
preservação da
memória de tempos terríveis, no
nosso continente, concentram-se principalmente nos casos
das ditaduras instauradas na
Argentina, no Chile e no Brasil,
nas décadas de 1960 e 1970 do
século passado.
Nesse quadro, o Brasil está
bem atrás de seus vizinhos, não
obstante as iniciativas dos governos Fernando Henrique e
Lula, assim como das organizações da sociedade civil.
O que mais avançou foram as
justas indenizações às vítimas
ou a suas famílias, embora concedidas, em vários casos, com
uma largueza injustificável.
Boas e más razões
O discutido terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, encaminhado ao Congresso pelo presidente Lula nas
vésperas do Natal de 2009, tratou da questão de cambulhada
com uma série de outras.
Isso gerou, por boas e más razões, críticas vindas de todos os
lados.
Diante delas, sob pressão militar, o Executivo alterou o texto que visa a promover a apuração e o esclarecimento das violações de direitos humanos,
praticados sobretudo no contexto da repressão política, a
fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e
promover a reconciliação nacional, suprimindo a referência
à "repressão política".
A possibilidade de que torturadores venham a ser punidos é
praticamente inexistente, e a
preservação da memória dos
tempos ditatoriais suscita muitas resistências.
Por que isso acontece? Em
primeiro lugar, porque em nosso país a ditadura não abrangeu
amplos setores sociais, como
na Argentina e no Chile.
Evito aqui falar na infeliz
contraposição entre "ditadura"
e "ditablanda", pois, para vítimas de torturas e mortes, assim
como para seus parentes, a expressão "ditablanda" chega a
ser obscena.
Mas, no plano histórico, a
amplitude menor da repressão
fez com que a luta pelos direitos
das vítimas e pela preservação
da memória se reduzisse a círculos restritos, não obstante
sua intensa atuação.
Fico num único exemplo
comparativo. Não temos entre
nós nada semelhante ao ocorrido na praça de Maio, em Buenos Aires, que, para muitos, é a
"Plaza de las Madres", onde as
mães e avós de desaparecidos
manifestaram-se, semanalmente, ao longo dos anos.
A praça, em frente à Casa Rosada, tornou-se, assim, um lugar de memória.
Povo sem memória
Por outro lado, é verdadeiro e
ao mesmo tempo banal constatar que somos um povo sem
memória. Isso ocorre não porque a "falta de memória" esteja
inscrita no DNA dos brasileiros, mas por outras razões.
O Brasil conheceu raras situações traumáticas em grande
escala cujas consequências tenham atingido o conjunto da
população. Nossas mazelas são
de outro tipo: miséria, pobreza,
desigualdade social.
Também, a precariedade de
nosso sistema educacional
-um dos principais instrumentos de transmissão da memória histórica ao longo das gerações- contribui para esse
quadro, em que o passado se assemelha a um buraco negro,
com raros clarões de luz.
Outro fator que pesa na dificuldade de preservação da memória dos anos de chumbo é a
negativa de membros da cúpula
das Forças Armadas em reconhecer o papel deletério desempenhado não só por militares como também por civis, na
implantação do regime autoritário e em sua radicalização.
Admitir essa culpa não significa negar a profunda instabilidade do governo Jango [1961-64] nem encarar os integrantes
das organizações de luta armada como jovens românticos,
que lutavam pela restauração
da democracia.
Mas a ação de rebeldes e a de
agentes do Estado cujo dever é
prender e julgar, e não torturar
e matar, não se equivalem, como pretendem os que querem
apagar a memória.
Nem de longe trata-se de
promover a execração das Forças Armadas, hoje circunscritas
a sua missão constitucional,
mas de encarar de frente um
período nefasto.
Reconciliação
Um exemplo simbólico vem
do Chile.
Em 2006, a Marinha chilena
recebeu membros do Agrupamento de Direitos Humanos
Salvador Allende, em visita
conjunta à ilha de Dawson, no
extremo sul do país -local de
prisão e tortura nos tempos de
Pinochet- com o propósito de
promover a reconciliação nacional e reconhecer as infâmias
praticadas nos tristes tempos
de um passado recente.
No caso brasileiro, abrir arquivos ainda fechados, localizar corpos de desaparecidos,
instituir museus e outros lugares de memória são iniciativas
que não desonram as Forças
Armadas e que, ao contrário,
contribuem para o fortalecimento da democracia.
Oxalá, as novas gerações de
militares possam dar passos
decisivos nesse sentido.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da
Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 30" (Companhia das Letras).
borisfausto@uol.com.br
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