São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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Codinome Machado

Pesquisadora defende que crônicas de jornal atribuídas a Capistrano de Abreu são do autor de "Dom Casmurro"

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Doutora em letras pela Universidade de São Paulo, a pesquisadora Heloisa Helena Paiva de Luca defende um achado sobre Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908): ele seria o autor das crônicas escritas sob o pseudônimo Mercutio, na "Gazeta de Notícias", em 1883.
Mercutio assinou a primeira e cinco outras crônicas da seção "Balas de Estalo", de textos provocativos sobre o cotidiano. Tradicionalmente, a autoria é atribuída ao historiador Capistrano de Abreu (1853-1927). Paiva de Luca diz que não incluiu os textos na edição que organizou das "Balas de Estalo de Machado de Assis" (ed. Annablume), em 2008, porque "ainda precisava de dados" para defender essa hipótese.
Machado, afirma ela, escreveu como Mercutio e depois como Lélio, cabendo a Capistrano o pseudônimo Blick.

 

FOLHA - Mercutio é um pseudônimo de Machado de Assis?
HELOISA HELENA PAIVA DE LUCA
- Desde o mestrado isso estava dançando em minha cabeça. Durante a pesquisa, ficou muito evidente que Mercutio era Machado. Como meu doutorado era ligado ao curso de francês, para defender a tese, haveria que defender alguma ligação entre França e Brasil. Estudei Molière e deixei [Mercutio] para depois do doutorado -quando aluguei o aparelho para ler microfilmes e cheguei a essa conclusão.

FOLHA - Que argumentos fundamentam sua tese?
PAIVA DE LUCA
- São de duas vertentes. Primeira, as crônicas dos outros contribuidores das "Balas de Estalo". Algumas frases trazem essa verdade à tona. Um dos jornalistas, Dermeval da Fonseca, usava o pseudônimo Décio. Ele escreveu que "este Mercutio e este Blick eram aquele mesmo e único professor de história".
Depois disso, ninguém foi procurar ver se Mercutio e Blick eram o mesmo autor. Mas Valentim Magalhães, o José do Egito, fala que, "quanto ao Mercutio, (...) ficou tão envergonhado -coitadinho!- que tratou logo de mudar de nome".
Mercutio escreveu seis crônicas. Na última, critica o sobe e desce dos ministérios. O imperador aceitaria o sobe e desce, e por isso o país não ia para a frente. A alfinetada no imperador foi grande. Machado... não, Mercutio... também alfineta o positivismo, especialmente a prática de grupos fechados, a maçonaria. Não dá para dizer com certeza quem foi o mais atingido e quem lhe deu uma podada, mas ele ficou um mês sem escrever e voltou como Lélio. Minha tendência é pensar que foi o imperador.

FOLHA - Houve censura?
PAIVA DE LUCA
- Sim. Além disso, são completamente diferentes os modos de escrita de Machado e Capistrano. Este é um historiador, não um cronista ou ficcionista. Em todas as seis crônicas de Mercutio, a temática é muito ligada à temática de Machado.

FOLHA - E está sendo fácil convencer os colegas de sua descoberta?
PAIVA DE LUCA
- Até agora só conversei com meu orientador [Gilberto Pinheiro Passos], grande especialista no autor. Ele concorda: não existe 100% de certeza, mas ali há 99% de Machado.

FOLHA - Os pseudônimos eram meios de proteger a identidade dos autores ou eram "heterônimos", personagens?
PAIVA DE LUCA
- O dono da "Gazeta de Notícias" [Ferreira de Araújo] queria fazer uma matéria muito inovadora -e realmente isso não tinha ainda acontecido no jornalismo brasileiro. No começo queria "balas de artilharia", com crônicas mais agressivas. Então o pseudônimo era um escudo. Depois o tom muda, alguma coisa séria deve ter acontecido para os textos ficarem menos picantes.

FOLHA - O nome "Balas de Estalo" dá uma ideia de festim...
PAIVA DE LUCA
- Realmente, as crônicas deveriam ser de pouco efeito. É como hoje, quando alguém alfineta o jeito de falar do presidente, sem se atrever a falar mal dele.

FOLHA - Mercutio, em "Romeu e Julieta", é um amigo falastrão, conselheiro a quem não dão ouvidos. Que devemos tirar dessa alusão?
PAIVA DE LUCA
- Machado gostava muito de Shakespeare. Antes de Mercutio, já tinha escolhido Malvolio, ironia com o Benvolio do Shakespeare. Ele sai da tragédia inglesa para a comédia de Molière, pois Lélio é personagem da peça "L'Étourdi" [O Aturdido], também um tipo alegre, amigo, generoso -há um grande ponto em comum entre os dois, personagens de mesma estrutura de composição, de alma. Nada a ver com Blick, que em alemão significa "olhar", "mirada".

FOLHA - A sra. estudou a influência francesa em Machado, especialmente Molière. Como o humor explícito desse autor se transforma na ironia machadiana?
PAIVA DE LUCA
- Machado é um disfarçador. Quando queria fazer o leitor rir, trazia de Molière uma frase, uma expressão, às vezes um versinho.

FOLHA - O humor da crônica é diferente da dos romance ou contos?
PAIVA DE LUCA
- Não sou especialista no romance de Machado, mas diria que não há muita diferença.

FOLHA - Quanto Machado muda de estilo entre a "Gazeta de Notícias" e "A Semana" , por exemplo?
PAIVA DE LUCA
- Quando começou a escrever "Balas de Estalo", ele já tinha mais de 20 anos de jornalismo. Antes, parece que tinha sido uma procura, suas crônicas eram mais simples, com tracinhos gráficos separando um tema do outro. Ainda não era o Machado por inteiro. "Balas de Estalo" foram a transição de uma fase experimental para uma fase madura. "A Semana" é o "filé mignon".

FOLHA - O que o leitor comum pode aprender com essas crônicas?
PAIVA DE LUCA
- A escrita em alto estilo. A crônica tem de ter aquele elo de pensamento, um parágrafo conectado ao outro por algum ponto.

FOLHA - São possíveis textos como esses nos jornais de hoje?
PAIVA DE LUCA
- Sim, vocês têm um exemplo na Folha: Carlos Heitor Cony pega fatos e desenvolve de maneira muito bonita, gostosa de ler.


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