São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2001

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OUTROS MÚSICOS POR BERMAN

Reuters
A cantora Lady Pink durante show em Los Angeles, neste ano


Elvis Presley - Quando Elvis surgiu, em meados dos anos 50, eu não gostei muito, achei muito simples e rudimentar. Por outro lado, gostava muito de alguns músicos negros que não soavam muito diferente dele, muitos cantores de blues que estavam cantando um som mais pesado, como Muddy Waters; eles não tinham vozes melódicas e faziam questão de soar simples. Quando Elvis surgiu, eu fui esnobe e de uma forma peculiar, do tipo "eu conheço os negros de quem Elvis roubou tudo isso". Era fácil ouvi-los, havia muitas estações de rádio que tocavam suas músicas.

Ray Charles - Uma coisa muito criativa estava ocorrendo na minha juventude. Negros que haviam crescido na igreja estavam usando a música religiosa de forma secular, cantando sobre a mulher que amavam da forma que lhes havia sido ensinado a cantar somente para Deus. Eles reciclavam temas bastante elevados de forma a cantar temas mundanos, ainda que idealizados.
O que as pessoas chamam de rhythm and blues (R&B) e de soul surgiu assim. Muitas músicas nessa tradição são formas recicladas e transformadas da música gospel. Esta, por sua vez, estava passando por uma grande transformação porque era muito simples quando havia começado. Era a versão negra da música country, com alguns violões e harmonias básicas, com duas ou três partes.
Durante os anos 50 e 60, a música gospel tornou-se muito mais complicada, com bandas grandes e guitarras elétricas. Mudou também porque você tinha músicos maravilhosos trabalhando com isso, e assim se tornou muito mais rica. Sam Cook, por exemplo, era um maravilhoso cantor de blues que começou sua carreira aos 8 anos como um cantor de gospel. Ele começou a reciclar as músicas com as quais ele havia crescido num contexto completamente novo e secular. Meus pais não eram judeus ortodoxos, mas nós crescemos cercados por pessoas religiosas. A ambivalência sobre religião que transparece no R&B e na música soul é algo muito próximo do meu coração.

Stevie Wonder - Ele tinha uma mãe muito religiosa e um pai mundano (ou incrédulo), secular e cínico, que era policial. A biografia dele passa pelo conflito entre esses dois tipos de sensibilidade. Pelo menos essa é a biografia que ele sempre divulgou. Tenho muita afinidade com Stevie Wonder. Durante os anos 60, gastei uma quantidade razoável de energia organizando demonstrações contra a Guerra do Vietnã -tenho certeza de que se tivessem feito então uma enquete entre os negros no "showbiz", 95% deles seriam contra a guerra, embora poucos estivessem dispostos a aparecer nas demonstrações que fossem majoritariamente de brancos.
Stevie Wonder foi um dos poucos que fizeram isso. Ele era um adolescente naquela época e estava disposto a participar de demonstrações pela paz no Central Park e cantar aquelas canções incríveis. Aquele talvez tenha sido seu melhor período, com músicas como "A Place in the Sun" e a versão dele de "Blowin" in the Wind". Bob Dylan comentou certa vez que essa versão era muito melhor do qualquer outra que ele pudesse ter feito.

Michael Jackson - Ele criou músicas incríveis. "Beat It" é uma das grandes canções da música popular americana. Envolve todo tipo de fusão, incluindo o Eddie van Halen tocando guitarra naquela quebra na música. Aquilo é espetacular! Mais uma vez, envolve negros ouvindo música branca; nesse caso, ouvindo heavy metal e fazendo coisas interessantes com isso. Heavy metal sempre pareceu para mim uma regressão musical total.
Posso até estar sendo injusto, mas sempre achei que essa música não me dizia nada e que era apenas barulho. Hoje vejo que havia muitas pessoas talentosas fazendo heavy metal... Michael Jackson era um soprano puro nos seus trabalhos iniciais, como "ABC", que foi uma das grandes músicas utópicas da década de 70.
O fato é que visões utópicas nem sempre são categorizadas como tal. Uma das coisas que a crítica cultural precisa fazer melhor é separá-las, pois elas aparecem nos mais variados lugares, às vezes até mesmo no lixo comercial. Muitos produtos comerciais e propagandas imitam visões que transcendem seus propósitos originais. Eu acho que a cultura de massa é assim em geral e essa é uma das coisas interessantes sobre os tempos modernos, uma mistura de pessimismo com otimismo. Muitas canções populares fazem isso.


Caetano Veloso - Tenho certeza de que, se você falar com alguém como Caetano Veloso, ele poderia te dar uma versão enormemente complicada do tema da utopia, em mais de 20 idiomas culturais diferentes. Minha impressão dele é que ele sabe disso tudo e tem processado essa informação de formas bastante complicada. Ele deve ter várias coisas em mente que poderá vir a usar daqui a 20 anos, quando descobrir como fazê-lo. Ele é uma das pessoas mais impressionantes da música popular brasileira. Mas o que é mais impressionante é o fato de ele estar aberto para tudo, um sentimento de que tudo pode se tornar parte dessa visão utópica.


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