São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2001

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A BATIDA QUE VEM DAS RUAS

Documentário retrata a experiência do rap na periferia da Grande São Paulo

Maurício Santana Dias
da Redação

Para muita gente, rap e hip hop, estilos e ritmos que há algum tempo sacodem a periferia das grandes cidades brasileiras e começam a circular com força na mídia, não passam de mais um modismo importado dos EUA. Mas talvez a coisa não seja tão simples assim. Dar conta da complexidade desse fenômeno cultural é um dos propósitos do documentário "Vinte/Dez", que os diretores Tata Amaral e Francisco Cesar Filho acabam de finalizar.
Filmado na periferia de Santo André, cidade operária que integra o ABC paulista, o vídeo de 26 minutos escapa ao preconceito e mostra como jovens de 13 a 20 anos estão transformando a música, a dança, o grafite e um jeito peculiar de vestir e gesticular em novas formas de ação política. "A idéia era encontrar personagens que representassem os elementos do mundo rap, ligados à dança ("break'), ao grafite, à música, às letras e ao que eles chamam de consciência -que seria o quinto elemento", diz Tata Amaral na entrevista a seguir.
A organização em pequenos grupos é espontânea, e seus objetivos são claros: melhorar a qualidade de vida nas comunidades em que vivem. Essa é por exemplo a proposta do núcleo Rotação (Resistência Organizada de Trabalho e Ação), incentivado pelos irmãos Shirlei, 17, e Deivison Mendes Faustino, 19, que fazem parte do documentário.

Por que o título "Vinte/Dez"?
Inicialmente a idéia era chamar o filme de "2010", que seria uma espécie de projeção do que os jovens esperariam para aquela data. Mas o pessoal da comunidade começou a ler o "2010" como "vinte-dez", e aí resolvemos incorporar essa leitura ao título.
O morador de Higienópolis, dos Jardins ou de Pinheiros faz idéia do que seja a Grande São Paulo?
Acho que não. Eu mesma não fazia, antes da experiência do filme. Hoje existem todas essas classificações arbitrárias entre classe A, B, C chegando até a E, mas elas de fato não dão conta das diferenças sociais e da situação de miséria de certos setores. Vi coisas incríveis, gente que vive em um cômodo paupérrimo, mas que tem um superequipamento de som, porque é o instrumento de trabalho deles. A vida na periferia é muito dura.
Os jovens rappers ainda são muito associados ao uso de drogas e à criminalidade?
Ouve-se falar muito nisso, mas o que eu vi lá dentro é um discurso contra as drogas, de defesa de território. Se você reparar nas letras das músicas, vai ver que elas falam de drogas e de criminalidade, mas com uma postura crítica. Os meninos da segunda geração de rappers dizem que se fala muito, mas não se faz nada para mudar a situação. Eles querem ir além da denúncia. Por isso eles cantam a história de violência que os cerca, propondo uma saída que é política.
Por que o rap e o hip hop, surgidos nos EUA nos anos 70, se tornaram uma espécie de cultura internacional das grandes metrópoles?
O filme não dá conta dessa questão, mas acho que o rap e o hip hop, com as suas colagens, o grafite, os slogans, estão ligados à cultura pós-moderna. O pessoal não dispõe dos veículos tradicionais de divulgação da cultura, então vai pintar os muros das ruas, vai se reunir para dançar, jogar capoeira, fazer letras e discutir seus problemas. A internacionalização também tem a ver com o tipo simples de música, feita de colagens de sons, uma espécie de Karlheinz Stockhausen popularizado, e por letras que são entendidas por todos, porque falam do cotidiano imediato. É um mundo de produção improvisado e espontâneo. Por isso, onde há periferia, há rap.
O rap brasileiro é mera imitação do que se faz nos EUA ou tem uma marca própria?
Na verdade, os meninos não têm referência do rap americano, porque não consomem, não compram CD, não assistem à MTV, não lêem jornal. Preferem comprar LPs, porque assim eles podem tirar outras sonoridades, fazer suas mixagens, que é o trabalho básico do DJ. Acho que o rap é mais um instrumento de expressão, como um violão, que cada um toca de um jeito. Outra peculiaridade é que o inglês é muito diferente da língua que se fala aqui, a sonoridade é outra.
Pode-se falar de um movimento comum nas periferias de São Paulo, Rio, Salvador, Recife, Brasília, Belo Horizonte etc.?
Acho que sim, principalmente quanto ao trabalho das posses, que são organizações totalmente espontâneas. Há uma idéia comum de que está tudo ruim e de que é preciso mudar. Mas não há muita comunicação entre o que está acontecendo em cada lugar, eles só se comunicam por meio do som, feito geralmente em produções independentes que acabam circulando. Os caras não se encontram muito, mesmo porque não têm dinheiro para viagens.
Como a equipe de filmagem foi recebida?
Foi surpreendente. Não houve nenhum problema, e olha que entramos em cada bocada... Janaína Rocha, jornalista que está lançando "Hip Hop - A Periferia Grita", nos ajudou muito na pesquisa e nos abriu caminhos. Ela já conhecia personagens que fizeram parte das filmagens. Santo André é Grande São Paulo, mas ainda tem algo de cidade de interior. Por outro lado, entramos em morros que têm toque de recolher. Esses dois lados convivem na periferia.
O rap e o hip hop podem ser vistos como uma nova forma de fazer política?
É difícil avaliar isso, mas algo novo está acontecendo na periferia, que vem de uma ação espontânea. Não são ONGs de classe média que estão indo lá e conduzindo as coisas, por mais bem intencionadas que elas sejam. Em Santo André, cidade do ABC paulista, a participação política já era muito forte, por conta da militância operária, da terceira gestão consecutiva do PT etc. E os rapazes querem transformar a comunidade em que vivem a partir do rap, que é uma atividade criativa. Mas hoje, com a projeção do movimento na mídia, há uma certa crise entre eles, que se coloca da seguinte forma: ou permanecer na comunidade ou sair dela e ir "cantar para bacana". Essa tem sido uma questão muito presente nas conversas dos grupos.
A exposição na mídia e o assédio das grandes gravadoras podem provocar um esvaziamento da carga de protesto que há nesses movimentos?
Há esse risco, mas o não-esvaziamento vai depender da vontade deles de querer mudar o ambiente em que vivem. Se eles se deixarem seduzir pelo canto da sereia, aí a coisa toda se perde. Mas estou percebendo um movimento contrário à dispersão. As pessoas querem ficar e transformar a vida do bairro, porque nesse processo elas estão recuperando a auto-estima. Ou seja, estão indo contra a corrente da grande parte dos brasileiros que vê tudo o que é estrangeiro e importado como melhor.


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