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A FRESTA DE ARROMBA
Pedro Alexandre Sanches
da Reportagem Local
Essa geração revolucionou. E vai continuar
revolucionando mais." O gueto ainda é o lugar do rap no Brasil, apesar de os carros de
playboys continuarem tocando o "Diário de
um Detento" (97), dos Racionais MC's, no último volume, na Augusta ou no Ibirapuera. Seus artistas ainda
alimentam esse "efeito especial". No dia 22 passado,
os Racionais participaram de um minifestival de rap
num cantinho do autódromo de Interlagos, onde
apresentaram em primeira mão faixas do novo CD,
que, dizem, sai em novembro. A cidade não foi avisada. O evento era, de fato e de direito, só para os manos.
"Emprego não tem, perspectiva de melhora não tem
também, tá ligado? O exemplo que vem de cima é o
pior possível. Tá todo mundo roubando, a realidade é
essa." Hoje a adesão belicosa de playboys machos já
faz parte do capital acumulado pelos rappers paulistanos. A gravadora Trama, ligada ao grupo VR, mas
empenhada em construir uma (talvez imaginária)
ponte centro-periferia, lança-se sobre o rap, sem conseguir ainda popularizá-lo fora dos guetos de lá (de
geografias, hostilidades e preconceitos) ou dos de cá
(de modismos, elitismos e preconceitos). "O mundo
inteiro tá em crise (...). Você não vê felicidade no olho
de ninguém, cê tá ligado? Nem do pobre nem do rico."
Pela Trama andou, brevemente, o bem-sucedido
rapper de nova geração, Xis, hoje contratado da multinacional Warner (é um signo de modificação, mas
ainda não uma mudança de status). Na Trama estão
Rappin" Hood (talvez um herói do rap para o novo século), Thaíde & DJ Hum e MC Jack (ou seja, nossa
"velha escola"), Camorra, X, Criminal D & Gangue de
Rua... Mesmo com CDs sofisticados, eles são ainda
dos guetos. MV Bill, no Rio, segue trilha parecida, de
exposição vetada pela família televisiva. "Olha aqueles
malucos, até que eles não eram tão ruins."
Dito isso, talvez não seja possível concluir que o rap
brasileiro possa estar cruzando alguma fase, rumo a
um novo nível de comunicação com o país. Fora Mano Brown e seus Racionais -e mesmo assim dentro
dos limites de arame farpado que isolam a periferia-,
no Brasil não há ainda ícones do tipo 2Pac, Puff Daddy
ou Missy Elliott. O poder de influência se avoluma
dentro do arame farpado, mas se fere nas fronteiras de
suas farpas. "De vez em quando dá uns tilt, a mente
pára. (...) Penso mil fitas ao mesmo tempo, tenho solução pra todo mundo. E pra mim, muitas vezes, eu não
tenho nenhuma." Do lado de cá, morre-se de medo.
Há, no entanto, um pique de convulsão que não pode ser ignorado nas fímbrias do hip hop. Elementos de
distinção mostram que talvez uma longa fase esteja
próxima do fim. Muito da transição pode ser ouvido
no CD "Se Tu Lutas Tu Conquistas", do SNJ (abreviatura para Somos Nós a Justiça), lançado pelo selo
Atração. Na capa, uma passeata em preto-e-branco
destaca uma bandeira brasileira, colorida. Na contracapa do encarte, os membros do grupo estão caracterizados como mecânico, operário, lixeiro, faxineira.
Sim, faxineira, aí está o inesperado. SNJ é um grupo
de rappers com garotos e (uma) garota -Cris passeia
pelos vocais e até conquista a liderança na faixa "Biografia Feminina". A misoginia frequente no hip hop é
relativizada, de forma incipiente, no SNJ. No Rio de Janeiro, como se percebe pela coletânea "Hip Hop Rio",
vendida nas bancas de jornal, as meninas também começam a ter voz -Negaativa é o nome do grupo feminino que integra esse mapa musical traçado pelo pop-rapper "mainstream" Marcelo D2, do Planet Hemp.
Após anos tentando pacificar a periferia, o rap esboça
tentativas de harmonizar os sexos, e isso pode ser muito novo. "Pai todo mundo tem. Também tive um canalha que foi meu pai, mas eu não conheci."
O SNJ aborda, de raspão, ainda outro tema: a dureza
estilística e comportamental do rap. Principalmente
em São Paulo, tudo naquele modo de música é cinzento, sombrio, rabugento, amuado. "Lá na bolinha do
olho eu vejo tristeza no olhar de cada mano. O barato
é doido, vai vendo." Na mente tesa dos moços de periferia que não têm liberdade de gozar a vida, o sorriso
tem estado sempre proibido. Pois "Viajando na Balada", do SNJ, permite um sorriso de canto de boca.
"Aiô, Silver/xiiii!, só lá em Hollywood/onde os cineastas ganham bem e não se iludem", canta Sombra, em zombeteira dicção vibratória -mas ainda militante.
É o que se dá, bem mais de leve, no "Rap du Bom",
de Rappin" Hood, uma festinha de arromba bem mais
rígida e menos boba que as da jovem guarda. Uma vírgula de hedonismo contamina-o também na ousadia
de poder fazer de "Sou Negrão", um samba-rap de
fundo de quintal, com voz de Leci Brandão e citação
de todos os bambas do samba. Um sorriso reticente
permite que o moço cite, sampleie e brinque com Trio
Mocotó, Tim Maia, Jorge Ben. Continua-se na rota do
excluído (dos negros na MPB, nesse caso), mas o rap
volta a dialogar com uma polêmica tradição de alegria,
de cordialidade, ainda que (ou melhor, principalmente) com a ressalva que implode o mito do bom malandro: "Malandragem é trabalhar/ e a pivetada estudar".
"Você é um problema pra você mesmo." Seriam indícios de domesticação do rap? Talvez, talvez não. Lidar com sua comunidade é um problema, comunicar-se além das divisórias é outro ainda maior para os excluídos que têm encontrado no hip hop uma fresta de
arromba para poder existir com uma dose digna de legitimidade. "Quem sou eu pra brecar o avanço da humanidade? Sou apenas um homem, mais um." O desafio está lançado, dos dois lados da muralha. Vem do
outro lado, na voz de uma geração tão perdida quanto
inteligente, tão marginalizada quanto inconformada,
tão solitária quanto revolucionária.
"Tudo que eu posso falar hoje, se eu sei até trocar
uma idéia mais ou menos, é por causa do rap." Esse e
os demais trechos destacados no texto são de Mano
Brown, herói máximo de uma camada social e de uma
geração que já não conseguem tolerar os heróis. Constam da faixa "Privilégio 2 (O Tempo É Rei)", de "Equilíbrio" (2001), disco em que seu colega de banda KL
Jay congrega e apresenta manos da atual e crescente
cena hip hop São Paulo-Rio. Ecoam aqui.
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