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+ sociedade
Somos todos refugiados afegãos
Luta entre o bem absoluto e o mal absoluto coloca a todos a obrigação de buscar abrigo em um lugar impossível
Maria Rita Kehl
especial para a Folha
É politicamente incorreto escrever
o que todos confessam em particular. A queda das torres gêmeas,
transmitida ao vivo pela televisão
ao redor de quase todo o planeta (com
exceção do Afeganistão, onde os aparelhos de televisão são proibidos pelo Taleban), produziu em muita gente um estranho "frisson", uma espécie de gozo
inconfessável, sinistro. Esse arrepio de
horror e fascínio foi produzido não pelo
acontecimento real da queda das torres
gêmeas, mas pela imagem da explosão e
do desabamento, cujo caráter espetacular não pode ser negado e cujo parentesco com o imaginário hollywoodiano foi
lembrado por muitos articulistas.
Aos poucos foi se estabelecendo a medida da distância entre o caráter fantástico da imagem e a tragédia real que ela a
um só tempo revela e oculta. Tragédia
para as famílias dos milhares de vítimas
do atentado e tragédia iminente para todo o planeta, prenúncio do que ainda pode se transformar em uma guerra de todos contra todos, feroz e sem fim, sem
inimigo certo e sem chefes de Estado
com quem se possa negociar.
A repetição exaustiva da cena do atentado pelas emissoras de televisão lembra
a repetição das lembranças traumáticas,
relatadas por neuróticos de guerra e sobreviventes dos campos de concentração. Quando o real rompe a frágil teia de
palavras de que dispomos para simbolizar o vivido e transformá-lo em experiência a ser partilhada com o outro, a
imagem é o último recurso de que o psiquismo dispõe para tentar realizar o
ocorrido e assimilar o choque. Mas a
imagem carrega uma espécie de gozo
-daí a insistência da repetição que só as
palavras poderiam barrar.
Assim, passado o primeiro efeito do
trauma, começamos a falar, escrever e
pensar sobre o que se passou. Não que
toda palavra produza pensamento. Como vimos, as primeiras reações do presidente Bush ao atentado contra os EUA limitaram-se a reproduzir o efeito imaginário da mesma cinematografia que o ato terrorista, sinistramente, imitou. "É a
luta do bem contra o mal", disse ele, na
primeira declaração que conseguiu formular, na qual foi seguido por gente de quem se esperava, nesse momento grave, que parasse para refletir. "Queremos
Bin Laden vivo ou morto." "Quem não
estiver conosco, estará contra nós." Colagens de elementos imaginários que remetem a um mundo de fantasia onde
não é necessário pensar, pois as imagens
nos oferecem a falsa certeza de que as
coisas são. No plano imaginário, as coisas são do modo como se dão a ver.
Essa certeza, do presidente e da população norte-americanos, sobre quem eles
são, foi abalada pelos atentados de 11 de
setembro. "Somos a nação mais poderosa do mundo, não podem nos fazer isso!", dizia, inconformado, um adolescente entrevistado pela CNN, diante dos
escombros. O desespero do rapaz refletia
a perplexidade de quem, pela primeira
vez na vida, se vê forçado a duvidar de
suas convicções: "Se somos a nação mais
poderosa do mundo, como foi que nos
fizeram isso?". "Se nos fizeram isso, o
que significa sermos a nação mais poderosa do mundo?"
Ou então: "Se somos a nação mais poderosa do mundo, como é que alguém se
atreve...?". O que cria outro problema de
identidade, pois o atrevimento, como a
coragem e a ousadia, tem um valor romântico com o qual queremos nos identificar. A piada que correu de boca em boca -"errar é humano, acertar é muçulmano"- deve nos alertar para a cumplicidade inconsciente a que o ato
terrorista convoca. Só um convicto se
atira para a morte certa em nome de uma
causa, e a convicção absoluta tem algo de
invejável -como aliás tudo o que leva a
chancela do Bem absoluto, que a modernidade não baniu, mas problematizou.
Mas ainda há outra pergunta embutida
naquela, mais dolorosa para um norte-americano: "Se somos a nação mais poderosa do mundo, como é que, em vez de
despertarmos uma unânime admiração,
pode existir quem nos odeie?". Essa pergunta questiona, de um lado, a atitude
dos habitantes e dos governos dessa nação poderosa e, por outro lado, o resto
do mundo, em sua relação ambivalente
com tudo o que esse país representa. É
que, para além do gozo imaginário, os
atentados contra o World Trade Center e
o Pentágono causaram em muita gente
um outro prazer perverso, nem tão inconfessável assim: o de que a nação mais
poderosa do mundo, ao ser atingida, tenha se revelado vulnerável.
Não é a análise do complexo de Édipo
dos muçulmanos nem a constatação da
inveja vulgar diante dos ricos e poderosos que vão nos ajudar a entender a ambivalência despertada pelo poderio norte-americano. Essa é a ambivalência dos
súditos diante do soberano absoluto. O
senhor absoluto é insuportável, como é
insuportável o Outro sem falha, sem brechas, inabordável. O senhor absoluto
não precisa de nós, goza sem nós, indiferente à nossa dor, não negocia nada, não
faz concessões. Quem se coloca nesse lugar precisa se proteger contra a ambivalência do resto do mundo, fascinado e
oprimido pelos atos e pela imagem de
seu grande poder. Diante da evidência de
que o senhor absoluto é tão humano e
vulnerável como todos nós, respiramos
um tanto aliviados. E aterrorizados, também, pela constatação de que não existe
nem um que faça exceção à regra de nossa humanidade.
O soberano absoluto está destinado a
ser destituído. Como o pai/chefe da horda primitiva assassinado pelos filhos, como os reis das monarquias absolutistas
do século 18 destronados pela burguesia,
como o Deus do Velho Testamento, cujo
arbítrio e onipotência corromperam os
homens a tal ponto que foi preciso sacrificar Seu filho para instaurar um Novo
Testamento. Os Estados Unidos não representam apenas, para o resto do mundo, a supremacia militar. Representam
antes de mais nada a supremacia do capital: disso que gira sozinho, que está
além das políticas nacionais, que torna
supérfluos todos os nossos atos, todas as
dimensões da nossa humanidade. A supremacia do capital não precisa de nós a
não ser como "mercado"; seus mestres
dispensam acordos de contenção da corrida armamentista, de proteção ecológica do planeta, abandonam as conferências da ONU, últimos fóruns onde o
mundo tenta preservar as diferenças que
ainda sobrevivem à globalização. Não é
de estranhar que a primeira suspeita sobre a autoria dos atentados recaia, não
sobre todo o mundo islâmico, mas sobre
o Taleban, governo de uma seita de fanáticos religiosos que nos parecem capazes
de enfrentar o senhor absoluto em nome
de um outro senhor, Alá, mais onipotente, mais totalitário.
Diante da luta do bem absoluto contra
o mal absoluto, estamos todos na condição dos refugiados afegãos que não têm
onde se proteger do Taleban e do Exército americano. É preciso armar a tenda
em um outro lugar, um lugar impossível,
se a luta do "bem contra o mal" tomar
conta do mundo globalizado. Pois não
há nada mais próximo do bem absoluto
do que o mal absoluto. Em nome do bem
absoluto o homem se autoriza a todas as
atrocidades sem se questionar, sem se
deter. Em nome do bem absoluto tenta-se produzir, como o presidente norte-americano na primeira semana depois
do atentado, uma unanimidade e um
consentimento totais.
EUA e Taleban se contemplam em espelho, muito mais identificados um com
o outro do que as imensas diferenças
econômicas e culturais deixam transparecer: os terroristas fizeram por revelar
esse outro fanatismo que o mundo pressentia -e secretamente odiava- presente na democracia mais bem organizada do planeta. Não é inocente o ato falho
de um dos generais do Pentágono que
propôs batizar de "justiça infinita" as
operações de guerra que começaram,
sem se dar conta de que esse é um termo
do jihad, a guerra santa islâmica.
Enquanto chefes de Estado de países
europeus aliados aos EUA calculavam a
melhor forma de contra-atacar o terrorismo, tinha-se a impressão de que o presidente Bush imaginava o que fazer para
proporcionar a seu eleitorado uma destruição de efeitos mais espetaculares que
a primeira, capaz de superar o fascínio
que o atentado terrorista promoveu. Mas
o que pode ser bombardeado no Afeganistão, país miserável e já todo destruído
por duas guerras anteriores? "Não faz
sentido jogar um míssil de US$ 2 milhões
numa tenda abandonada de US$ 10",
disse o presidente, num cálculo sensato
que não é apenas econômico mas também cinematográfico.
Nunca teremos certeza sobre o que se
bombardeou no Afeganistão a partir de
domingo passado; pequenas aldeias, o
deserto, crianças em suas tendas precárias? Essas imagens estão proibidas. O
terrorismo ficou ileso -e certamente
ainda mais popular no mundo islâmico
do que antes. Como os refugiados afegãos, também nós, do "resto do mundo",
assistimos aterrados a mais uma guerra
de convicções absolutas do bem contra o
mal, da qual o mundo todo sairá pior.
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora,
entre outros, de "Deslocamentos do Feminino"
(ed. Imago) e organizadora da coletânea "Função
Fraterna" (ed. Relume-Dumará).
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