São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2001

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+ sociedade

Somos todos refugiados afegãos

Luta entre o bem absoluto e o mal absoluto coloca a todos a obrigação de buscar abrigo em um lugar impossível

Maria Rita Kehl
especial para a Folha

É politicamente incorreto escrever o que todos confessam em particular. A queda das torres gêmeas, transmitida ao vivo pela televisão ao redor de quase todo o planeta (com exceção do Afeganistão, onde os aparelhos de televisão são proibidos pelo Taleban), produziu em muita gente um estranho "frisson", uma espécie de gozo inconfessável, sinistro. Esse arrepio de horror e fascínio foi produzido não pelo acontecimento real da queda das torres gêmeas, mas pela imagem da explosão e do desabamento, cujo caráter espetacular não pode ser negado e cujo parentesco com o imaginário hollywoodiano foi lembrado por muitos articulistas.
Aos poucos foi se estabelecendo a medida da distância entre o caráter fantástico da imagem e a tragédia real que ela a um só tempo revela e oculta. Tragédia para as famílias dos milhares de vítimas do atentado e tragédia iminente para todo o planeta, prenúncio do que ainda pode se transformar em uma guerra de todos contra todos, feroz e sem fim, sem inimigo certo e sem chefes de Estado com quem se possa negociar.
A repetição exaustiva da cena do atentado pelas emissoras de televisão lembra a repetição das lembranças traumáticas, relatadas por neuróticos de guerra e sobreviventes dos campos de concentração. Quando o real rompe a frágil teia de palavras de que dispomos para simbolizar o vivido e transformá-lo em experiência a ser partilhada com o outro, a imagem é o último recurso de que o psiquismo dispõe para tentar realizar o ocorrido e assimilar o choque. Mas a imagem carrega uma espécie de gozo -daí a insistência da repetição que só as palavras poderiam barrar.
Assim, passado o primeiro efeito do trauma, começamos a falar, escrever e pensar sobre o que se passou. Não que toda palavra produza pensamento. Como vimos, as primeiras reações do presidente Bush ao atentado contra os EUA limitaram-se a reproduzir o efeito imaginário da mesma cinematografia que o ato terrorista, sinistramente, imitou. "É a luta do bem contra o mal", disse ele, na primeira declaração que conseguiu formular, na qual foi seguido por gente de quem se esperava, nesse momento grave, que parasse para refletir. "Queremos Bin Laden vivo ou morto." "Quem não estiver conosco, estará contra nós." Colagens de elementos imaginários que remetem a um mundo de fantasia onde não é necessário pensar, pois as imagens nos oferecem a falsa certeza de que as coisas são. No plano imaginário, as coisas são do modo como se dão a ver.
Essa certeza, do presidente e da população norte-americanos, sobre quem eles são, foi abalada pelos atentados de 11 de setembro. "Somos a nação mais poderosa do mundo, não podem nos fazer isso!", dizia, inconformado, um adolescente entrevistado pela CNN, diante dos escombros. O desespero do rapaz refletia a perplexidade de quem, pela primeira vez na vida, se vê forçado a duvidar de suas convicções: "Se somos a nação mais poderosa do mundo, como foi que nos fizeram isso?". "Se nos fizeram isso, o que significa sermos a nação mais poderosa do mundo?"
Ou então: "Se somos a nação mais poderosa do mundo, como é que alguém se atreve...?". O que cria outro problema de identidade, pois o atrevimento, como a coragem e a ousadia, tem um valor romântico com o qual queremos nos identificar. A piada que correu de boca em boca -"errar é humano, acertar é muçulmano"- deve nos alertar para a cumplicidade inconsciente a que o ato terrorista convoca. Só um convicto se atira para a morte certa em nome de uma causa, e a convicção absoluta tem algo de invejável -como aliás tudo o que leva a chancela do Bem absoluto, que a modernidade não baniu, mas problematizou.
Mas ainda há outra pergunta embutida naquela, mais dolorosa para um norte-americano: "Se somos a nação mais poderosa do mundo, como é que, em vez de despertarmos uma unânime admiração, pode existir quem nos odeie?". Essa pergunta questiona, de um lado, a atitude dos habitantes e dos governos dessa nação poderosa e, por outro lado, o resto do mundo, em sua relação ambivalente com tudo o que esse país representa. É que, para além do gozo imaginário, os atentados contra o World Trade Center e o Pentágono causaram em muita gente um outro prazer perverso, nem tão inconfessável assim: o de que a nação mais poderosa do mundo, ao ser atingida, tenha se revelado vulnerável.
Não é a análise do complexo de Édipo dos muçulmanos nem a constatação da inveja vulgar diante dos ricos e poderosos que vão nos ajudar a entender a ambivalência despertada pelo poderio norte-americano. Essa é a ambivalência dos súditos diante do soberano absoluto. O senhor absoluto é insuportável, como é insuportável o Outro sem falha, sem brechas, inabordável. O senhor absoluto não precisa de nós, goza sem nós, indiferente à nossa dor, não negocia nada, não faz concessões. Quem se coloca nesse lugar precisa se proteger contra a ambivalência do resto do mundo, fascinado e oprimido pelos atos e pela imagem de seu grande poder. Diante da evidência de que o senhor absoluto é tão humano e vulnerável como todos nós, respiramos um tanto aliviados. E aterrorizados, também, pela constatação de que não existe nem um que faça exceção à regra de nossa humanidade.
O soberano absoluto está destinado a ser destituído. Como o pai/chefe da horda primitiva assassinado pelos filhos, como os reis das monarquias absolutistas do século 18 destronados pela burguesia, como o Deus do Velho Testamento, cujo arbítrio e onipotência corromperam os homens a tal ponto que foi preciso sacrificar Seu filho para instaurar um Novo Testamento. Os Estados Unidos não representam apenas, para o resto do mundo, a supremacia militar. Representam antes de mais nada a supremacia do capital: disso que gira sozinho, que está além das políticas nacionais, que torna supérfluos todos os nossos atos, todas as dimensões da nossa humanidade. A supremacia do capital não precisa de nós a não ser como "mercado"; seus mestres dispensam acordos de contenção da corrida armamentista, de proteção ecológica do planeta, abandonam as conferências da ONU, últimos fóruns onde o mundo tenta preservar as diferenças que ainda sobrevivem à globalização. Não é de estranhar que a primeira suspeita sobre a autoria dos atentados recaia, não sobre todo o mundo islâmico, mas sobre o Taleban, governo de uma seita de fanáticos religiosos que nos parecem capazes de enfrentar o senhor absoluto em nome de um outro senhor, Alá, mais onipotente, mais totalitário.
Diante da luta do bem absoluto contra o mal absoluto, estamos todos na condição dos refugiados afegãos que não têm onde se proteger do Taleban e do Exército americano. É preciso armar a tenda em um outro lugar, um lugar impossível, se a luta do "bem contra o mal" tomar conta do mundo globalizado. Pois não há nada mais próximo do bem absoluto do que o mal absoluto. Em nome do bem absoluto o homem se autoriza a todas as atrocidades sem se questionar, sem se deter. Em nome do bem absoluto tenta-se produzir, como o presidente norte-americano na primeira semana depois do atentado, uma unanimidade e um consentimento totais.
EUA e Taleban se contemplam em espelho, muito mais identificados um com o outro do que as imensas diferenças econômicas e culturais deixam transparecer: os terroristas fizeram por revelar esse outro fanatismo que o mundo pressentia -e secretamente odiava- presente na democracia mais bem organizada do planeta. Não é inocente o ato falho de um dos generais do Pentágono que propôs batizar de "justiça infinita" as operações de guerra que começaram, sem se dar conta de que esse é um termo do jihad, a guerra santa islâmica.
Enquanto chefes de Estado de países europeus aliados aos EUA calculavam a melhor forma de contra-atacar o terrorismo, tinha-se a impressão de que o presidente Bush imaginava o que fazer para proporcionar a seu eleitorado uma destruição de efeitos mais espetaculares que a primeira, capaz de superar o fascínio que o atentado terrorista promoveu. Mas o que pode ser bombardeado no Afeganistão, país miserável e já todo destruído por duas guerras anteriores? "Não faz sentido jogar um míssil de US$ 2 milhões numa tenda abandonada de US$ 10", disse o presidente, num cálculo sensato que não é apenas econômico mas também cinematográfico.
Nunca teremos certeza sobre o que se bombardeou no Afeganistão a partir de domingo passado; pequenas aldeias, o deserto, crianças em suas tendas precárias? Essas imagens estão proibidas. O terrorismo ficou ileso -e certamente ainda mais popular no mundo islâmico do que antes. Como os refugiados afegãos, também nós, do "resto do mundo", assistimos aterrados a mais uma guerra de convicções absolutas do bem contra o mal, da qual o mundo todo sairá pior.


Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora, entre outros, de "Deslocamentos do Feminino" (ed. Imago) e organizadora da coletânea "Função Fraterna" (ed. Relume-Dumará).


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