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+ psicanálise
O monopólio da enunciação
Colette Soler, que participa de seminário no Brasil, discute os caminhos da disciplina
Vladimir Safatle
especial para a Folha
Seu nome está intimamente ligado aos desdobramentos do lacanismo nestes últimos 20 anos. Colette Soler foi uma das fundadoras da Escola da
Causa Freudiana e peça maior da divisão que gerou, em 1998, a última das grandes dissidências na constelação psicanalítica: os Fóruns do Campo Lacaniano.
Entre os dias 19 e 21 de outubro, ela estará no Brasil para
participar do 2º Fórum Nacional, cujo tema será "O que
se espera de um psicanalista?" (informações pelo tel. 0/
xx/11/3826-2542). A tal pergunta ela não deixa de responder na entrevista a seguir.
O que podemos esperar de um psicanalista em uma época como a nossa, marcada pelas discussões em torno da
crise da psicanálise?
Nós estamos em uma época em que tudo caminha
no sentido de uma homogeneização cada vez maior
da vida. Cada um de nós é, de alguma forma, instrumentalizado pelo estado da sociedade. Nas vidas sexual e profissional, nós somos reduzidos à condição
de objeto, em vez de alcançarmos a condição de sujeito. Nesse sentido, a psicanálise é um discurso que
nada contra a corrente. É por isto que a mídia anuncia regularmente o fim da psicanálise.
A verdade é que o discurso da ordem social deseja
o fim da psicanálise. Se ele não deseja o fim das psicoterapias é porque elas vão de encontro às expectativas de readaptação e de conformação próprias ao
modelos de sucesso e felicidade veiculados principalmente pela mídia. Para o discurso da ordem social, curar significa fazer o deprimido trabalhar e
reintroduzir o solitário à vida em casal.
A voz da prática psicanalítica diz outra coisa. Ela
permite a cada sujeito apreender um pouco melhor
aquilo que ele é, aquilo que ele produziu, aquilo que
o determina e, principalmente, aquilo que depende
de suas escolhas. No fundo, a psicanálise tenta permitir que o sujeito descubra sua singularidade.
Há alguma relação entre essa noção da psicanálise como
defesa da singularidade e o tema de sua conferência no
Brasil, "variantes da destituição subjetiva"?
Sim. A destituição subjetiva foi um conceito inventado por Lacan para marcar o fim de análise. O sujeito
entra em análise dizendo: "Eu não sei o que acontece
comigo". Ele não sabe por que tem tais sintomas, por
que não pode suportá-los. Mas será que falando podemos encontrar aquilo que somos? Nós podemos
encontrar muita coisa por meio da fala, mas há sempre algo que escapa. Na dimensão da palavra, o sujeito é sempre um enigma. Por isso, o desejo é necessariamente inconsciente. Ao tentar falar sobre o desejo, há um momento em que chegamos ao "umbigo", onde não podemos mais avançar.
Aqui entra a idéia de destituição subjetiva. Ela consiste em dizer que, no final da análise, o sujeito saberá alguma coisa. Mas é um saber diferente, pois é saber sobre aquilo que, no interior de si mesmo, não é
sujeito e, consequentemente, não acede à palavra.
Trata-se disso que a psicanálise chama de objeto do
gozo: essa parte de gozo que ele trazia em si mesmo e
da qual nada sabia. Aí está a singularidade revelada
pela psicanálise.
A seu ver, quais as principais questões que Lacan deixou
em aberto?
O ensino de Lacan é composto por problemas que
avançam, já que as respostas se transformam continuamente em novas questões. Lacan não conservou
nenhuma de suas conclusões. Para os lacanianos, há
o desafio de saber qual o peso das indicações do último período de seu ensinamento. Todo mundo conhece o Lacan de "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", do sujeito da linguagem. Mas o
último período do seu ensinamento é algo totalmente diferente e ainda falta tirarmos suas implicações
clínicas.
Por outro lado, eu acredito que, se há algo que resta
vivo em Lacan, é a incidência do seu desejo. Quando
Lacan apareceu, ele representou um novo desejo na
psicanálise, um novo entusiasmo. O movimento
analítico estava imerso em uma prática rotinizada e
se repetia conceitualmente. Lacan nunca cedeu em
seu desejo de renovar a psicanálise, isso mesmo depois de ter sido expulso da Associação Psicanalítica
Internacional, mesmo depois de ter sido traído a torto e a direito.
Eu não sei se essa dimensão é sentida da mesma
maneira em outros países. Eu a sinto menos presente no Brasil, já que Lacan não viveu lá e os lacanianos
o acolheram por meio de um movimento de transferência em sua direção. Já na França, como Lacan viveu aqui, o conflito em torno da sua doutrina e da
sua pessoa continua vivo.
Uma boa parte de seus textos trabalha a relação entre
psicanálise e estética. Qual o lugar da estética no interior
da teoria psicanalítica?
Sobre esse ponto, há uma grande diferença entre
Freud e Lacan. De um lado, tanto Freud quanto Lacan acreditavam que o poeta antecipava o psicanalista. Mas a idéia de Freud era fazer uma psicanálise
aplicada, como se fosse possível interpretar obras de
arte da mesma maneira como interpretamos a palavra, os sonhos e os atos falhos do analisando. Ele tratou obras de arte na qualidade de representantes do
sujeito. Seu erro foi de acreditar que por meio da
obra poderíamos analisar o autor.
Essa não é a posição de Lacan. Para ele, está claro
que não podemos interpretar o criador por meio de
sua criação. Nós podemos apenas interpretar a criação. Pegue, por exemplo, Stephen Hero, de James
Joyce. Você pode interpretar Stephen: o sujeito suposto no texto. Mas não podemos em nenhum caso
dizer que esse sujeito é o sujeito Joyce.
Seu nome é hoje muito vinculado à última ruptura ocorrida no interior do movimento lacaniano. No seu ponto de
vista, por que ela aconteceu?
A necessidade dessa ruptura já estava latente havia
muito tempo. Nós saímos de uma associação muito
bem gerida, onde havia muito trabalho. Mas, ao fim
de 20 anos, a orientação que se impôs administrava a
comunidade analítica por meio de um monopólio
da enunciação. O que é muito estranho se pensarmos que a psicanálise tenta fazer cada um trabalhar a
partir da sua singularidade.
É verdade que tal imperativo de singularidade coloca novos desafios à instituição. Ele transforma a
comunidade de psicanalistas em uma questão analítica -e não uma questão política separada. A maneira como os analistas são coletivizados em uma
comunidade influenciará a forma como eles praticam a psicanálise e o que se passa em uma cura. Era
isso que tínhamos em mente ao renovarmos a tentativa lacaniana de fundar uma escola.
Vladimir Safatle é doutorando em epistemologia da psicanálise pela
Universidade de Paris 8.
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