São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2001

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+ brasil 502 d.C

A ambivalência do esquecimento

Luiz Costa Lima

Harald Weinrich é um conhecido linguista alemão, autor, entre outros, do celebrado "Tempo - O Mundo Falado e Narrado" (1968), formulador da chamada linguística do texto ("Textlinguistik"), cujo interesse pela inter-relação da língua com a literatura o levou à reunião de artigos publicados originalmente em alemão e francês, "Conscience Linguistique et Lectures Littéraires" (1989), bem como antes à publicação de pequeno e precioso ensaio sobre o Quixote, "Das Ingenium Don Quijotes" (1956).
Mas seu livro de mais amplo interesse é o que acaba de aparecer em português, "Lete - Arte e Crítica do Esquecimento" (ed. Civilização Brasileira). Vindo de Homero, passando, entre muitos outros, por Ovídio, Agostinho, Dante, Rabelais (a que, na edição brasileira, vem-se acrescentar Camões), Montaigne, Descartes, Cervantes, Rousseau, Kant, Goethe, Nietzsche, Freud, Valéry, Mallarmé, Proust, daí vindo aos contemporâneos, de Sartre a Celan, Saul Bellow e Thomas Bernhard, trata-se nada menos do que de uma reflexão sobre o esquecimento no pensamento ocidental. Só a enumeração (parcial) das fontes abordadas mostra a unilateralidade de designar o autor como linguista. Mais do que um especialista, Weinrich é um praticante da interdisciplinariedade que defendera nos simpósios do grupo Poetik und Hermeneutik (1963-1994) (infelizmente não há em português o mínimo sinal dos textos publicados nos 17 volumes).
O vasto espectro de poetas, prosadores e filósofos é convocado para com eles escrever não uma história do esquecimento, senão para que se mostre a sua ambivalência: por um lado, do esquecimento se desenvolve uma "tekhné", a mnemotécnica, por outro, uma medicina psíquica, especial contra os casos de amor, para os quais os romanos tinham um deus particular, Amor Lethaeus. Como "tekhné", ele servia de base para a retórica, de disciplina pois para a argumentação oral. Sua importância é portanto básica, quer para o entendimento da "literatura" antiga, quer para nosso embaraço perante ela.
Já o notava Nietzsche, em seu curso sobre a retórica de 1872-3: "Na Antiguidade, a prosa é de ponta a ponta um eco do discurso oral, enquanto cabe de mais a mais compreender nossa prosa a partir da escrita (...)". Supondo a maestria da memória, a oralidade adquiria uma segurança de expressão que distorcemos ao entendê-la como "retórica". Heidegger, contudo, já intuía o problema, que só há pouco começa a ser indagado, ao considerar a retórica "a primeira hermenêutica sistemática do cotidiano da convivência" ("Ser e Tempo", & 29).

Distante da especulação
Mas não se aborreça o leitor: Weinrich não escolhe a especulação como caminho. Sua via será antes uma narrativa que dará peso igual aos dois usos do esquecimento. Como já sabia Ulisses, sobretudo no trato com Circe e Calipso, o esquecimento também pode ser cultivado para se desfazer do afeto infeliz e abrasador.
A ambivalência não lhe é fortuita. Pois, se para arqueólogos e historiadores o culto dos mortos é o primeiro sinal de civilização, não é menos verdade que, desde cedo, se põe aos homens a questão de como não prejudicar a vida com o entulho da memória.


Se para arqueólogos e historiadores o culto dos mortos é o primeiro sinal de civilização, não é menos verdade que, desde cedo, se põe aos homens a questão de como não prejudicar a vida com o entulho da memória


A Weinrich cabe apontá-lo em ritmo quase de conversa. Assim, se "A Divina Comédia" é chamada de a "obra de arte da memória", o autor acrescenta que Dante traz do além tamanha sobrecarga de "recados" que só poderia se encarregar de todos em uma obra de ficção. É desse modo simples e expressivo que Weinrich se conduz em todo o livro. Como, por exemplo, dizer, em poucas palavras, algo surpreendente sobre Kant? Concentrando-se no que pareceria apenas anedótico: sua relação com o cozinheiro Lampe. Na velhice, forçado a despedi-lo, Kant sofre com a separação e escreve numa tira de papel: "O nome Lampe deve ser totalmente esquecido". A escrita é posta a serviço do esquecimento. Lapsus linguae?
A anedota seria apenas divertida se Weinrich não a aproveitasse para demonstrar a mudança de função que a memória já passara a exercer. A mudança não se iniciara com Kant. Ela já estava em Rabelais: para libertar Gargantua do entulho escolástico, um novo professor receita ao discípulo o uso do rapé: os espirros incessantes dissiparão o saber inútil. Já estava em Montaigne: "Saber de cor não é saber". Passara para Cervantes, onde, diz a formulação magnífica de Weinrich, o Quixote cavalga o esquecimento, enquanto Sancho traz "a memória sobre o burro". Pois uma mudança profunda se operara. A mnemotécnica se tornara uma antiqualha.
Não está distante o tempo em que se manifestará o dilema de Nietzsche: o dilema de um filólogo que quer agir como filósofo. E isso terá implicações em sua maneira de lidar com a memória. Fora ainda como filólogo que escrevera "O Nascimento da Tragédia" (1871). Como filólogo, deveria estar interessado na reconstituição do passado distante. Seu Dionísio, porém, está menos preso à Grécia longínqua do que interessado em ser contemporâneo das idéias (então admiradas por Nietzsche) de Wagner. Pouco depois, em 1874, ao publicar o "Das Vantagens e Desvantagens da História para a Vida", Nietzsche apresenta, como escreve Weinrich, "uma apologia do esquecimento". Dela porém se retratará em 1887, com a "Genealogia da Moral". Para um filósofo, como Nietzsche já assumira ser, pensar a moral significa a necessidade "de manter o esquecimento dentro de certos limites". O confronto dos dois Nietzsches parece-me um dos momentos altos deste livro incomum.

A arte da memória Ao contrário do que gostaria uma abordagem "evolutiva", Weinrich não postula que, ao ofuscamento da mnemotécnica antiga, agora correspondesse seu desprezo. A arte da memória apenas se metamorfoseia. Deixa de centrar-se na vista e, com Proust, se torna memória do corpo. "A memória involuntária passa por baixo de um esquecimento longo e profundo." E que dizer de um contemporâneo como Paul Celan senão que a "fenda da morte" impele a "dor da lembrança" que move seu poema?
Haveria, pois, grosso modo, três momentos capitais. No primeiro, embora Amor Lethaeus atue e proteja os que o invocam, dominava a técnica de memorizar, de que derivava a força da retórica. No segundo, a escrita se afirma progressivamente contra a obediência a modelos visuais. Nesse âmbito, o autor dirá com agudeza e simplicidade, um Mallarmé fará do esquecimento o ato primordial do estado poético. No terceiro, que nos é contemporâneo, onde Auschwitz aponta como "o assassinato da memória", a ambivalência alcança sua máxima complexidade. É preciso sempre lembrar e, portanto, exercitar-se na recordação do que foi. Mas é preciso também esquecer. Não há fórmula que diga quando se há de preferir um estado ou outro. Assim intrincados, ambos são indispensáveis para a vida. É que ela se tornou mais difícil quando a pensávamos mais cômoda e confortável?

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".


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