São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2001 |
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+ brasil 502 d.C A ambivalência do esquecimento
Luiz Costa Lima
A Weinrich cabe apontá-lo em ritmo quase de conversa. Assim, se "A Divina Comédia" é chamada de a "obra de arte da memória", o autor acrescenta que Dante traz do além tamanha sobrecarga de "recados" que só poderia se encarregar de todos em uma obra de ficção. É desse modo simples e expressivo que Weinrich se conduz em todo o livro. Como, por exemplo, dizer, em poucas palavras, algo surpreendente sobre Kant? Concentrando-se no que pareceria apenas anedótico: sua relação com o cozinheiro Lampe. Na velhice, forçado a despedi-lo, Kant sofre com a separação e escreve numa tira de papel: "O nome Lampe deve ser totalmente esquecido". A escrita é posta a serviço do esquecimento. Lapsus linguae? A anedota seria apenas divertida se Weinrich não a aproveitasse para demonstrar a mudança de função que a memória já passara a exercer. A mudança não se iniciara com Kant. Ela já estava em Rabelais: para libertar Gargantua do entulho escolástico, um novo professor receita ao discípulo o uso do rapé: os espirros incessantes dissiparão o saber inútil. Já estava em Montaigne: "Saber de cor não é saber". Passara para Cervantes, onde, diz a formulação magnífica de Weinrich, o Quixote cavalga o esquecimento, enquanto Sancho traz "a memória sobre o burro". Pois uma mudança profunda se operara. A mnemotécnica se tornara uma antiqualha. Não está distante o tempo em que se manifestará o dilema de Nietzsche: o dilema de um filólogo que quer agir como filósofo. E isso terá implicações em sua maneira de lidar com a memória. Fora ainda como filólogo que escrevera "O Nascimento da Tragédia" (1871). Como filólogo, deveria estar interessado na reconstituição do passado distante. Seu Dionísio, porém, está menos preso à Grécia longínqua do que interessado em ser contemporâneo das idéias (então admiradas por Nietzsche) de Wagner. Pouco depois, em 1874, ao publicar o "Das Vantagens e Desvantagens da História para a Vida", Nietzsche apresenta, como escreve Weinrich, "uma apologia do esquecimento". Dela porém se retratará em 1887, com a "Genealogia da Moral". Para um filósofo, como Nietzsche já assumira ser, pensar a moral significa a necessidade "de manter o esquecimento dentro de certos limites". O confronto dos dois Nietzsches parece-me um dos momentos altos deste livro incomum. A arte da memória Ao contrário do que gostaria uma abordagem "evolutiva", Weinrich não postula que, ao ofuscamento da mnemotécnica antiga, agora correspondesse seu desprezo. A arte da memória apenas se metamorfoseia. Deixa de centrar-se na vista e, com Proust, se torna memória do corpo. "A memória involuntária passa por baixo de um esquecimento longo e profundo." E que dizer de um contemporâneo como Paul Celan senão que a "fenda da morte" impele a "dor da lembrança" que move seu poema? Haveria, pois, grosso modo, três momentos capitais. No primeiro, embora Amor Lethaeus atue e proteja os que o invocam, dominava a técnica de memorizar, de que derivava a força da retórica. No segundo, a escrita se afirma progressivamente contra a obediência a modelos visuais. Nesse âmbito, o autor dirá com agudeza e simplicidade, um Mallarmé fará do esquecimento o ato primordial do estado poético. No terceiro, que nos é contemporâneo, onde Auschwitz aponta como "o assassinato da memória", a ambivalência alcança sua máxima complexidade. É preciso sempre lembrar e, portanto, exercitar-se na recordação do que foi. Mas é preciso também esquecer. Não há fórmula que diga quando se há de preferir um estado ou outro. Assim intrincados, ambos são indispensáveis para a vida. É que ela se tornou mais difícil quando a pensávamos mais cômoda e confortável? Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.". Texto Anterior: + psicanálise - Vladimir Safatle: O monopólio da enunciação Próximo Texto: + livros - Arthur Nestrovski: Uma experiência às avessas Índice |
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