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Metamorfoses abruptas
Em "Sombra Severa" Raimundo Carrero depura o romance regionalista de seus aspectos típicos para situá-lo no plano do mito
José Maria Cançado
especial para a Folha
Nos chamados romances de
"danação" -esses nos quais o
que desencadeia tudo parece
inexorável, e a autonomia dos
personagens, nenhuma- o que há de
bom é que é possível saber como se entra
naquilo, mas é impossível saber como se
sai. O trajeto termina, o caminho começa. É dessa matéria que parece calcinada
e sem remédio -a do destino, do crime,
da traição, do fratricídio, da culpa sem
expiação- que é feito, no início, este romance de Raimundo Carrero. Essa matéria é da ordem do destino. A outra, a
que surge ao final, bem pode ser considerada da ordem da beleza.
A obra de Raimundo Carrero vem sendo escrita numa moldura abrupta. Seus
romances -dos quais "As Sombrias
Ruínas da Alma", vencedor do Prêmio
Jabuti no ano passado na categoria "contos e crônicas", é, junto com este "Sombra Severa", publicado pela primeira vez
em 1986, o mais conhecido- o lançaram numa espécie de segunda idade do
regionalismo, no caso o regionalismo literário do Nordeste.
Algo que, passando por dentro dessa
própria tradição, mas depurado do traço
típico, da ambiência local e do amparo
da circunstância histórica, busca encontrar o mito, como horizonte de inteligibilidade e configuração estética.
Embora em livros assim o entrecho pareça mínimo, furiosamente essencializado, há neste romance uma figuração
quase monstruosa, marcações e objetos
de cena meio teratológicos. Assim é que
o primeiro objeto despejado diante de
nós é o caixão que Judas fabrica para o irmão, Abel, que acaba de chegar, trazendo com ele Dina, a mulher que "raptara"
da casa dos pais. Esse caixão não é o único cujas tábuas são serradas e pregadas
dentro de uma romance de Raimundo
Carrero: em outros livros do autor também há mais deles sendo feitos, como
uma carpintaria regional perversa, de
mestres carpinas tocando o horror com
as mãos.
Com esse caixão, que começa a montar
na noite mesma da chegada da cunhada
que ele ama sem saber, Judas pretende
esconder o irmão da fúria e da vingança
da família de Dina. Pretende mais, contudo: esconder do próprio irmão, nesse
momento envultado ali dentro, o momento em que violenta Dina e o trai (há
um quê de "féerie" shakesperiana nisso,
algo de inominavelmente anedótico na
cena, de mobiliário tão grotesco quanto
esmeradamente preparado e disposto).
A danação e os gestos de Judas têm esse
grau duplicado de horror, essa motivação sem remédio, que vem do fato de estarem sendo observados pelo próprio Judas. Não são inscientes. São desesperadamente conscientes, com a consciência
vendo-os serem exercidos fora de toda
salvação, num auto-esclarecimento que
os joga sem volta no mundo da completa
culpabilidade. Assim é que, imediatamente antes de matar o irmão, por quem
sente um amor que não pode contemplar, Judas antevê (como na cartomancia
esquemática e sem saída que ele maneja) a forma da sua condenação: "É isto que
acontece comigo e não podia acontecer",
diz (esse tom, esse absoluto de cisão, essa
lucidez negativa, também tem muito de
alguns personagens de Faulkner).
Raimundo Carrero sabe, contudo, ou
escreve como se soubesse, que à infinita
monotonia da danação corresponde algo como as metamorfoses ou a imaginação do que pode ser chamado talvez de
graça. Assim é que a reação de Dina,
diante do assassinato de Abel, é não só
fazer-se amar e desejar
pelo assassino numa medida talvez completamente estranha para Judas,
aniquiladora ou de redenção, não se sabe, mas fazer-se amar sendo também o próprio Abel.
Bela, esguia, com o talhe dessas mulheres que, de tão unidas ao próprio corpo,
podem usar indiferentemente as roupas
de qualquer um, Dina passa a se vestir
como o próprio Abel. A trajetória maquínica de danado de Judas termina, o
caminho começa -a mulher começa.
Verdade que essa segunda idade do regionalismo, da qual Raimundo Carrero é
provavelmente um dos grandes nomes
hoje, não é sem problemas.
Pois o território do regional -o sotaque, uma certa ambiência
sociocultural, a sugestão
de uma região atrasada, o
emparedamento-, embora empurrado para o
fundo e tornado não mais
constitutivo da matéria literária, fica como fantasma meio sem préstimo. É o que explica
algumas entonações linguísticas um
pouco "armoriais" (o importante movimento metacultural pernambucano, do
qual Carrero fez parte) e algumas fórmulas lírico-sentenciais nem sempre contundentes, do tipo: "Os olhos precisavam ter a coragem dos músculos para
ver". Ou: "Estava tudo preparado: o Destino usa linhas e agulhas".
Nem é importante, talvez, saber se a
viagem do regionalismo termina ou não
na obra de Raimundo Carrero. Mais importante é que, como nas metamorfoses
da graça e da liberdade do coração humano em Dina (na verdade o que há de
universalmente grande neste romance),
nela a boa fabulação continua.
José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (ed. Scritta), biografia de Carlos
Drummond de Andrade.
Sombra Severa
128 págs., R$ 27,00
de Raimundo Carrero. Ed. Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP
01426-001, SP, tel. 0/ xx/11/
3068-9433).
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