São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2001

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Metamorfoses abruptas

Em "Sombra Severa" Raimundo Carrero depura o romance regionalista de seus aspectos típicos para situá-lo no plano do mito

José Maria Cançado
especial para a Folha

Nos chamados romances de "danação" -esses nos quais o que desencadeia tudo parece inexorável, e a autonomia dos personagens, nenhuma- o que há de bom é que é possível saber como se entra naquilo, mas é impossível saber como se sai. O trajeto termina, o caminho começa. É dessa matéria que parece calcinada e sem remédio -a do destino, do crime, da traição, do fratricídio, da culpa sem expiação- que é feito, no início, este romance de Raimundo Carrero. Essa matéria é da ordem do destino. A outra, a que surge ao final, bem pode ser considerada da ordem da beleza.
A obra de Raimundo Carrero vem sendo escrita numa moldura abrupta. Seus romances -dos quais "As Sombrias Ruínas da Alma", vencedor do Prêmio Jabuti no ano passado na categoria "contos e crônicas", é, junto com este "Sombra Severa", publicado pela primeira vez em 1986, o mais conhecido- o lançaram numa espécie de segunda idade do regionalismo, no caso o regionalismo literário do Nordeste.
Algo que, passando por dentro dessa própria tradição, mas depurado do traço típico, da ambiência local e do amparo da circunstância histórica, busca encontrar o mito, como horizonte de inteligibilidade e configuração estética.
Embora em livros assim o entrecho pareça mínimo, furiosamente essencializado, há neste romance uma figuração quase monstruosa, marcações e objetos de cena meio teratológicos. Assim é que o primeiro objeto despejado diante de nós é o caixão que Judas fabrica para o irmão, Abel, que acaba de chegar, trazendo com ele Dina, a mulher que "raptara" da casa dos pais. Esse caixão não é o único cujas tábuas são serradas e pregadas dentro de uma romance de Raimundo Carrero: em outros livros do autor também há mais deles sendo feitos, como uma carpintaria regional perversa, de mestres carpinas tocando o horror com as mãos.
Com esse caixão, que começa a montar na noite mesma da chegada da cunhada que ele ama sem saber, Judas pretende esconder o irmão da fúria e da vingança da família de Dina. Pretende mais, contudo: esconder do próprio irmão, nesse momento envultado ali dentro, o momento em que violenta Dina e o trai (há um quê de "féerie" shakesperiana nisso, algo de inominavelmente anedótico na cena, de mobiliário tão grotesco quanto esmeradamente preparado e disposto).
A danação e os gestos de Judas têm esse grau duplicado de horror, essa motivação sem remédio, que vem do fato de estarem sendo observados pelo próprio Judas. Não são inscientes. São desesperadamente conscientes, com a consciência vendo-os serem exercidos fora de toda salvação, num auto-esclarecimento que os joga sem volta no mundo da completa culpabilidade. Assim é que, imediatamente antes de matar o irmão, por quem sente um amor que não pode contemplar, Judas antevê (como na cartomancia esquemática e sem saída que ele maneja) a forma da sua condenação: "É isto que acontece comigo e não podia acontecer", diz (esse tom, esse absoluto de cisão, essa lucidez negativa, também tem muito de alguns personagens de Faulkner).
Raimundo Carrero sabe, contudo, ou escreve como se soubesse, que à infinita monotonia da danação corresponde algo como as metamorfoses ou a imaginação do que pode ser chamado talvez de graça. Assim é que a reação de Dina, diante do assassinato de Abel, é não só fazer-se amar e desejar pelo assassino numa medida talvez completamente estranha para Judas, aniquiladora ou de redenção, não se sabe, mas fazer-se amar sendo também o próprio Abel.
Bela, esguia, com o talhe dessas mulheres que, de tão unidas ao próprio corpo, podem usar indiferentemente as roupas de qualquer um, Dina passa a se vestir como o próprio Abel. A trajetória maquínica de danado de Judas termina, o caminho começa -a mulher começa.
Verdade que essa segunda idade do regionalismo, da qual Raimundo Carrero é provavelmente um dos grandes nomes hoje, não é sem problemas.
Pois o território do regional -o sotaque, uma certa ambiência sociocultural, a sugestão de uma região atrasada, o emparedamento-, embora empurrado para o fundo e tornado não mais constitutivo da matéria literária, fica como fantasma meio sem préstimo. É o que explica algumas entonações linguísticas um pouco "armoriais" (o importante movimento metacultural pernambucano, do qual Carrero fez parte) e algumas fórmulas lírico-sentenciais nem sempre contundentes, do tipo: "Os olhos precisavam ter a coragem dos músculos para ver". Ou: "Estava tudo preparado: o Destino usa linhas e agulhas".
Nem é importante, talvez, saber se a viagem do regionalismo termina ou não na obra de Raimundo Carrero. Mais importante é que, como nas metamorfoses da graça e da liberdade do coração humano em Dina (na verdade o que há de universalmente grande neste romance), nela a boa fabulação continua.


José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (ed. Scritta), biografia de Carlos Drummond de Andrade.


Sombra Severa
128 págs., R$ 27,00
de Raimundo Carrero. Ed. Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, SP, tel. 0/ xx/11/ 3068-9433).





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