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+ sociedade
Darwin em negativo
"Tropa de Elite" elege seleção natural como princípio e escancara estado de exceção
no país
LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Tropa de Elite" está dividindo seus espectadores entre os que o
defendem como um
filme crítico da "realidade brasileira" e os que o qualificam como "fascista" por tomar partido da violência policial contra "os pobres".
No entanto parece ter ficado
de fora da polêmica um aspecto
essencial de sua construção e
da perspectiva desenhada pelo
diretor José Padilha: o princípio operatório que lhe confere
inteligibilidade.
Com efeito, nesta ficção que
se apresenta como um documentário, o que fica evidente é
que, no Brasil contemporâneo,
não existe mais sociedade -o
Estado de Direito e a cidadania
sumiram pelo ralo e impera a
lei da selva (convém lembrar,
porém, que se trata de uma selva construída, e é por isso que
os filósofos Francisco de Oliveira e Paulo Arantes têm caracterizado a sociedade brasileira, em seus escritos recentes,
como um estado de exceção
permanente).
Entretanto, a julgar pela óptica do filme, nem interessa
mais desconstruir intelectualmente a selva, porque já teria
se tornado consenso que ela
não tem nem terá conserto.
É supérfluo analisá-la, a crítica teria ficado sem lugar; e o
pensamento daqueles que poderiam ajudar a compreender
as relações de poder e dominação -Foucault, Deleuze,
Nietzsche e tantos outros- já
pode ser desqualificado nas salas de aula das universidades
como surreais, juntamente
com mauricinhos e patricinhas. Nesse sentido, em termos culturais, "Tropa de Elite"
nos põe diante da máxima expressão da série "A Que Ponto
Chegamos".
Assim, o filme retrata a "lei"
da selva. Mas que lei é essa que,
ao mesmo tempo, estrutura a
narrativa? O velho e bom princípio biológico darwinista da
seleção natural, isto é, a "lei" do
mais forte. E se há um "problema" com esse filme, é que ele
faz da seleção o seu princípio
operatório e a chave do seu sucesso.
Traço comum
"Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, explorou a
questão da seleção natural pelo
seu viés negativo, tal como ela
se exerce no mundo miserável
do tráfico da periferia. "Tropa
de Elite" a explora pelo seu viés
positivo, tal como se exerce na
aristocracia da polícia.
Mas há um traço comum:
ambos glamourizam a violência pura e seduzem o espectador com a atração da afirmação
da força sem limites.
Diversos filmes do documentarista Harun Farocki, exibidos
em junho no Centro Cultural
São Paulo, também lidam com
o princípio da seleção; mas lá o
cineasta tem um "parti-pris"
estético-político que é o contrário do de José Padilha.
Trata-se de criar um distanciamento crítico, suscitado pelo comentário do narrador
"off", que permita ao espectador perceber como as sociedades disciplinares e de controle
ocidentais (fascistas inclusive)
operam a seleção dos mais fracos, sejam eles loucos, prisioneiros, deficientes ou operários, para neutralizá-los e/ou
eliminá-los.
E Farocki o faz adotando ora
a perspectiva do dispositivo
que seleciona, ora o ponto de
vista do selecionado, mas sempre mostrando, na imagem, a
lógica histórico-social da construção da violência. Nesse sentido, Farocki focaliza a violência pura como violência da sociedade. Não é o que acontece
no caso de Padilha. Aqui, a voz
"off" nos induz a aderir ao eu do
narrador... que é o herói.
Em "Tropa de Elite" estamos
diante de uma violência pura
naturalizada. O "mais forte" é o
"campeão", e seu sentido é assegurar a sua reprodução como
vencedor. O policial Nascimento só pode "retirar-se" para cuidar de seu filho quando e porque já fez um outro filho dentro
do batalhão, capaz de assegurar
a continuidade da espécie.
É interessantíssimo observar
o modo como a formação dos
eleitos da tropa de elite se inscreve no interior da narrativa
policial tradicional quase como
um filme dentro do filme.
"Nascido para Matar"
Stanley Kubrick também dedicara parcela importante de
seu "Nascido para Matar" para
mostrar os horrores e as humilhações inflingidos aos soldados. Mas ali o objetivo visava a
desvendar de que modo a máquina militar norte-americana
os desumanizava até que se tornassem máquinas de matar.
Em "Tropa de Elite" o resultado é outro, pois, mesmo com
toda a ambigüidade do mundo
e as angústias do personagem
Nascimento, a mensagem que
fica é que nem tudo está perdido no Brasil porque, apesar de
tudo, há homens que são "homens". E eles nasceram para
matar... os bandidos pobres, é
claro. Vale dizer: para fazer "saneamento básico", eliminar os
inaproveitáveis.
E é aí que o princípio da seleção natural encontra uma perspectiva societária: ao se afirmar
dentro dos parâmetros da seleção natural, o mais forte afirma
o seu "direito" de fazer limpeza
social. Desse modo, a seleção
natural positiva se completa
com a seleção natural negativa,
e os mais fortes de cima se irmanam com os mais fortes vindos de baixo, numa mesma cruzada. Não é à toa que o herdeiro
de Nascimento no batalhão é o
negro pobre, mas inteligente,
que "chega lá".
O filme de Padilha não é apenas a legitimação da boa polícia. É a legitimação dela como
vetor de consagração do estado
de exceção em que vivemos.
LAYMERT GARCIA DOS SANTOS é sociólogo e
professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (SP).
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