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Frestas da história imperial
Disputa de inventário relatada pelo visconde
do Rio Branco serve como documento multidisci-plinar do Brasil no século 19
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Nos tempos imperiais, em fins de
1856, morreu em
Iguape, no litoral
sul paulista, um
súdito francês de nome Louis
Béranger. Era uma pessoa estabelecida havia muitos anos naquela cidade, dono de uma fazenda produtora de cana-de-açúcar e café. Ambos os produtos, na época, já eram secundários na economia da região, baseada no arroz, destinado ao
mercado interno.
A cultura da cana vinha dos
primeiros tempos da colônia e,
a do café, de época mais recente. Uma e outra perderiam ainda mais significação diante da
emergência vertiginosa da economia cafeeira, a partir do Vale
do Paraíba e depois em direção
à "terra roxa" do oeste paulista.
A riqueza de Iguape dos velhos tempos deixou, porém,
testemunhos nos casarões imponentes, nas igrejas e nas ruas
estreitas tombados pelo Condephaat (Conselho de Defesa
do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) como patrimônio nacional.
Louis Béranger viveu com
uma mulher chamada Emília
Maria, "de cor e solteira", com
quem teve dois filhos naturais,
por ele reconhecidos no assento de batismo, perante o pároco
e três testemunhas, declarando
nesse ato que instituía os filhos
como seus herdeiros universais. Isso ocorreu mais de um
ano antes de sua morte.
A herança tinha algum valor
e, segundo avaliação judicial, os
26 escravos valiam mais de o
dobro da fazenda. De início, o
inventário dos bens correu
normalmente. O juiz de Iguape
deu um tutor aos menores, nomeando um brasileiro, e confiou a administração da fazenda a dois súditos franceses,
Pierre Laragnoit e Frédéric
Louis Kreükely.
Questão diplomática
Extraí esses dados de um minucioso parecer, de autoria do
ministro dos Negócios Estrangeiros e também consultor do
ministério, José Maria da Silva
Paranhos, mais tarde visconde
do Rio Branco e pai do barão do
Rio Branco, publicado no volume "Pareceres dos Consultores
do Ministério dos Negócios Estrangeiros", pela Fundação
Alexandre de Gusmão, do Ministério das Relações Exteriores, em 2006.
Por que essa pequena história, atrativa por vários de seus
elementos aos olhos de hoje,
mas corriqueira aos olhos da
época, chegou a um nível ministerial? Porque o sr. Kreükely, no curso do inventário, revestido da qualidade de agente
consular da França, alegou que
o processo deveria ser anulado,
pois, pelos tratados existentes
entre o Brasil e a França, cabia
ao consulado promovê-lo, de
acordo com as leis francesas,
considerando-se que o morto
era cidadão daquele país.
Alegou, ainda, que filhos de
súdito francês nascidos no Brasil não eram brasileiros e, por
acréscimo, que o reconhecimento dos filhos naturais de
Béranger não seguira as formalidades legais.
A partir daí, instalou-se a
controvérsia. Depois de passar
por várias instâncias, chegou à
apreciação do Ministério dos
Negócios Estrangeiros.
Não escapou ao visconde do
Rio Branco o fato de que o caso
"não envolvia meros interesses
privados e de ordem administrativa, mas uma questão política e constitucional de grande
alcance".
No parecer, fica patente uma
relação de atrito entre os dois
países envolvidos porque a
França, segundo as autoridades
brasileiras, exigia direitos
maiores daqueles que reconhecia ao nosso país. O visconde
salientou que o governo imperial resistira desde 1846 às pretensões da legação francesa,
"contemporizando com a
maior prudência, a fim de evitar um conflito que a nossa legação em Paris declarava iminente em 1857, até que o Poder
Legislativo do Brasil habilitasse o mesmo governo imperial a
esse respeito".
No caso, concluiu pela recusa
de todas as impugnações do
agente consular, advertindo
apenas o juiz de Iguape para tomar providências para evitar
que a fazenda fosse invadida
por um vizinho, como o agente
consular francês denunciava.
Frestas para a história
O parecer abre pequenas
frestas para temas que vão da
microistória das relações pessoais à história diplomática tradicional, ganhando, na sua singularidade, uma inesperada dimensão. O núcleo de franceses
de Iguape, Emília Maria, a "mulher de cor e solteira" que vivia
com o francês, o batismo e o reconhecimento dos filhos naturais etc. são fragmentos significativos da história da época.
Certamente esse documento
isolado está muito aquém de
uma ampla pesquisa histórica,
como é fácil perceber. Mas, na
sua diversidade temática, ele
suscita múltiplas abordagens e
permite incursionar no terreno
da imaginação histórica.
Nesse sentido, ficou no ar,
para mim, uma hipótese curiosa. Ao impugnar o inventário
dos bens, o agente consular
francês alegou que Louis Béranger tinha irmãos na França
e uma irmã residente em Ubatuba, norte do litoral paulista.
Dando um salto no tempo
para anos comparativamente
mais recentes, quando Ubatuba era ainda uma beleza solitária de difícil acesso, havia na
praia da Enseada uma casa cor-de-rosa, de portas fechadas,
que os caiçaras diziam ser de
propriedade dos Béranger.
Seria possível estabelecer
uma filiação genealógica entre
os Béranger do parecer ministerial de meados do século 19 e
os proprietários da casa cor-de-rosa, sombreada por vetustas
amendoeiras?
BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura
Internacional), da USP. É autor de "A Revolução
de 1930" (Cia. das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais! .
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