São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2007

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Frestas da história imperial

Disputa de inventário relatada pelo visconde do Rio Branco serve como documento multidisci-plinar do Brasil no século 19

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Nos tempos imperiais, em fins de 1856, morreu em Iguape, no litoral sul paulista, um súdito francês de nome Louis Béranger. Era uma pessoa estabelecida havia muitos anos naquela cidade, dono de uma fazenda produtora de cana-de-açúcar e café. Ambos os produtos, na época, já eram secundários na economia da região, baseada no arroz, destinado ao mercado interno.
A cultura da cana vinha dos primeiros tempos da colônia e, a do café, de época mais recente. Uma e outra perderiam ainda mais significação diante da emergência vertiginosa da economia cafeeira, a partir do Vale do Paraíba e depois em direção à "terra roxa" do oeste paulista.
A riqueza de Iguape dos velhos tempos deixou, porém, testemunhos nos casarões imponentes, nas igrejas e nas ruas estreitas tombados pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) como patrimônio nacional.
Louis Béranger viveu com uma mulher chamada Emília Maria, "de cor e solteira", com quem teve dois filhos naturais, por ele reconhecidos no assento de batismo, perante o pároco e três testemunhas, declarando nesse ato que instituía os filhos como seus herdeiros universais. Isso ocorreu mais de um ano antes de sua morte.
A herança tinha algum valor e, segundo avaliação judicial, os 26 escravos valiam mais de o dobro da fazenda. De início, o inventário dos bens correu normalmente. O juiz de Iguape deu um tutor aos menores, nomeando um brasileiro, e confiou a administração da fazenda a dois súditos franceses, Pierre Laragnoit e Frédéric Louis Kreükely.

Questão diplomática
Extraí esses dados de um minucioso parecer, de autoria do ministro dos Negócios Estrangeiros e também consultor do ministério, José Maria da Silva Paranhos, mais tarde visconde do Rio Branco e pai do barão do Rio Branco, publicado no volume "Pareceres dos Consultores do Ministério dos Negócios Estrangeiros", pela Fundação Alexandre de Gusmão, do Ministério das Relações Exteriores, em 2006.
Por que essa pequena história, atrativa por vários de seus elementos aos olhos de hoje, mas corriqueira aos olhos da época, chegou a um nível ministerial? Porque o sr. Kreükely, no curso do inventário, revestido da qualidade de agente consular da França, alegou que o processo deveria ser anulado, pois, pelos tratados existentes entre o Brasil e a França, cabia ao consulado promovê-lo, de acordo com as leis francesas, considerando-se que o morto era cidadão daquele país.
Alegou, ainda, que filhos de súdito francês nascidos no Brasil não eram brasileiros e, por acréscimo, que o reconhecimento dos filhos naturais de Béranger não seguira as formalidades legais.
A partir daí, instalou-se a controvérsia. Depois de passar por várias instâncias, chegou à apreciação do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Não escapou ao visconde do Rio Branco o fato de que o caso "não envolvia meros interesses privados e de ordem administrativa, mas uma questão política e constitucional de grande alcance".
No parecer, fica patente uma relação de atrito entre os dois países envolvidos porque a França, segundo as autoridades brasileiras, exigia direitos maiores daqueles que reconhecia ao nosso país. O visconde salientou que o governo imperial resistira desde 1846 às pretensões da legação francesa, "contemporizando com a maior prudência, a fim de evitar um conflito que a nossa legação em Paris declarava iminente em 1857, até que o Poder Legislativo do Brasil habilitasse o mesmo governo imperial a esse respeito".
No caso, concluiu pela recusa de todas as impugnações do agente consular, advertindo apenas o juiz de Iguape para tomar providências para evitar que a fazenda fosse invadida por um vizinho, como o agente consular francês denunciava.

Frestas para a história
O parecer abre pequenas frestas para temas que vão da microistória das relações pessoais à história diplomática tradicional, ganhando, na sua singularidade, uma inesperada dimensão. O núcleo de franceses de Iguape, Emília Maria, a "mulher de cor e solteira" que vivia com o francês, o batismo e o reconhecimento dos filhos naturais etc. são fragmentos significativos da história da época.
Certamente esse documento isolado está muito aquém de uma ampla pesquisa histórica, como é fácil perceber. Mas, na sua diversidade temática, ele suscita múltiplas abordagens e permite incursionar no terreno da imaginação histórica.
Nesse sentido, ficou no ar, para mim, uma hipótese curiosa. Ao impugnar o inventário dos bens, o agente consular francês alegou que Louis Béranger tinha irmãos na França e uma irmã residente em Ubatuba, norte do litoral paulista.
Dando um salto no tempo para anos comparativamente mais recentes, quando Ubatuba era ainda uma beleza solitária de difícil acesso, havia na praia da Enseada uma casa cor-de-rosa, de portas fechadas, que os caiçaras diziam ser de propriedade dos Béranger.
Seria possível estabelecer uma filiação genealógica entre os Béranger do parecer ministerial de meados do século 19 e os proprietários da casa cor-de-rosa, sombreada por vetustas amendoeiras?


BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Cia. das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais! .


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