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+ sociedade
Revoluções russas
Nomes centrais da história da literatura,
Górki e Púchkin têm lançados, respectiva-mente, autobiografia
e a peça "Boris Godunov"
AURORA F. BERNARDINI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Já então eu via que todas
as pessoas eram mais ou
menos pecadoras perante o desconhecido deus
da verdade perfeita, enquanto perante o homem pecavam sobretudo as pessoas tidas
como justas. Os justos são
monstros nascidos do coito do
vício com a virtude." O trecho,
que parece saído de "The Revolutionist's Handbook" [Manual
do Revolucionário], do socialista George Bernard Shaw, encontra-se, na verdade, no final
de "Minhas Universidades"
(1923), um dos livros autobiográficos do socialista e a seu
modo revolucionário Maksim
Górki (1868-1936).
Juntamente com "Infância"
(1913) e "Ganhando Meu Pão"
(1916), constitui a trilogia lançada agora.
"Naquela época, eu gostava
de paradoxos -como um menino gosta de sorvete-, e sua
sutileza me estimulava, como
um bom vinho, e o caráter paradoxal das palavras sempre
atenuava os brutais e ultrajantes paradoxos dos fatos", explica o autor, cuja vida, conforme
o leitor terá ocasião de ver, será
-entre altos e baixos- paradoxal até o fim.
Essencial
Conhecido entre nós especialmente por duas admiráveis
peças de teatro, "Pequenos
Burgueses" e "Ralé - No Fundo", Górki tem outro ponto alto
quando escreve suas memórias. Mais do que em seus contos em que, por vezes, se alastra
em longas descrições ("Corta,
corta!", escrevia-lhe o amigo
Tchékhov [1860-1904], consultado sobre a arte de narrar, em
uma de suas cartas, lembrada
por Sophia Angelides em "Carta e Literatura - A correspondência entre Tchékhov e Górki", Edusp, 2001), em suas memórias ele capta poderosamente o essencial das pessoas e das
circunstâncias, com aquele
"coração inteligente" que lhe
atribuíra Tolstói.
"Nossa vida não só é espantosa por haver nela uma camada
tão fecunda e gorda de toda canalhice bestial, mas por, mesmo assim, conseguir germinar
através dessa camada algo claro, saudável, criador..."
É assim que ele define o caráter russo, e é envolta nessa camada obscura de brutalidade
que ele revê a sua infância e os
primeiros anos de sua mocidade, na cidadezinha de Nijni
Novgorod (hoje Górki), junto
dos avós, pois, órfão de pai, é
para lá que a mãe o leva antes
de se casar pela segunda vez.
"Infância" e "Ganhando Meu
Pão", entre as chicotadas do
avô, o interlúdio da escola
(1876-77), os pequenos e duros
trabalhos para se sustentar e as
descobertas dos terríveis "mistérios" da vida, que haverão de
cristalizar-se em sua consciência aos poucos em severos juízos, são um hino de amor à avó
Akulina.
"Todas as pessoas são estranhas umas às outras, apesar das
palavras e dos sorrisos carinhosos, e sobre a terra em geral todos são estranhos; parece que
ninguém está ligado a ela pelo
sentimento robusto do amor.
Somente a vovó ama viver e
ama tudo. Vovó e a magnífica
rainha Margot." Assim pensa o
menino Aleksiéi (Maksim é seu
pseudônimo), que, mais tarde,
acrescenta: "Só amando os homens com muita força, com
muito ardor, poderia extrair
desse amor a energia indispensável para descobrir e entender
o sentido da vida".
Essa é uma das teses da trilogia, a mais difícil de ser defendida entre tantas agruras e contradições (não por nada ele tenta o suicídio na adolescência,
com um tiro que lhe fura o pulmão, e não por nada ele é incômodo tanto ao czar, que o mandou prender -em 1890, 1901,
1905-, quanto a Lênin, que o
expatriou -em exílio dourado,
é verdade- em Sorrento (1921-28), e quanto, finalmente, a Stálin, que o manteve numa prisão
dourada até sua morte, talvez
induzida, e onde até os exemplares do "Pravda" lhe chegavam falsificados.
Górki mudou-se para Kazan
em 1884 com a esperança de ingressar na universidade local
-onde jamais ingressou- tentando ler desesperadamente
para suprir os estudos regulares que nunca ocorreram -daí
o título talvez irônico de seu
terceiro livro: "Minhas Universidades"-, só voltando a Nijni
Novgorod em 1890, quando foi
preso temporariamente como
suspeito revolucionário.
Contatos
Em suas andanças por milhares de verstas Rússia afora,
sempre procurando, juntamente com o sentido da vida,
alguma solução para os problemas do povo e da Rússia, freqüentou grupos populistas e teve contatos com pregadores,
tolstoianos, ladrões, guardas,
fidalgas, prostitutas e mujiques
(especialmente "Meus Livros
Proibidos", "Os Mujiques" e
"As Mulheres" constituiriam,
na trilogia, admiráveis capítulos à parte).
Esses contatos, vividos intensamente, o enriqueceram
com visadas rebeldes, amargas,
contraditórias, muitas das
quais passariam, sub-repticiamente, a fazer parte de seu
ideário e contribuiriam para
que, em 1898, a publicação de
seu primeiro livro de contos
-previamente rejeitado por
várias editoras- o tornasse, logo em seguida, uma figura literária das mais famosas na Rússia e no mundo inteiro.
Na trilogia pode-se acompanhar a origem de algumas dessas idéias, que provêm das fontes mais diversas.
"Quem era o tal Bonaparte?
[pergunta o avô]. Ele queria
que os direitos fossem iguais
para todos. Claro, isso é uma estupidez: só os caranguejos é
que a gente não pode diferenciar uns dos outros", "há muita
piedade no Evangelho, mas a
piedade é coisa nociva... É preciso ajudar as pessoas fortes,
saudáveis, para que não gastem
suas forças à toa", diz-lhe o
guarda em "Minhas Universidades". "A bondade, meu rapaz,
não exige inteligência", conclui
Óssip, seu colega de artiel [organização de trabalho coletivo],
em "Ganhando Meu Pão".
"Sem escravidão não existe
progresso" -confidencia-lhe
Jorge, um homem a quem salvou de morrer congelado-,
"sem a submissão da maioria a
uma minoria a humanidade ficaria parada no meio do caminho". "Esclareça o mujique para que ele pouco a pouco aprenda a tomar o poder do czar e a
passá-lo para as próprias
mãos", diz o Ucraniano.
Em nome do Estado
"A intelligentsia se rebela por
uma utopia" -repete-lhe um
velho operário, em 1921 (em
"Minhas Universidades")-, "e
junto com ela vão os inúteis, os
imprestáveis, os canalhas e todos os movidos só pelo rancor:
vêem que para eles não existe
um lugar na vida. O trabalhador
se insurge pela revolução. (...)
Uma vez tomado o poder, o senhor acha que ele vai consentir
em compor um Estado? De jeito nenhum. Todos vão se dispersar".
Talvez em nome do fortalecimento do Estado tenha ele se
deixado iludir por Stálin em
1928 e, embora tentando ajudar, sempre, aos ameaçados e
condenados que a ele recorriam (confrontar "Sobre o Autor", de Boris Schnaiderman, a
respeito dos testemunhos de
Zamiátin e Likhatchóv), em nome desse mesmo Estado tenha
ele aceito a violência e a repressão. Por pouco tempo, porém.
Felizmente, diz Púchkin
[1799-1837] -o grande poeta
que o espantou com o vigor de
seus versos e cujas narrativas
populares, mais próximas a ele,
melhor compreendia (confrontar o recém-lançado clássico de
Púchkin, "Boris Godunov")-, a
doença e a velhice embotam o
entendimento, preparando os
homens para a morte.
Talvez por isso Górki, tuberculoso, obnubilado e apático
após a "inexplicável" morte do
filho (Rubens Figueiredo), usado pelo regime "que erguia estátuas de bronze em sua homenagem" (Boris Schnaiderman),
tenha vivido os últimos anos de
sua vida sem perceber claramente o que ocultava a violência que havia justificado e da
qual ele mesmo acabou sendo
uma das vítimas.
AURORA F. BERNARDINI é professora de pós-gradução em literatura russa na USP.
INFÂNCIA
Autor: Maksim Górki
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/3218-1444)
Quanto: R$ 39 (312 págs.)
GANHANDO MEU PÃO
Autor: Maksim Górki
Tradução: Boris Schnaiderman
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 45 (464 págs.)
MINHAS UNIVERSIDADES
Autor: Maksim Górki
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39 (278 págs.)
BORIS GODUNOV
Autor: A.S. Púchkin
Tradução: Irineu Franco Perpetuo
Editora: Globo (tel. 0/xx/11/3767-7000)
Quanto: R$ 21 (184 págs.)
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