São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ sociedade

Revoluções russas

Nomes centrais da história da literatura, Górki e Púchkin têm lançados, respectiva-mente, autobiografia e a peça "Boris Godunov"

AURORA F. BERNARDINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Já então eu via que todas as pessoas eram mais ou menos pecadoras perante o desconhecido deus da verdade perfeita, enquanto perante o homem pecavam sobretudo as pessoas tidas como justas. Os justos são monstros nascidos do coito do vício com a virtude." O trecho, que parece saído de "The Revolutionist's Handbook" [Manual do Revolucionário], do socialista George Bernard Shaw, encontra-se, na verdade, no final de "Minhas Universidades" (1923), um dos livros autobiográficos do socialista e a seu modo revolucionário Maksim Górki (1868-1936).
Juntamente com "Infância" (1913) e "Ganhando Meu Pão" (1916), constitui a trilogia lançada agora. "Naquela época, eu gostava de paradoxos -como um menino gosta de sorvete-, e sua sutileza me estimulava, como um bom vinho, e o caráter paradoxal das palavras sempre atenuava os brutais e ultrajantes paradoxos dos fatos", explica o autor, cuja vida, conforme o leitor terá ocasião de ver, será -entre altos e baixos- paradoxal até o fim.

Essencial
Conhecido entre nós especialmente por duas admiráveis peças de teatro, "Pequenos Burgueses" e "Ralé - No Fundo", Górki tem outro ponto alto quando escreve suas memórias. Mais do que em seus contos em que, por vezes, se alastra em longas descrições ("Corta, corta!", escrevia-lhe o amigo Tchékhov [1860-1904], consultado sobre a arte de narrar, em uma de suas cartas, lembrada por Sophia Angelides em "Carta e Literatura - A correspondência entre Tchékhov e Górki", Edusp, 2001), em suas memórias ele capta poderosamente o essencial das pessoas e das circunstâncias, com aquele "coração inteligente" que lhe atribuíra Tolstói.
"Nossa vida não só é espantosa por haver nela uma camada tão fecunda e gorda de toda canalhice bestial, mas por, mesmo assim, conseguir germinar através dessa camada algo claro, saudável, criador..." É assim que ele define o caráter russo, e é envolta nessa camada obscura de brutalidade que ele revê a sua infância e os primeiros anos de sua mocidade, na cidadezinha de Nijni Novgorod (hoje Górki), junto dos avós, pois, órfão de pai, é para lá que a mãe o leva antes de se casar pela segunda vez.
"Infância" e "Ganhando Meu Pão", entre as chicotadas do avô, o interlúdio da escola (1876-77), os pequenos e duros trabalhos para se sustentar e as descobertas dos terríveis "mistérios" da vida, que haverão de cristalizar-se em sua consciência aos poucos em severos juízos, são um hino de amor à avó Akulina.
"Todas as pessoas são estranhas umas às outras, apesar das palavras e dos sorrisos carinhosos, e sobre a terra em geral todos são estranhos; parece que ninguém está ligado a ela pelo sentimento robusto do amor.
Somente a vovó ama viver e ama tudo. Vovó e a magnífica rainha Margot." Assim pensa o menino Aleksiéi (Maksim é seu pseudônimo), que, mais tarde, acrescenta: "Só amando os homens com muita força, com muito ardor, poderia extrair desse amor a energia indispensável para descobrir e entender o sentido da vida".
Essa é uma das teses da trilogia, a mais difícil de ser defendida entre tantas agruras e contradições (não por nada ele tenta o suicídio na adolescência, com um tiro que lhe fura o pulmão, e não por nada ele é incômodo tanto ao czar, que o mandou prender -em 1890, 1901, 1905-, quanto a Lênin, que o expatriou -em exílio dourado, é verdade- em Sorrento (1921-28), e quanto, finalmente, a Stálin, que o manteve numa prisão dourada até sua morte, talvez induzida, e onde até os exemplares do "Pravda" lhe chegavam falsificados.
Górki mudou-se para Kazan em 1884 com a esperança de ingressar na universidade local -onde jamais ingressou- tentando ler desesperadamente para suprir os estudos regulares que nunca ocorreram -daí o título talvez irônico de seu terceiro livro: "Minhas Universidades"-, só voltando a Nijni Novgorod em 1890, quando foi preso temporariamente como suspeito revolucionário.

Contatos
Em suas andanças por milhares de verstas Rússia afora, sempre procurando, juntamente com o sentido da vida, alguma solução para os problemas do povo e da Rússia, freqüentou grupos populistas e teve contatos com pregadores, tolstoianos, ladrões, guardas, fidalgas, prostitutas e mujiques (especialmente "Meus Livros Proibidos", "Os Mujiques" e "As Mulheres" constituiriam, na trilogia, admiráveis capítulos à parte).
Esses contatos, vividos intensamente, o enriqueceram com visadas rebeldes, amargas, contraditórias, muitas das quais passariam, sub-repticiamente, a fazer parte de seu ideário e contribuiriam para que, em 1898, a publicação de seu primeiro livro de contos -previamente rejeitado por várias editoras- o tornasse, logo em seguida, uma figura literária das mais famosas na Rússia e no mundo inteiro.
Na trilogia pode-se acompanhar a origem de algumas dessas idéias, que provêm das fontes mais diversas. "Quem era o tal Bonaparte?
[pergunta o avô]. Ele queria que os direitos fossem iguais para todos. Claro, isso é uma estupidez: só os caranguejos é que a gente não pode diferenciar uns dos outros", "há muita piedade no Evangelho, mas a piedade é coisa nociva... É preciso ajudar as pessoas fortes, saudáveis, para que não gastem suas forças à toa", diz-lhe o guarda em "Minhas Universidades". "A bondade, meu rapaz, não exige inteligência", conclui Óssip, seu colega de artiel [organização de trabalho coletivo], em "Ganhando Meu Pão".
"Sem escravidão não existe progresso" -confidencia-lhe Jorge, um homem a quem salvou de morrer congelado-, "sem a submissão da maioria a uma minoria a humanidade ficaria parada no meio do caminho". "Esclareça o mujique para que ele pouco a pouco aprenda a tomar o poder do czar e a passá-lo para as próprias mãos", diz o Ucraniano.

Em nome do Estado
"A intelligentsia se rebela por uma utopia" -repete-lhe um velho operário, em 1921 (em "Minhas Universidades")-, "e junto com ela vão os inúteis, os imprestáveis, os canalhas e todos os movidos só pelo rancor: vêem que para eles não existe um lugar na vida. O trabalhador se insurge pela revolução. (...)
Uma vez tomado o poder, o senhor acha que ele vai consentir em compor um Estado? De jeito nenhum. Todos vão se dispersar".
Talvez em nome do fortalecimento do Estado tenha ele se deixado iludir por Stálin em 1928 e, embora tentando ajudar, sempre, aos ameaçados e condenados que a ele recorriam (confrontar "Sobre o Autor", de Boris Schnaiderman, a respeito dos testemunhos de Zamiátin e Likhatchóv), em nome desse mesmo Estado tenha ele aceito a violência e a repressão. Por pouco tempo, porém.
Felizmente, diz Púchkin [1799-1837] -o grande poeta que o espantou com o vigor de seus versos e cujas narrativas populares, mais próximas a ele, melhor compreendia (confrontar o recém-lançado clássico de Púchkin, "Boris Godunov")-, a doença e a velhice embotam o entendimento, preparando os homens para a morte.
Talvez por isso Górki, tuberculoso, obnubilado e apático após a "inexplicável" morte do filho (Rubens Figueiredo), usado pelo regime "que erguia estátuas de bronze em sua homenagem" (Boris Schnaiderman), tenha vivido os últimos anos de sua vida sem perceber claramente o que ocultava a violência que havia justificado e da qual ele mesmo acabou sendo uma das vítimas.


AURORA F. BERNARDINI é professora de pós-gradução em literatura russa na USP.

INFÂNCIA
Autor: Maksim Górki
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/3218-1444)
Quanto: R$ 39 (312 págs.)

GANHANDO MEU PÃO
Autor:
Maksim Górki
Tradução: Boris Schnaiderman
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 45 (464 págs.)

MINHAS UNIVERSIDADES
Autor:
Maksim Górki
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39 (278 págs.)

BORIS GODUNOV
Autor:
A.S. Púchkin
Tradução: Irineu Franco Perpetuo
Editora: Globo (tel. 0/xx/11/3767-7000)
Quanto: R$ 21 (184 págs.)


Texto Anterior: + autores: Frestas da história imperial
Próximo Texto: A era da inocência
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.