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Nações fora de lugar
AUTOR DA TEORIA DO FIM DA HISTÓRIA DIZ QUE A INTERVENÇÃO ESTATAL NA ECONOMIA REPRESENTA UMA "NOVA FASE" DO CAPITALISMO
John Giles - 4.fev.09 /Associated Press
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Operários ingleses protestam contra a admissão de estrangeiros estendendo bandeira do país com a frase "empregos britânicos para trabalhadores britânicos"
SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON
A atual crise econômica não é o fim da
história nem do capitalismo, mas do
reaganismo, diz
Francis Fukuyama. Para o autor de tese sobre o fim da história, acabou o movimento que
há 30 anos prega a não-intervenção no mercado.
"Agora, vamos começar uma
nova fase, com mais intervenção do Estado", disse à Folha,
em entrevista por telefone.
Professor da Universidade
Johns Hopkins, o economista e
filósofo norte-americano de
origem japonesa divulga nesta
semana, em Washington, o recente "Falling Behind - Explaining the Development Gap
Between Latin America and
the United States" (Ficando
para Trás - Explicando a Distância no Desenvolvimento da
América Latina e dos EUA, Oxford University Press, 336
págs., US$ 29,95, R$ 69), organizado por ele.
FOLHA - O que mudou na distância
cultural-econômica entre a América
Latina e os EUA desde que começou
a estudar o assunto, em 2005?
FRANCIS FUKUYAMA - Estamos no
meio de uma crise econômica
mundial, então tudo mudou
para todo mundo.
O que acho interessante nesta crise é que, desta vez, foi o
mau gerenciamento nos EUA
que a alavancou. A América Latina está sendo atingida, mas o
dano até agora não é dos maiores, com algumas exceções, como a Venezuela.
O gerenciamento macropolítico colocou os países da região
em um bom lugar; ninguém vai
passar por ela ileso, mas, em
comparação com as décadas
passadas, a América Latina está
em uma posição muito melhor.
FOLHA - Então, após décadas de
sermões do FMI e do Banco Mundial, a região superou os mestres?
FUKUYAMA - Sim, está melhor
que o professor, em certos aspectos. Acho que os EUA não
seguiram os mesmos conselhos
que dão a outros países e só
conseguiram fazer isso por causa do papel do dólar como moeda forte, então a economia
americana pôde seguir suas
próprias regras. Se isso não
acontecesse, o dólar teria despencado muito tempo atrás.
FOLHA - O sr. anteviu essa mudança de papéis?
FUKUYAMA - Não, eu fiquei muito surpreso e não poderia imaginar que Wall Street sofreria
esse colapso total.
FOLHA - De volta a seu estudo, como explicaria a distância entre a
América Latina e os EUA?
FUKUYAMA - É uma história que
começa 300 anos atrás. No começo, havia regiões na América
Latina com renda per capita
maior que a da América do
Norte. Por exemplo, em 1790, a
renda per capita em Cuba era
maior que a de Massachusetts.
Mas essa distância foi crescendo de maneira consistente,
às vezes com velocidade maior,
outras menor.
Contudo a razão mais importante para que isso acontecesse
foi a grande desigualdade na estratificação social na América
Latina. Uma sociedade muito
desigual pode crescer bastante,
como aconteceu com o México
ou o Brasil desde os anos 1950
até os anos 70 ou nos últimos
cinco ou seis anos.
Mas esses períodos de crescimento acabam por causa da
instabilidade política e do fato
de que a riqueza não é distribuída por toda a sociedade.
Os longos períodos de instabilidade param o crescimento
econômico, e é nesses momentos que a distância entre a
América Latina e a América do
Norte tende a ficar maior.
Hoje em dia isso fica muito
claro quando olhamos para países como Venezuela, Equador e
Bolívia, em que há uma grande
população de raças diferentes
que nunca se sentiram incluídas no processo politico.
O tipo de populismo que aparece hoje nesses países traz essas doenças sociais à tona, mas,
a não ser que lidemos com elas
de uma maneira séria e definitiva, a distância só vai continuar a crescer.
FOLHA - O sr. também rejeita a tese
de que católicos são piores colonizadores que protestantes.
FUKUYAMA - A identidade dos
colonizadores é importante,
mas não por conta da religião.
Tem a ver com o jeito como
aquelas autoridades gerenciavam os seus impérios.
Alguns países, como México
e Peru, foram estabelecidos
apenas para que os colonizadores viessem levar o ouro e a prata desses lugares para as suas
metrópoles e, para fazer isso, fizeram os índios virarem escravos e estabeleceram um sistema hierárquico muito duro. E
essa política social foi levada
adiante até para países que não
tinham esses recursos naturais.
Na América do Norte, o sistema era muito diferente, porque
não havia ouro nem prata nem
outros recursos minerais que
fossem apreciados à época.
Ao invés de virem buscar riquezas, os colonizadores trouxeram famílias de fazendeiros e
deram pequenos pedaços de
terra para que pudessem plantar e viver do que plantavam, e
um governo foi estabelecido
para cobrar imposto dessas
pessoas.
Foi melhor negócio para as
colônias, em comparação com
o que aconteceu com a América
espanhola ou a portuguesa.
FOLHA - A crise atual pode levar a
região a repetir erros do passado,
como pôr a democracia em risco ou
se voltar para o populismo? Há risco
de a história se repetir?
FUKUYAMA - Não é inevitável,
mas é um grande risco. Até para
quando as coisas estão indo
bem. Nos últimos anos, esse tipo de populismo vem voltando
à região em países como a Bolívia e a Venezuela e potencialmente até com a quase eleição
de Lopes Obrador no México.
E, obviamente, quando as
coisas não vão bem, ainda mais
com o descrédito das ideias vindas de Washington, esse pensamento tem tudo para voltar a
ser alimentado.
A única coisa que pode ajudar é que, acredito, as sociedades aprendem com o passar do
tempo, então acho que as pessoas sabem que o populismo
também tem seus perigos.
FOLHA - A eleição de Obama não
mitiga esse risco?
FUKUYAMA - Sim, se ele levar os
EUA a uma direção completamente diferente, e a política
americana é notável por se
reinventar. Creio que estamos
nesse processo. Finalmente
saímos dos anos Reagan.
Ideias diferentes vão começar a sair de Washington, e espero que haja um pouco mais
de humildade na política externa, um enfoque mais cooperativo com outras nações.
Se isso acontecer mesmo, os
EUA podem recuperar um
pouco da boa vontade e da credibilidade perdidas nos últimos
oito anos.
FOLHA - Qual será o papel do Brasil
nesse "novo mundo"?
FUKUYAMA - É um papel muito
importante, porque o país dá o
tom para o que vai acontecer
nos outros países na região.
Acho que uma das razões pelas quais a América Latina como um todo está se saindo bem
é que os dois últimos presidentes do país foram bons líderes.
O que acontece no Brasil tem
um impacto muito importante
nos outros países.
FOLHA - O que mais a região deveria estar fazendo e não está?
FUKUYAMA - Se olharmos para
as origens da desigualdade, algumas são herdadas do passado, mas é quase tudo resultado
de políticas sociais, que na
América Latina são reforçadas
o tempo inteiro.
Se compararmos seu nível de
desigualdade com o de lugares
como o Japão ou a Europa Ocidental ou mesmo os EUA, há
uma redistribuição de renda
substancial dos mais ricos para
os mais pobres.
E isso não acontece na América Latina porque os gastos
públicos acabam ajudando as
elites ou a classe média.
Então daria para fazer muita
coisa só com a redistribuição
desses gastos, se você conseguir
passar pela oposição de grupos
políticos que representam essas elites.
FOLHA - O Bolsa Família seria um
mecanismo?
FUKUYAMA - É um programa social relativamente bem feito e
que foi criado para diminuir essa desigualdade. Economistas
que estudaram o Bolsa Família
provaram que a iniciativa foi
bem-sucedida. Meu medo é
que a crise faça desses programas sua primeira vítima.
O outro perigo é que a corrupção ainda existe e pode fazer esse dinheiro ir para os protegidos dos políticos em vez de
ir para os mais pobres de verdade. Isso já acontece na Nicarágua, mas, até onde sei, ainda
não acontece no Brasil.
Mas é um perigo, e a sociedade deve prestar atenção.
FOLHA - Como o mundo sairá da
crise?
FUKUYAMA - Não sei o que vai
acontecer no resto do mundo,
mas acho que os EUA estão caminhando para uma recessão
bem longa, porque passamos os
últimos 30 anos gastando mais
do que tínhamos, especialmente nos últimos oito anos.
E será muito difícil recomeçar o processo de crescimento
com toda essa dívida. Sou moderadamente pessimista nesse
aspecto. E isso vai ter um impacto no resto do mundo, porque os EUA serviram como o
motor do consumo mundial.
FOLHA - As ações do novo governo
vão funcionar?
FUKUYAMA - Suspeito que esse
plano não será suficiente e, se
você olhar para os detalhes, há
várias coisas que poderiam ser
diferentes. O problema é que,
quando você se oferece para
gastar US$ 800 bilhões, muitos
interesses políticos acabam
sendo envolvidos e muitos gastos previstos não vão aos lugares certos.
Dá para fazer muitas críticas,
mas também não vejo alternativa nesse momento.
FOLHA - Será o fim não da história,
mas do capitalismo como o conhecemos?
FUKUYAMA - É o fim do reaganismo, não do capitalismo, de
um movimento que há 30 anos
prega a não-intervenção no
mercado. Não, não é o fim do
capitalismo, mas um movimento pendular geracional nas
políticas e nas ideias.
Não estou condenando o reaganismo, que foi muito importante para o mundo: a liberalização da economia brasileira
no governo de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, foi
muito importante, apesar de
não ter ido tão longe quanto deveria, mas tirou o Brasil da hiperinflação e da péssima situação macroeconômica em que
estava antes.
Mas essa fase acabou, agora
vamos começar uma nova, com
mais intervenção do Estado. De
novo, não é o fim do capitalismo, é só mais um ciclo da economia e da história.
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