São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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Amanhã

Estas associações são um elemento perturbador da continuidade que deve presidir ao esforço comum

Despertará festiva a capital da República.
Sobrepondo-se a data mais humana de nossa história e a qual, sob o ponto de vista filosófico, aliou melhor à evolução geral a civilização de nosso país. É bem natural, pois, que como toda a gente nos sintamos felizes, nós que certamente estamos destinados a muitas vezes comemorá-la entre os deslumbramentos do futuro.
Compreendemos, pois, toda essa alacridade feliz que, dominando todas as classes, revela-as e impulsiona-as. E como todos, como todos que pensam e que sentem, demarcaremos os minutos desse dia com o ritmo febril de nossos corações.
No entanto, considerando em torno, fixando os aprestos da cerimônia, perturba-nos a imagem a mais desoladora.
Um protesto, profundamente meditado, reflexo imaculado de algumas consciências noveis mas talvez, por isso mesmo, puras -definiu-nos uma posição singular, em meio da agitação geral.

Festas de amanhã
Sem ferir os indivíduos ou as classes, pois que as associações condenadas comportam representantes de todas elas, antes obedecendo unicamente à consideração nobilíssima de que estas associações, pelos seus destinos são -socialmente- um elemento perturbador da continuidade que deve presidir ao esforço comum e -moralmente- profundamente nocivas à alma humana, vimo-nos inopinadamente agredidos pela reprovação geral -não nos restando nem sequer o apoio dos companheiros que conosco meditam sobre os mesmos livros!...
No entanto -envolva-nos embora a atrabilis ou o humorismo de muitos- sentimo-nos admiravelmente bem, nesta posição.
Para nós a Pátria nada mais é do que a generalização da família; a par de responsabilidades e esforços maiores, temos por ela, idêntica em tudo, a veneração imaculada, que é todo o encanto dos nossos lares.
As festas nacionais, instituídas pela República, nada mais são do que a manifestação exterior deste culto e como não justificar pois que seja, para nós, um sacrilégio o desdobrarem-se sobre elas os estandartes impuros, dos que realizam nos tempos de hoje as lupercaes antigas?
Firmamos ante as consciências esta interrogação.
Não nos eximiremos, contudo, às festas de amanhã.
Deslumbrar-se-á, feliz, a capital da República; todas as classes irmanadas por um sentimento generoso, desdobrar-se-ão num longo cortejo rutilante e harmonioso e, para caracterizar melhor o tom feliz da festa, circundar-se-á com os guizos do carnaval a majestosa expansão da alma popular.
Nós festejaremos também o dia de amanhã; mas de outra maneira.
Sós, em minoria extrema, mas felizes por estarmos sós, pois que este isolamento, como o das águias, explica-se pela altitude, iremos aos túmulos dos valentes que se acolheram à história; legando-nos o impulso inicial da ascensão das nossas idéias e dos nossos sentimentos.

Produto consciente
Adaptando às condições atuais o delicadíssimo pensamento de Luiz Blanc acerca da ação maravilhosa dos mortos ilustres sobre o destino humano, saudaremos as memórias augustas de Paranhos e Ferreira de Menezes.
Cada um desses nomes é a síntese de gerações que de há muito bateram-se pela nobilitação de um povo.
Voltarmo-nos para eles, aproximarmo-nos de seus túmulos imortais, equivale a robustecerem-se em nossa alma os elementos nobilíssimos dessa extraordinária solidariedade humana, que, fixando através da história os labores de gerações, cria a evolução, a fórmula mais positiva do progresso.
Relembram-nos caracteres inquebráveis, que entregues aos embates das mais perigosas lutas, nos choques das mais poderosas paixões, delas emergiam como os diamantes, mais rígidos e fulgurantes.
Em torno de seus túmulos imortais alentaremos melhor esse imenso amor à Pátria que tem para nós, mais do que a fragilidade de uma expressão afetiva, a feição austera de um produto consciente, pois que é a sistematização brilhantíssima de todos os nossos sonhos no futuro, aliado a todos os esforços, a todas as esperanças, todos os ideais que iluminaram as grandes consciências do passado.
O batalhão acadêmico manifestar-se-á, pois -sem destoar do sentimento geral-, sob uma forma profundamente honesta e profundamente altiva.
2º tenente Euclides da Cunha


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