São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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Resposta à Confederação

Seria solução tirar um preto da fazenda, libertá-lo e convertê-lo num vagabundo e capoeira no interior da capital?

[...] Releve-nos a Confederação Abolicionista o dizermos-lhe que não pode se arrogar a única representante do abolicionismo no Brasil e que nessa matéria tem contra si graves e ponderosas acusações.
Os filósofos, os que seguem a doutrina positivista sistematicamente (e nós, que não somos membros do Apostolado Positivista e podemos dizer com toda isenção de ânimo), não se dedignam de ombrear com as classes operárias, com os desprovidos da fortuna, não só porque são os que se colocam ao seu lado para clamar contra todos os privilégios e monopólios burocráticos de nossa sociedade como tem em sua sala ao lado dos grandes, dos mais elevados fatores da civilização humana, representados por bustos e retratos de um preto, retrato que podemos afirmar não existe na sede da Confederação Abolicionista nem nas casas de seus membros; retrato do grande e ilustre preto libertador do Haiti, o primeiro entre os mártires da liberdade de sua raça -o grande Toussaint-Louverture. [...]
Quando a Confederação Abolicionista ainda não sonhava em surgir, em 1864, uma distinta brasileira, d. Nizia Floresta Brasileira Augusta, sob a inspiração do Mestre na sua obra escrita no estrangeiro, apresentava alguns remédios morais para o mal que nos maculava. Em 1865 o sr. Brandão, em Bruxelas, escrevia um opúsculo em que se dizia positivista, e combatia a monstruosa posse.
Em 1879, quando ainda os srs. Teixeira Mendes e Miguel Lemos não eram positivistas sistemáticos, em uns panfletos que então publicaram, de crítica ao imperador, o sr. Teixeira Mendes sustentou perante o direito criminal a tese de que o escravo que matasse ao seu senhor não tinha crime. Em setembro de 1880, pouco antes da fundação definitiva do Centro Positivista, os srs. Teixeira Mendes, drs. Teixeira de Souza, Anníbal Falcão, João Francisco de Souza e Generino dos Santos, assinavam um artigo que foi publicado em suplemento da "Gazeta da Tarde", de propriedade então do falecido Ferreira de Menezes de saudosa memória.

Cofres sociais
Nesse artigo não só vinha a condenação a mais enérgica a esse incalculável mal como vinha o remédio num projeto abolicionista que, se fosse executado, nossa situação econômica e social seria outra.
Daí há pouco tempo forma-se esse Centro que consagrou nas suas bases a condição de que, para ser a ele pertencente, era indispensável que o pretendente não possuísse escravos de forma nenhuma, isto é, por compra, herança, donativo ou empréstimos, e fazer a essa associação de então para cá uma propaganda ativa e incansada.
Foi nessa propaganda que resultou o considerar-se o problema, não como consistente simplesmente na libertação dos escravos, o fazer-se justiça a essa raça, mostrando que a sua libertação não era simplesmente uma questão de comiseração, para que nós lhe éramos devedores das principais afetividades do coração brasileiro, visto a raça preta africana ser muito superior em afetividade à raça branca.
Ora, a Confederação Abolicionista só se formou depois que existiam nesta capital muitas sociedades com esse fim e que se congregavam e quando já no país inteiro lavrava uma enorme opinião favorável à questão -o que não impede que muitos de seus membros fossem batalhadores de todos os tempos.
Quanto às sociedades carnavalescas, diremos que elas não fizeram benefícios à libertação dos escravos, como tais, pois que o seu fim não era esse, e sim o divertimento por meio das orgias, e, se muitos de seus membros concorreram, isso será tomado na conta em que o deve ser; e ainda mais se o dinheiro tirado para a libertação dos escravos saiu dos cofres sociais, não foi mais do que as migalhas; as sobras das orgias, porque essas sociedades, se tivessem esse espírito de filantropia e abolicionista que se lhes quer dar, preferiam empregar as centenas de contos que gastavam nas orgias em resgatar a liberdade de seus semelhantes.
Demais seria solução tirar um preto da fazenda, libertá-lo e convertê-lo num vagabundo e capoeira no interior da capital?
Queremos que nos diga a Confederação Abolicionista que diferença existe entre a prostituição nas senzalas e a prostituição nos clubes aqui no centro da cidade?
Os artistas de companhias que aqui fizeram benefícios à libertação dos escravos não o fizeram como representantes das companhias, cujo fim nunca foi a abolição, e sim como indivíduos de bons sentimentos. Isto ainda é mais uma prova de que, quer queiram, quer não, o altruísmo há de dominar as ações humanas.
Os clubes de corridas como as sociedades carnavalescas não tiveram nunca por fim a libertação dos escravos e nem como tal tomaram parte e sim como levados pelos impulsos do coração de alguns de seus membros e nem por isso deixam como aquelas de ser profundamente imorais. [...]
A Confederação Abolicionista quer fazer uma festa popular e no entanto manda convites especiais a essas sociedades e não convida especialmente o elenco popular que devia ser a nota dominante da festa; não convida os libertos para virem incorporados render homenagem aos grandes vultos da abolição. Não são as casacas e os carros ricos espalhados em profusão que fazem a popularidade e grandeza da festa. [...]

Nova exploração
Ainda mais, desculpe-nos a Confederação que lhe digamos francamente, não acreditamos em seus sentimentos abolicionistas, pois que, no dia seguinte ao da libertação dos escravos -quando o problema era mais ingente, por consistir em inocular naqueles cérebros obcecados e corações deprimidos pela mais infamante das instituições, o amor da Pátria, o amor ao trabalho e à família, as nomeações intelectuais as mais indispensáveis ao operário para incorporá-lo definitivamente na sociedade- fazia o contrário, concorria para anulá-lo, desorganizando o trabalho e tornando o braço que devia ser a seguir a tranqüilidade da família, a prosperidade da Pátria pelo trabalho profícuo e moralizado, no braço armado do sicário, que devia por em sobressalto todas as consciências e todas as famílias, concorrendo assim para uma nefanda e nova exploração dessa miserável raça, secularmente espoliada, pela criação e animação da célebre Guarda Negra.
E após tanto tempo passado vem-se com a panacéia das creches. Perguntamos que diferença há em segregar o pequeno de sua mãe para que esta alimente o filho de seu senhor e em colocá-lo na creche para que ela vá para a oficina, dar o seu esforço ao patrão? Por um e outro modo não se desorganiza a família operária?

Rio de Janeiro, 10 de maio de 1890
Saturnino Nicoláo Cardoso
N. no Rio Grande do Sul em 1858
Rua do Lavradio 139

Thomaz Cavalcanti de Albuquerque
N. no Ceará em 1855
Rua da Floresta n. 21

Euclides da Cunha
N. no Rio de Janeiro em 1867
Campo de S. Cristovão 18


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