São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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Liberdade negociada

FLÁVIO MOURA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Na historiografia brasileira, pouca atenção foi dada aos escravos que compravam a própria liberdade e aos negros que nasciam livres, e é essa a lacuna preenchida por "Escravos e Libertos no Brasil Colonial" (Civilização Brasileira, 476 págs., R$ 49,90), livro do historiador inglês A.J.R. Russell-Wood que está saindo no Brasil. Publicado há mais de 20 anos na Inglaterra e nos EUA, o livro examina a margem de negociação de que os escravos dispunham para agir segundo suas prioridades e, por extensão, a maleabilidade das leis em vigor no país. Professor na Universidade Johns Hopkins (EUA), ele apresenta, a seguir, os traços definidores desse ponto de vista.

 

Folha - Nesses 20 anos, desde a publicação de seu livro em inglês, quais foram as principais conquistas da historiografia sobre o tema?
A.J.R. Russell-Wood -
Hoje em dia, sabemos muito mais a respeito das circunstâncias em que os escravos e pessoas livres e libertos negociavam. Eles tomavam decisões e faziam escolhas com base em suas prioridades, sistemas de valores e aspirações, e não como reflexo de sistemas de valores europeus. A demografia histórica do período colonial ganhou ímpeto e os livros de batismo, casamento e óbito, os dados de censo e os registros fiscais forneceram dados muito completos sobre a população de ascendência africana.

Folha - De que maneira o estudo sobre o papel do indivíduo livre de ascendência africana contribui para a compreensão da escravidão?
Russell-Wood -
Não houve apenas uma diáspora africana para o Brasil, mas uma série delas. Por conseqüência, não havia uma população monolítica de pessoas de ascendência africana. Além disso, os afro-brasileiros -ou crioulos- faziam clara distinção entre eles e os africanos recém-desembarcados, a quem desprezavam por não saberem português e por serem ignorantes quanto aos costumes portugueses.
A presença de afro-brasileiros livres e libertos e de africanos que foram libertos fornece ao historiador diversos pontos de referência e diferentes perspectivas sobre a instituição da escravidão e sobre os escravos. Além da visão do branco proprietário, há a perspectiva do escravo que também é dono de escravos assim como do afro-brasileiro livre ou liberto que possuía escravos.

Folha - Como eles acumulavam recursos para comprar a liberdade?
Russell-Wood -
Nas zonas de mineração, muitas vezes as negras de tabuleiro não vendiam apenas alimentos, mas também seus corpos. Escravos com habilidades, tais como carpinteiros ou sapateiros, tinham vantagens sobre escravos menos qualificados. Nas zonas de mineração, escravos escondiam ouro em pó ou diamantes para comprar a liberdade ou podiam ser recompensados com a libertação ao encontrarem uma pepita grande ou um diamante.
Escravos que denunciavam seus donos por não pagamento de impostos também podiam ser libertados por ordem do governador.

Folha - Se não havia lei escrita que obrigasse os proprietários a darem liberdade ao escravo mediante pagamento, por que o faziam?
Russell-Wood -
Entendia-se que um proprietário não podia recusar uma oferta razoável. Geralmente, isso equivalia ao valor de um escravo de habilidades semelhantes e do mesmo sexo daquele que buscava libertação. Os escravos tinham direito a prestar queixa contra um dono que se recusasse a aceitar um valor justo.
Essas queixas podiam ser feitas ao governador, mas há registros de escravos que apelaram diretamente ao rei. No mais das vezes, o rei decidia em favor do escravo como prova de sua magnanimidade.

Folha - A possibilidade de negociação entre escravos e proprietários revela uma face amena da escravidão?
Russell-Wood -
Pelo contrário. Um proprietário, sabendo do desejo do escravo de se libertar do jugo da escravidão, podia negociar até o limite da crueldade.


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