São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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Considerada hoje uma nação de brancos, a Argentina teve uma significativa população negra nos séculos 18 e 19

O estereótipo no passado

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Dentre os muitos estereótipos que se produzem acerca de brasileiros e argentinos, nenhum é mais nítido do que o étnico: a Argentina -afirma-se- é um país de brancos; o Brasil, de negros ou mestiços. Eu mesmo, em entrevistas sintéticas, tenho dito, para estabelecer um contraste político e étnico, que a Argentina é um país branco do século 19.
O estereótipo é em grande medida verdadeiro, mas a grande medida deixa escapar alguma coisa: a presença da população negra na Argentina, ao longo daquele século e mesmo antes. Impulsionado pelo episódio do jogador Grafite [o jogador argentino Desábato, do Quilmes, foi preso no dia 13/4, em SP, após supostas palavras racistas contra o atacante, em jogo contra o São Paulo], fui reler o livro de George Reid Andrews, historiador americano, com o título politicamente correto de "The Afro-Argentines of Buenos Aires, 1800-1900" (The University of Wisconsin Press, 1980).
Reid conta de saída que, quando iniciou sua pesquisa em Buenos Aires, foi recebido com franco ceticismo: "Negros en Buenos Aires no hay" [negros em Buenos Aires, não há] foi a frase que lhe disseram.
De fato, do ponto de vista quantitativo, a presença negra no Rio de Janeiro é, historicamente, muito maior do que em Buenos Aires. Por exemplo, calcula-se que, por volta de 1830, os escravos constituíam cerca de 57% da população da corte. Mesmo assim, é significativo lembrar que negros ou mulatos, segundo os censos municipais de Buenos Aires, representavam algo em torno de 30% da população, entre 1780-1810.

Atritos
A partir daí, começou um gradual declínio, que acabou ganhando grande ímpeto. Em 1887, havia 425 mil habitantes brancos na cidade e apenas 8.000 habitantes negros ou mulatos. Curiosamente, as relações comerciais entre Buenos Aires e o Brasil tinham como um de seus itens a compra e venda de escravos. Dos cerca de 25 mil escravos importados que viviam em Buenos Aires no período 1742-1806, quase a metade provinha do Brasil.
Também não faltaram atritos em torno da importação de escravos para a Argentina. Em 1814, o governo revolucionário da Argentina decretou que escravos provenientes do Brasil deviam ser devolvidos a seus senhores.
A medida resultou de um protesto da ainda colônia portuguesa, no sentido de que vinha crescendo o número de escravos fugidos, na expectativa de ganhar a liberdade no Prata. Medidas desse tipo foram transitórias. Por exemplo, no curso da guerra entre os dois países, o governo argentino contratou corsários para lutar sob sua bandeira e os autorizou a vender, em Buenos Aires, mercadorias apreendidas, entre as quais se encontravam escravos.

"Escravos de ganho"
Esses escravos urbanos desempenharam funções muito semelhantes às desempenhadas pelos do Rio de Janeiro. Eram visíveis no serviço doméstico e em profissões artesanais como sapateiros, alfaiates, ferreiros. O exercício das profissões lhes dava a condição de "escravos de ganho", com maior circulação, mas obrigados a dar uma parte do rendimento do trabalho a seus senhores. No Rio e em São Paulo houve até a colocação de mulheres na prostituição, nessa modalidade.
Ao mesmo tempo, os negros tiveram um papel significativo na vida cultural de Buenos Aires, realizando, pelo menos até meados do século 19, festividades carnavalescas em que se destacava um batuque, chamado de "candombe", cujo parentesco etimológico com os nossos rituais de candomblé parece óbvio. Um dos elementos componentes dessa dança era a "ombligada", a mesma umbigada presente em danças dos negros bantos, no Brasil.
Na área militar, usualmente uma via de moderada ascensão social nas sociedades latino-americanas, militares negros combateram nas guerras em que se envolveu a Argentina.
Dizer que os soldados eram negros e os oficiais brancos é uma simplificação. Mais de uma dezena chegou aos postos de tenente-coronel e coronel, embora pareça ter havido uma regra não-escrita de que os generais não podiam ser negros. Se quisermos falar da elite política, concentrando-nos no topo, surge a figura do primeiro presidente argentino, Bernardino Rivadavia. Uma das manchas que seus inimigos políticos lhe atribuíam era de ter, supostamente, ascendentes africanos, derivando daí o apelido de "Doutor Chocolate".
A abolição da escravatura contribuiu para que a população negra, não obstante a discriminação racial, encontrasse formas de expressão própria e de auto-ajuda. Diga-se de passagem que a abolição ocorreu bem mais cedo do que no Brasil.
O tráfico se tornou ilegal em 1813 e a emancipação veio mais tarde, sendo prevista na Constituição de 1853, aplicável à Confederação Argentina, à qual Buenos Aires só se incorporou em 1861-62. Uma imprensa negra floresceu na cidade assim como várias sociedades de socorros mútuos. A mais importante e duradoura foi "La Protectora", que, fundada em 1877, ainda existia no início dos anos 30. A mais curiosa, para nós, foi a "Sociedad Protetora Brasilera".

Imigração
O declínio da presença negra em Buenos Aires foi um processo encarado com entusiasmo pela elite branca. Por exemplo, uma figura iluminista do talhe do presidente Sarmiento -promotor da educação popular- predisse que, por volta de 1900, quem quisesse saber como era uma pessoa negra teria de viajar ao Brasil.
Várias são as razões para o declínio, mas a mais importante é o enorme fluxo da imigração européia. Foi esse fenômeno que desequilibrou as proporções em Buenos Aires, favorecendo amplamente a existência de uma população branca. A miscigenação, dada a desproporção, deve ter contribuído também para o branqueamento populacional.
De qualquer forma, falar dos negros da Argentina não constitui uma atração para antiquários, mas um objeto histórico significativo. Ele demonstra, quando mais não fosse, que há muitas afinidades e diversidades entre os dois vizinhos que os pressupostos desconhecem.


Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente no Mais!.

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