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Considerada hoje uma nação de brancos, a Argentina
teve uma significativa população negra nos séculos 18 e 19
O estereótipo no passado
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Dentre os muitos estereótipos que se produzem acerca de brasileiros e argentinos, nenhum é mais nítido
do que o étnico: a Argentina -afirma-se- é um país de brancos; o
Brasil, de negros ou mestiços. Eu
mesmo, em entrevistas sintéticas, tenho dito, para estabelecer um contraste político e étnico, que a Argentina é um país branco do século 19.
O estereótipo é em grande medida
verdadeiro, mas a grande medida
deixa escapar alguma coisa: a presença da população negra na Argentina, ao longo daquele século e mesmo antes. Impulsionado pelo episódio do jogador Grafite [o jogador argentino Desábato, do Quilmes, foi
preso no dia 13/4, em SP, após supostas palavras racistas contra o atacante, em jogo contra o São Paulo],
fui reler o livro de George Reid Andrews, historiador americano, com
o título politicamente correto de
"The Afro-Argentines of Buenos Aires, 1800-1900" (The University of
Wisconsin Press, 1980).
Reid conta de saída que, quando
iniciou sua pesquisa em Buenos Aires, foi recebido com franco ceticismo: "Negros en Buenos Aires no
hay" [negros em Buenos Aires, não
há] foi a frase que lhe disseram.
De fato, do ponto de vista quantitativo, a presença negra no Rio de Janeiro é, historicamente, muito
maior do que em Buenos Aires. Por
exemplo, calcula-se que, por volta de
1830, os escravos constituíam cerca
de 57% da população da corte. Mesmo assim, é significativo lembrar
que negros ou mulatos, segundo os
censos municipais de Buenos Aires,
representavam algo em torno de
30% da população, entre 1780-1810.
Atritos
A partir daí, começou um gradual
declínio, que acabou ganhando
grande ímpeto. Em 1887, havia 425
mil habitantes brancos na cidade e
apenas 8.000 habitantes negros ou
mulatos. Curiosamente, as relações
comerciais entre Buenos Aires e o
Brasil tinham como um de seus itens
a compra e venda de escravos. Dos
cerca de 25 mil escravos importados
que viviam em Buenos Aires no período 1742-1806, quase a metade
provinha do Brasil.
Também não faltaram atritos em
torno da importação de escravos para a Argentina. Em 1814, o governo
revolucionário da Argentina decretou que escravos provenientes do
Brasil deviam ser devolvidos a seus
senhores.
A medida resultou de um protesto
da ainda colônia portuguesa, no sentido de que vinha crescendo o número de escravos fugidos, na expectativa de ganhar a liberdade no Prata. Medidas desse tipo foram transitórias. Por exemplo, no curso da
guerra entre os dois países, o governo argentino contratou corsários
para lutar sob sua bandeira e os autorizou a vender, em Buenos Aires,
mercadorias apreendidas, entre as
quais se encontravam escravos.
"Escravos de ganho"
Esses escravos urbanos desempenharam funções muito semelhantes
às desempenhadas pelos do Rio de
Janeiro. Eram visíveis no serviço doméstico e em profissões artesanais
como sapateiros, alfaiates, ferreiros.
O exercício das profissões lhes dava
a condição de "escravos de ganho",
com maior circulação, mas obrigados a dar uma parte do rendimento
do trabalho a seus senhores. No Rio
e em São Paulo houve até a colocação de mulheres na prostituição,
nessa modalidade.
Ao mesmo tempo, os negros tiveram um papel significativo na vida
cultural de Buenos Aires, realizando,
pelo menos até meados do século 19,
festividades carnavalescas em que se
destacava um batuque, chamado de
"candombe", cujo parentesco etimológico com os nossos rituais de
candomblé parece óbvio. Um dos
elementos componentes dessa dança era a "ombligada", a mesma umbigada presente em danças dos negros bantos, no Brasil.
Na área militar, usualmente uma
via de moderada ascensão social nas
sociedades latino-americanas, militares negros combateram nas guerras em que se envolveu a Argentina.
Dizer que os soldados eram negros
e os oficiais brancos é uma simplificação. Mais de uma dezena chegou
aos postos de tenente-coronel e coronel, embora pareça ter havido
uma regra não-escrita de que os generais não podiam ser negros. Se
quisermos falar da elite política, concentrando-nos no topo, surge a figura do primeiro presidente argentino,
Bernardino Rivadavia. Uma das
manchas que seus inimigos políticos
lhe atribuíam era de ter, supostamente, ascendentes africanos, derivando daí o apelido de "Doutor
Chocolate".
A abolição da escravatura contribuiu para que a população negra,
não obstante a discriminação racial,
encontrasse formas de expressão
própria e de auto-ajuda. Diga-se de
passagem que a abolição ocorreu
bem mais cedo do que no Brasil.
O tráfico se tornou ilegal em 1813 e
a emancipação veio mais tarde, sendo prevista na Constituição de 1853,
aplicável à Confederação Argentina,
à qual Buenos Aires só se incorporou em 1861-62. Uma imprensa negra floresceu na cidade assim como
várias sociedades de socorros mútuos. A mais importante e duradoura foi "La Protectora", que, fundada
em 1877, ainda existia no início dos
anos 30. A mais curiosa, para nós, foi
a "Sociedad Protetora Brasilera".
Imigração
O declínio da presença negra em
Buenos Aires foi um processo encarado com entusiasmo pela elite
branca. Por exemplo, uma figura iluminista do talhe do presidente Sarmiento -promotor da educação
popular- predisse que, por volta de
1900, quem quisesse saber como era
uma pessoa negra teria de viajar ao
Brasil.
Várias são as razões para o declínio, mas a mais importante é o enorme fluxo da imigração européia. Foi
esse fenômeno que desequilibrou as
proporções em Buenos Aires, favorecendo amplamente a existência de
uma população branca. A miscigenação, dada a desproporção, deve
ter contribuído também para o
branqueamento populacional.
De qualquer forma, falar dos negros da Argentina não constitui uma
atração para antiquários, mas um
objeto histórico significativo. Ele demonstra, quando mais não fosse,
que há muitas afinidades e diversidades entre os dois vizinhos que os
pressupostos desconhecem.
Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente no Mais!.
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