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+ Música
Clássica e um pouco chata
PARA COMBATER DECLÍNIO DO GÊNERO, LIVRO DEFENDE CONCERTOS MENOS RÍGIDOS E A INTERAÇÃO DO SOLISTA COM O PÚBLICO
TERRY TEACHOUT
Hoje se admite, de
modo geral, que a
música clássica
nos EUA está em
situação difícil e
até desesperada.
Críticos, comentaristas e administradores perceberam
alarmados que as platéias dos
concertos estão envelhecendo
constantemente e que as pessoas com menos de 50 anos
não parecem inclinadas a assistir a espetáculos de música
clássica ou a apoiar as entidades que os promovem.
Alguns apresentadores e artistas reagiram tentando modificar a honorável instituição do
recital solo, de maneira a torná-lo menos formal e mais contemporâneo.
Por exemplo, hoje os artistas
clássicos são aconselhados a falar com o público do palco, a tocar uma combinação de repertório mais amplo e mais recente e até a empregar técnicas
modernas de encenação.
Mas, como bem sabe qualquer um que acompanhe os
programas da principal sala de
concertos dos EUA [o Carnegie
Hall], poucos artistas estão seguindo esse conselho.
Com muita freqüência, os intérpretes clássicos continuam
a aparecer diante do público
vestidos de maneira mais ou
menos formal e a tocar programas de duas horas de duração,
que consistem em três ou quatro grupos de peças tiradas do
repertório padrão e arranjadas
em ordem cronológica, sem falar uma palavra em voz alta, exceto para anunciar os bis.
Populismo
O que poucas pessoas que hoje vão a concertos sabem é que
houve uma época em que os recitais clássicos eram muito diferentes -menos rígidos, mais
improvisados e, principalmente, mais populistas no tom.
Mas, assim como os estilos de
tocar dos intérpretes mudaram
com a chegada do modernismo,
mudou a maneira como se
apresentam ao público.
Essas mudanças são o tema
de um importante novo livro de
Kenneth Hamilton, intitulado
"After the Golden Age - Romantic Pianism and Modern
Performance" [Depois da Era
de Ouro - Piano Romântico e
Interpretação Moderna, Oxford University Press, 304
págs., US$ 29,95, R$ 49].
O livro de Hamilton, pianista
de concerto e professor na Universidade de Birmingham (Reino Unido), se baseia em extensa pesquisa sobre as práticas de
apresentação dos pianistas do
século 19 e início do 20, período
conhecido pelos colecionadores de discos como a "era de ouro" do piano clássico.
Na virada do século 20, um
punhado de instrumentistas
clássicos começou a fazer gravações comerciais, e uma ou
duas décadas depois a prática
havia se tornado comum entre
os intérpretes conhecidos.
A execução pianística da era
de ouro pouco se assemelhava à
maior parte do que se ouve hoje
nas salas de concerto.
Notas erradas
As principais diferenças, todas discutidas em detalhe por
Hamilton, são:
Os pianistas geralmente tratavam a partitura como um
guia para a interpretação, mais
que um conjunto definitivo de
instruções. Muitos deles acrescentavam floreios não-escritos
de diversos tipos às peças que
tocavam.
Vladimir Horowitz, o último
grande pianista clássico que tocou com essa liberdade textual,
gravou versões de obras como a
"Rapsódia Húngara nº 15" de
Liszt que se afastam da partitura de modo tão drástico que representam verdadeiras composições originais.
Os pianistas dessa era davam
maior valor ao brilho e à espontaneidade do que à execução
precisa e, conseqüentemente,
vários deles tocavam muito
mais notas erradas do que seria
considerado aceitável pelos
críticos e o público de hoje.
Os pianistas do século 19 não
apenas tocavam de modo diferente dos de hoje como o estilo
de suas apresentações públicas
também diferia, e de maneira
igualmente significativa.
O recital solo, como Hamilton nos lembra, foi inventado
por Franz Liszt em 1840. Antes
disso, os pianistas e outros instrumentistas apareciam em
concertos de "variedades" que
incluíam outros artistas.
Mesmo depois que Liszt foi
(nas palavras dele) "ilimitadamente insolente" e começou a
tocar programas que o apresentavam com exclusividade, o
concerto de variedades continuou vigente. Somente no final
do século 19 tornou-se a norma
para os pianistas apresentarem-se sós, em vez de com artistas assistentes.
Liszt, por exemplo, encorajava seus ouvintes a depositarem
sugestões por escrito em uma
urna localizada no saguão do
teatro, cujo conteúdo ele examinava no palco e escolhia
uma ou mais para tocar.
Grandes obras
Foi somente em meados do
século 19 que os pianistas de
concerto começaram a substituir as improvisações e paráfrases operísticas por obras de
grande escala de outros compositores, e muitas vezes apresentavam só alguns movimentos, e
não as obras completas.
Mas, mesmo então, a maioria
dos pianistas recheava a segunda metade de seus programas
com peças mais leves, que hoje
provavelmente seriam apresentadas como bis -se tanto.
Para apresentar um repertório tão grande e variado, os pianistas do século 19 freqüentemente não tocavam de memória, mas olhando a partitura,
prática que hoje é considerada
amadorística.
Piano pop
Quanto às platéias do século
19, elas não se importavam em
aplaudir não apenas entre movimentos, mas também para
homenagear um trecho especialmente bem tocado no meio
de uma peça. Na mesma linha,
Liszt freqüentemente cumprimentava seus ouvintes no saguão e conversava com eles entre uma peça e outra.
"Um concerto na época", diz
Hamilton, "realmente era muito mais parecido com uma
apresentação moderna de jazz
ou de música pop do que a marcha às vezes incrivelmente frígida do repertório padrão que
chamamos de recital".
Escutar as gravações feitas
por pianistas nascidos no século 19 é ser marcado por sua extrema individualidade, às vezes
chegando ao limite da total excentricidade.
É um sabor musical poderoso -que alguns ouvintes de hoje, talvez não surpreendentemente, acham exagerado. Como escrevi sobre Vladimir de
Pachmann: "Esses excessos
eram considerados normais no
século 19; de fato, foram, em
um sentido muito real, a essência do romantismo".
Esses excessos raramente
são encontrados nas salas de
concerto do século 21, onde as
platéias se sentam em (relativo) silêncio e ouvem programas
que consistem principalmente
de apresentações de clássicos,
as quais, comparadas às gravações de um Vladimir de Pachmann ou um Moriz Rosenthal,
são decididamente a favor da
sobriedade.
Mas com que objetivo? Hamilton, por exemplo, afirma ter
escrito "Depois da Era de Ouro" devido a "uma profunda irritação com a pura rotina e o tédio fúnebre de alguns recitais a
que assisti. (...) Quaisquer que
fossem as desvantagens dos
primeiros concertos românticos, geralmente eram mais informais e pareciam simplesmente muito mais divertidos,
tanto para os intérpretes quanto para o público".
É fácil simpatizar com essa
afirmação, que se choca com a
ortodoxia crítica que predominou na última metade do século 20. Aqui, por exemplo, o crítico Michael Steinberg discute
Vladimir Horowitz: "Ele concebe a interpretação não como
a reificação das idéias do compositor, mas como uma atividade essencialmente independente. (...) Horowitz ilustra o
fato de que um dom instrumental notável não é garantia
de entendimento musical".
Significativamente, o comentário de Steinberg não foi
feito em uma resenha de jornal,
mas no artigo sobre Horowitz
que escreveu para a edição de
1980 de "The New Grove Dictionary of Music and Musicians" [Novo Dicionário Grove
de Música e Músicos, obra de
referência em música erudita].
Não é necessário considerar
Horowitz um modelo de virtude interpretativa para entender a tese de Hamilton e sentir-se insatisfeito com a freqüente
mornidão do "estilo internacional" que veio a dominar a
execução clássica depois da Segunda Guerra Mundial.
De fato, em uma rebelião
parcial e bem-vinda contra a
norma prevalente, diversos jovens pianistas, incluindo Marc-André Hamelin e Stephen
Hough, hoje tocam um repertório que vai de peças de bis do
século 19 a concertos do século
21, de uma maneira que leva
em conta tanto a prática de
apresentação da era de ouro
como o estilo internacional.
Mais diversão
Poderíamos também lucrar
ao adotar uma visão mais fria
da formalidade social que continua moldando a experiência
de assistir a concertos? Mais
uma vez, Hamilton pensa que
sim. "Um pouco menos de reverência e um pouco mais de diversão não nos fariam mal hoje", escreve.
Concordo mais uma vez -até
certo ponto. Eu não gostaria de
viver em um mundo despido da
alta seriedade que permitiu a
um pianista como Artur Schnabel [1882-1951] dedicar a última parte de sua vida a tocar
apenas Mozart, Beethoven e
Schubert.
Mas também não gostaria de
ver a honorável instituição do
concerto clássico transformada
em (digamos) contrapartida intelectual dos "reality shows".
Ao mesmo tempo, porém, eu
não gostaria de viver em um
mundo musical que consistisse
somente em Schnabels. É possível admirar Schnabel e Horowitz, Dinu Lipatti e Rosenthal,
Murray Perahia e Glenn Gould.
Os que pensam de outro modo correm o risco de serem vítimas do convencionalismo que
anestesia a alma e exaure a vida
da arte.
TERRY TEACHOUT é crítico de música da "Commentary", onde a íntegra deste texto foi publicada, e crítico de teatro do "Wall Street Journal". Conclui uma biografia de Louis Armstrong.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
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