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BRASIL 500 D.C.
Reivindicações regionais foram fenômeno dos últimos anos da monarquia
Bairrismo no Império
EVALDO CABRAL DE MELLO
especial para a Folha
Na história do Império, o aparecimento de reivindicações provinciais e regionais de natureza
econômica constituiu um fenômeno dos derradeiros decênios
do regime. Isso teve a ver, em primeiro lugar, com a mutação ocorrida nos próprios objetivos perseguidos pelo governo central. Até
os anos 50, fase que José Murilo
de Carvalho caracterizou como a
de "acumulação primitiva do poder", os gastos públicos responderam sobretudo ao propósito de
organizar o aparelho do Estado e
garantir um módico controle sobre o território brasileiro, na esteira da repressão dos levantes da
Regência e dos primeiros anos do
Segundo Reinado.
A partir dos 50, excetuados os
anos da Guerra do Paraguai, o papel do Estado passou a ser crescentemente o de fomento das atividades produtivas mediante investimentos de infra-estrutura,
especialmente em portos e caminhos de ferro. Ademais, tratou-se
de algo relacionado à transformação dos grupos dirigentes do Império e à crescente diluição da sua
homogeneidade inicial, processo
também descrito por José Murilo
como sendo a passagem do predomínio dos magistrados para o
dos profissionais liberais. As diferenças de formação e de profissão
entre ambos os grupos condicionaram sua atuação política, pois,
ao passo que o magistrado tendia
a ser míope para os interesses setoriais, sob a fascinação da generalidade, do formalismo e da impessoalidade da regra jurídica e
da ordem institucional de que ela
deriva, o advogado era preeminentemente o procurador desses
interesses diante do e, eventualmente, contra o Estado.
Nesse particular, como em tantos aspectos da política imperial, a
Conciliação representou o ponto
de inflexão. Ao promover a transação entre os partidos, ela permitiu a acomodação das influências
provinciais, integrando as oligarquias nortistas ao jogo do poder,
o que não se verificara durante o
primeiro decênio do Segundo
Reinado, nem, a fortiori, durante
o Primeiro Império.
De 1840 a 1843, malgrado o papel desempenhado nas combinações ministeriais pelos pernambucanos Holanda Cavalcanti e
Araújo Lima ou pelo baiano Alves
Branco, a luta política girara em
torno da corte e do Rio, polarizados entre os "áulicos" e os "saquaremas", que só recorriam às influências das outras províncias
para reforçar suas próprias posições, reservando-lhes, por conseguinte, papéis subsidiários. Dada
a natureza inautêntica do nosso
sistema representativo, as reivindicações regionais visavam sobretudo ao rateio dos cargos ministeriais.
Martinho Campos, que foi um
ator perspicaz da política imperial, datava do gabinete Paraná a
tendência de as grandes províncias fazerem-se sistematicamente
representar nas composições ministeriais. "Na maior parte da minha vida (recordava em 1881), não
vi exigida esta necessidade, esta
obrigação de meter no ministério
por força deputado de uma certa e
determinada província. (...) Não
sabia-se no Brasil de que província eram Paraná, Olinda, Montealegre, Vasconcelos, Uruguai, Itaboraí, Paula Souza, Alves Branco
e tantos outros."
Contudo, a despeito da integração política das oligarquias regionais, a concepção unitária do Império continuou a operar no sentido de inibir a representação dos
interesses econômicos. As influências provinciais eram apenas
parte da fachada representativa e
como tal eram toleradas. Só em
raras ocasiões a oposição de uma
grande bancada revelou-se fatal
às ambições de um candidato a
presidente do Conselho que tivesse a preferência de São Cristóvão,
como aconteceu na primeira tentativa do visconde de Paranaguá
de formar gabinete, devido à impossibilidade de conseguir os votos da deputação baiana.
Via de regra, o aspirante bafejado pelo imperador não tinha dificuldade em recrutar duas ou três
bancadas importantes, a que se
agregavam as deputações de províncias satélites ou mesmo as dissidências das bancadas que permaneciam hostis. A despeito de
toda a sua importância, Rio, Minas e São Paulo não puderam evitar que D. Pedro 2º designasse Rio
Branco para fazer a reforma do
Ventre Livre e que este, graças à
Bahia e Pernambuco, governasse
sem as deputações das províncias
cafeeiras e, no caso da lei do Ventre Livre, até contra elas.
Reivindicar abertamente interesses regionais ou provinciais era
um comportamento que raiava à
obscenidade e que podia comprometer as ambições de carreira. O
político da monarquia timbrava,
por conseguinte, em projetar a
imagem de estadista nacional,
pairando acima do que pejorativamente era designado por "bairrismo", para em teoria só enxergar os interesses superiores do
país. Um trecho de discurso do
futuro visconde de Ouro Preto
ilustra muito bem a hipocrisia dominante a respeito. Após confessar que sempre escutava "com
muito desgosto" falar-se em interesses particulares do norte e do
sul, algo "inconvenientíssimo",
que só servia para "despertar
idéias que felizmente não existem,
nem devem existir", Afonso Celso
protestava desconhecer "onde começa o norte, nem onde acaba o
sul; só conheço o Império", que
era "a pátria comum". Quando as
motivações locais agiam sobre o
ânimo dos políticos do Império,
elas eram, via de regra, de natureza clientelística, só excepcionalmente tendo a ver com objetivos
de política econômica, como concluiu Richard Graham do exame
da sua correspondência.
Desse pudor unitário para inglês ver, só escaparam, a bem dizer, o barão de Cotegipe, dos raros ou raríssimos políticos da monarquia a serem tachados do pecado capital do "bairrismo"; e os
gaúchos, cujo comportamento
era por isso mesmo alvo frequente das críticas. Cotegipe foi mesmo acusado de prejudicar ativamente os interesses econômicos
de províncias do sul. Marginalizados das combinações ministeriais
até os anos 70, eles não estavam
inibidos pelos valores centralistas,
graças ao que demonstraram
uma eficácia especial em obter investimentos do governo imperial,
explorando a fundo a posição estratégica da província e as preocupações de segurança no Prata.
A pretexto do combate ao contrabando, obtiveram a tarifa especial no tempo do ministério Sinimbu. Havendo conseguido do
gabinete Rio Branco duas ferrovias com o argumento da sua utilidade estratégica em caso de nova guerra, alegaram posteriormente que elas haviam incrementado a dependência da província
relativamente aos mercados platinos, com o que arrancaram verbas para a construção do porto de
Rio Grande. Ministro da Agricultura do gabinete Paranaguá, Henrique d'Ávila conseguiu encetar a
estrada de ferro de Santa Catarina
a Porto Alegre, a desobstrução da
barra do Rio Grande e do rio Jaguarão e os estudos para a navegação na lagoa dos Patos. Sob este
aspecto, os gaúchos anteciparam,
muito mais do que seus contemporâneos paulistas ou mineiros, a
mentalidade estadualista da República Velha, indício importante
do seu limitado grau de assimilação do "ethos" político do Brasil
imperial. Donde a impressão que
dá muitas vezes a política gaúcha
de constituir um corpo estranho
no conjunto da política monárquica.
Evaldo Cabral de Mello é historiador e diplomata aposentado. É autor, entre outros, de "Rubro Veio", "Olinda Restaurada" e "O
Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos
e o Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
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