São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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Para a ensaísta dos EUA, que acaba de lançar o livro "Guerra contra os Garotos", uma espécie equivocada de feminismo está levando os jovens a renunciarem à sua masculinidade
Sexo e gênero à moda americana

por Jurandir Freire Costa
Christina Hoff Sommers é professora de filosofia e trabalha no American Enterprise Institute de Washington. Escreveu um livro crítico sobre o feminismo e volta a abordar o tema em seu último estudo, "War against Boys - How Misguided Feminism Is Harming Our Young Men" (Guerra contra os Garotos - Como o Feminismo Mal Dirigido Está Ferindo os Nossos Rapazes). A guerra em questão é movida contra os meninos americanos pelas feministas equivocadas e pelos psiquiatras partidários da ideologia da "crise". Os "escritores da crise", diz Sommers, costumam ver distúrbios psíquicos, desorientação pessoal, baixa da auto-estima, perda de ideais e outras mazelas onde nada disso existe. A suposta "crise" dos jovens é uma criação dos ideólogos do "politicamente correto". Para as feministas equivocadas, qualquer desconforto emocional apresentado por garotas adolescentes é uma prova da opressão dos machos sobre as fêmeas; para seus aliados intelectuais, os psiquiatras, qualquer passo em falso dos garotos é mais um sinal da deformação machista que lhes foi imposta. Dadas as premissas, seguem-se as conclusões. O modo como os meninos aprendem a se tornar homens adultos carrega os vícios das origens. Ser homem e ser violento se tornaram, historicamente, uma só e mesma coisa. Donde o remédio: levar os meninos a renunciar aos padrões constitutivos da identidade masculina. Na prática, isso significa, por exemplo, habituá-los a brincar com bonecas, a beijar e a acariciar os brinquedos, em vez de arrebentá-los nas lutas simuladas de machos contra machos etc. Ou, então, reprimi-los, tão logo surjam signos precoces de tendências a assédio sexual. É o caso de meninos de 3, 6, 9 e 11 anos de idade levados a tribunais ou a consultórios psicológicos em escolas primárias ou maternais por exibirem condutas de futuros agressores sexuais de meninas. A autora se horroriza com essa lavagem cerebral pouco democrática. Para ela, a maior parte dos problemas manifestados pelas crianças nada tem a ver com gênero ou sexo, e sim com a ausência de autoridade dos adultos. Em vez de atormentar e intimidar os garotos, fazendo-os crer que sua masculinidade é sinônimo de maldade ou truculência, deve-se ajudar os pais e os educadores a recuperar a autoridade moral perdida. As crianças, dessa forma, poderiam seguir as inclinações "naturais" de cada sexo, aprendendo, ao mesmo tempo, a respeitar a integridade físico-moral do outro. Em suma, jogue-se fora o palavreado vazio e terrorista da "desconstrução" dos gêneros e restabeleça-se a moralidade dos "bons e velhos tempos".

Agora é minha vez
Deixo de lado os exageros próprios a quem defende posições intelectuais polêmicas. Feita a ressalva, o livro seria mais um produto editorial no estilo "agora é minha vez", não fosse seu traço saliente de sintoma cultural. A autora, ao mostrar que o jargão teórico-político do "sexo e gênero" vem descambando para a grosseria ideológica, aponta para um real problema ético de nossos tempos. Ao propor, contudo, o repúdio ao etos do "femininamente correto", em favor do retorno à "era Doris Day", troca seis por meia dúzia, o que não é lá grande negócio.
A seu ver, o problema da sociedade americana é devolver aos adultos a autoridade moral que lhes foi usurpada. Parece esquecer, no entanto, que autoridade é um bem simbólico que não se restaura com um estalar de dedos. Autoridade só existe apoiada em instituições com o poder de premiar, punir, incentivar, inibir e, por fim, definir quais comportamentos são desejáveis ou reprováveis. Querer conferir autoridade aos adultos de hoje, com histórias de caubóis ou de "tipos inesquecíveis", é uma idéia, no mínimo, anacrônica. Passamos do tempo em que heroísmo contava ponto. No presente, ninguém precisa copiar heróis para se tornar um esperto comerciante.
Sexo e gênero não ocuparam, de graça, o lugar antes monopolizado pelo quarteto família, pátria, trabalho e religião. Se as "feministas equivocadas" e os "psiquiatras patrulhados" se agarram ao vocabulário do "sexo e gênero" é porque não vêem outra saída para os conflitos das identidades pessoais no horizonte da cultura.
Uma coisa parece inelutável na condição humana. Pertencer a um grupo é a exigência "sine qua non" para que nos tornemos sujeitos morais. O grupo, além do mais, deve ser suficientemente sólido e durável para dizer "o que devemos ser" e "por que vale a pena viver!". Identidade pessoal privada, no sentido semântico ou epistêmico, é uma ficção emocionalmente inviável. Ou temos acesso a algo além de cada um de nós, que dê sentido ao que somos ou podemos ser, ou não seremos! Somos o que o outro confirma que somos.

O outro que restou e está à mão
Na falta da religião, da família, do amor ao país, ao trabalho ou ao destino das próximas gerações, estamos institucionalizando o outro que restou e está à mão. O sexo, no imaginário moderno, veio a substituir os antigos laços naturais de sangue, e o gênero, os laços culturais de aliança. O interesse por esses assuntos voltado, de início, para o ideal de igualdade e justiça, pouco a pouco se tornou a vitrine publicitária das "virtudes cívicas" do liberalismo econômico "fin de siècle". A globalização econômica e o modo consumista de viver não precisam de famílias imaculadas e trabalhadores contritos para manterem a máquina do lucro azeitada. Bastam "indivíduos" devotados ao "direito" ao prazer, ao sucesso midiático, ao dinheiro e à forma física. Não será, portanto, a velha ética dos deveres, com seus imperativos e obrigações grisalhas, que reabilitará a autoridade de pais e professores.

Consolo e compromisso
Descrever o sujeito como a expressão mental e moral de seu sexo, corpo ou gênero é, para muitos, um consolo e um compromisso. Consolo porque abandonamos os riscos das escolhas éticas, ao deixar que a "natureza sexual" dite os rumos de nossas felicidades; compromisso porque tornar a "diferença de gêneros" uma norma de construção de identidades significa abrigar os órfãos da tradição e reforçar a imagem do sujeito como "apêndice mental" de vísceras, glândulas, metabolismos, circuitos neurais, aparências corporais ou cálculos estatísticos de longevidade. É o sonho da irresponsabilidade tornado realidade. A ideologia do sexo e gênero "made in USA" garante a posse da identidade com tranquilidade, o sentido da vida sem inquietação e o conformismo com gosto de "revolução".
No Brasil, ainda não chegamos a tanto. Esperemos, assim, que os intelectuais sensíveis à desigualdade entre gêneros e sexos contradigam, dessa vez, o triste cacoete de nossa história cultural: imitar, de forma estúpida, o que os americanos têm de pior, para não pagar o preço do que eles inventaram de melhor.


Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ambos da Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 501 d.C.".



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