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Pesquisadora
desmonta, em
"O Mito da Pré-História
Matriarcal", a idéia
de que teria havido
no passado um período
de dominação
feminina
Um mundo das mulheres
por Natalie Angier
Recentemente me convenci da utilidade do mito
de Papai Noel. Não que eu acredite que a história
acrescente muita magia à vida de minha filha de
quatro anos, mas porque, na medida em que lhe
oferece um forte incentivo para se comportar, acrescenta magia à minha. Juízo, garotinha -senão você só vai
ganhar meias e calcinhas, nada mais!
A acreditar nas evidências fornecidas pela arqueologia e a antropologia, a possibilidade de alguma vez já ter
existido no mundo um verdadeiro matriarcado -uma
sociedade efetivamente regida por mulheres- é mais
ou menos equivalente à de que um sujeito obeso usando pijama vermelho consiga entregar presentes a 2 bilhões de crianças em uma só noite.
No entanto, apesar das evidências consideráveis que
contradizem a hipótese de que tenha existido uma ginecocracia antediluviana e da ausência gritante de evidências que a sustentem, muitas pessoas, segundo Cynthia
Eller, continuam a defendê-la.
Como expõe a autora no fascinante, embora com frequência deprimente, "The Myth of Matriarchal Prehistory" (O Mito da Pré-História Matriarcal), uma parcela
considerável das feministas se convenceu de que a hegemonia masculina é um fenômeno relativamente recente e que, antes de o patriarcado arrebatar o planeta
em suas garras sanguinolentas, as mulheres eram membros respeitados de suas tribos, iguais ou mesmo superiores aos homens em status e influência, reverenciadas
por sua capacidade de dar à luz e alimentar as crianças e
por seu estado inato de ligação -umas com as outras,
com a terra e com os homens, que toleravam com afeto,
mas com certa condescendência.
Uma história desse tipo, tomada isoladamente, poderia não ser má coisa. Como já sugeriu Sarah Blaffer
Ardy, ao ajudar a combater a idéia de que o domínio
masculino é inevitável e apontar maneiras pelas quais o
patriarcado foi moldado por fatores culturais, mais do
que biológicos, o mito do matriarcado pré-histórico pode nos inspirar a buscar um equilíbrio mais justo. Mas,
para Eller, que já escreveu livros sobre o movimento espiritual feminino e objetores de consciência na Segunda
Guerra Mundial, as versões feministas atualmente em
voga não são úteis nem benéficas.
Insuportáveis e sufocantes
Para começo de conversa, observa a autora, a maioria dos defensores do argumento do matriarcado o vê não como conto de fadas
que objetiva devolver poder às mulheres, mas como relato verídico de nosso passado. Outro problema é que
ela faz objeções aos elementos-chave da hipótese, coisas
que eu, também, considero insuportáveis e tão sufocantes quanto qualquer versão patriarcal da essência do feminino.
Na visão das matriarcalistas, o paraíso perdido do poder feminino era um paraíso porque as mulheres são
maravilhosas. Quem precisava da curadoria da natureza, quando quem reinava eram mães? Eller cita a lista
traçada por Jane Alpert das qualidades supostamente
inatas a quem dá à luz, incluindo "empatia, intuição,
adaptabilidade, consciência do crescimento como processo e não como algo que objetiva uma meta, criatividade, sentimentos protetores em relação aos outros e
capacidade de reagir emocionalmente, além de racionalmente". A leitura de tais louvores às qualidades bondosas do ser mulher nos leva a pensar com saudades em
Joyce Carol Oates e seu resmungo brilhante, "como
posso viver minha vida sem cometer um ato com uma
tesoura gigantesca?".
Eller descreve até que ponto a cultura popular e até
mesmo a acadêmica já foram contaminadas pelo mito.
Especialistas lideram peregrinações repletas a locais em
que acreditam que tenham florescido o matriarcado e
suas culturas dominadas por deusas, entre eles Malta,
Creta, Irlanda e Turquia. Universidades oferecem cursos com títulos como "Reivindicando a Deusa" e "A Polêmica da Deusa e do Matriarcado".
O mito da pré-história matriarcal não é novo e nem
sempre é apenas propaganda dirigida às mulheres.
Muitas culturas tradicionais falam em épocas distantes
no passado em que mulheres reinavam -e reinavam
mal. O matriarcado foi transformado de relato literário
e cautelar em suposta história em 1861, com "Das Mutterrecht" (Direito Materno), do antropólogo Johann Jakob Bachofen (1815-1887). Baseando-se em fontes gregas clássicas, Eller escreve: "Bachofen postulou uma era
de matriarcado que teria chegado ao fim na era clássica,
com a ascensão dos homens e do chamado "princípio
masculino'". Um século mais tarde, animadas com as
pesquisas e teorias de alguns acadêmicos, especialmente da arqueóloga Marija Gimbutas, as feministas começaram a traçar uma linha do tempo aproximada.
Os detalhes geralmente são vagos, mas o que se supõe
é que as sociedades humanas tenham começado matricêntricas, focalizadas na primazia de mães e filhos. Os
homens estavam presentes e eram bem-vindos, é claro,
mas não se preocupavam com a virgindade ou castidade das mulheres porque ignoravam o papel desempenhado pelos pais na reprodução.
Os matriarcalistas devotam especial atenção à Europa
no período Paleolítico Superior, começando há cerca de
40 mil anos, "quando, de repente, aparecem resquícios
arqueológicos muito mais extensos, incluindo imagens
esculpidas e pintadas de mulheres". Na era Neolítica,
mais ou menos entre 8.000 e 4.000 anos atrás -após o
desenvolvimento da agricultura, mas antes do aperfeiçoamento da metalurgia-, consta que a cultura matriarcal estaria em plena glória. Mas foi nesse momento
que a catástrofe a atingiu.
Códigos do patriarcado
Nômades saqueadores
vindos das estepes russas, um povo ao qual Gimbutas
deu o nome de "kurgans", começaram a invadir as terras vizinhas, levando com eles códigos violentos de patriarcado e destruindo ou expulsando as matriarcalistas, mais pacíficas. Em 3000 a.C. tudo já estava acabado
para as ginecocratas. As mulheres tinham sido subordinadas, e até mesmo suas imagens de deusas tinham sido
substituídas por um único, poderoso e másculo Yahweh. Na segunda metade de seu livro, Eller cuidadosamente recorta cada fio do qual é tecido esse mito matriarcal. As imagens de deusas das quais tanto se orgulham as feministas que defendem a idéia do matriarcado? Basta olhar para a Grécia antiga: Hera, Atenas e outras deusas estão por toda a parte, mas as mulheres
eram virtuais escravas em suas próprias casas. Todas as
imagens pré-históricas que evocam barrigas grávidas e
genitália feminina e que adornam locais como Catalhoyuk, o mais santo dos santuários das matriarcalistas?
Como nuvens, essas esculturas e abstrações podem
assemelhar-se a qualquer coisa que o espectador queira
enxergar nelas. A ignorância dos homens pré-históricos? Segundo Eller, o que vem sendo questionado durante toda a história é o papel da mãe na reprodução.
A idéia muitas vezes dominante é de que os homens
plantam a semente, enquanto as mulheres meramente
atuam como o campo no qual cresce a semente -o homúnculo.
Eller é uma feminista engajada e inflexível, e sua análise ampla da universalidade da hegemonia masculina
não tem nada de sentimental e é potencialmente desanimadora. Mas ela se recusa a cair no pessimismo. Chama a atenção para o fato de que todos os estudos das diferenças sexuais sempre mostraram que a sobreposição
entre os sexos é enorme e as diferenças genuínas pequenas demais para nos limitarem para sempre. E, sugere,
um futuro que ofereça visibilidade, poder e status maior
às mulheres será um lugar melhor para todos nós
-não porque as mulheres sejam mais simpáticas ou
menos destrutivas do que os homens, mas porque esse
futuro é justo.
Natalie Angier escreve sobre ciências no "The New York Times". Seu
livro mais recente é "Mulher" (Editora Rocco). O texto acima apareceu
originalmente no "The New York Times Book Review".
Tradução de Clara Allain.
Onde encomendar:
The Myth of Matriarchal Prehistory (Beacon Press), de
Cynthia Eller, e os demais livros citados nesta edição podem ser
encomendados, em São Paulo, na Livraria Cultura (av. Paulista,
2.073, tel. 0/xx/ 11/285-4033) e, no Rio de Janeiro, na Livraria
Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel. 0/ xx/21/ 294-5994). Na Internet:
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