São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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Pesquisadora desmonta, em "O Mito da Pré-História Matriarcal", a idéia de que teria havido no passado um período de dominação feminina
Um mundo das mulheres

por Natalie Angier

Recentemente me convenci da utilidade do mito de Papai Noel. Não que eu acredite que a história acrescente muita magia à vida de minha filha de quatro anos, mas porque, na medida em que lhe oferece um forte incentivo para se comportar, acrescenta magia à minha. Juízo, garotinha -senão você só vai ganhar meias e calcinhas, nada mais! A acreditar nas evidências fornecidas pela arqueologia e a antropologia, a possibilidade de alguma vez já ter existido no mundo um verdadeiro matriarcado -uma sociedade efetivamente regida por mulheres- é mais ou menos equivalente à de que um sujeito obeso usando pijama vermelho consiga entregar presentes a 2 bilhões de crianças em uma só noite. No entanto, apesar das evidências consideráveis que contradizem a hipótese de que tenha existido uma ginecocracia antediluviana e da ausência gritante de evidências que a sustentem, muitas pessoas, segundo Cynthia Eller, continuam a defendê-la. Como expõe a autora no fascinante, embora com frequência deprimente, "The Myth of Matriarchal Prehistory" (O Mito da Pré-História Matriarcal), uma parcela considerável das feministas se convenceu de que a hegemonia masculina é um fenômeno relativamente recente e que, antes de o patriarcado arrebatar o planeta em suas garras sanguinolentas, as mulheres eram membros respeitados de suas tribos, iguais ou mesmo superiores aos homens em status e influência, reverenciadas por sua capacidade de dar à luz e alimentar as crianças e por seu estado inato de ligação -umas com as outras, com a terra e com os homens, que toleravam com afeto, mas com certa condescendência. Uma história desse tipo, tomada isoladamente, poderia não ser má coisa. Como já sugeriu Sarah Blaffer Ardy, ao ajudar a combater a idéia de que o domínio masculino é inevitável e apontar maneiras pelas quais o patriarcado foi moldado por fatores culturais, mais do que biológicos, o mito do matriarcado pré-histórico pode nos inspirar a buscar um equilíbrio mais justo. Mas, para Eller, que já escreveu livros sobre o movimento espiritual feminino e objetores de consciência na Segunda Guerra Mundial, as versões feministas atualmente em voga não são úteis nem benéficas.

Insuportáveis e sufocantes
Para começo de conversa, observa a autora, a maioria dos defensores do argumento do matriarcado o vê não como conto de fadas que objetiva devolver poder às mulheres, mas como relato verídico de nosso passado. Outro problema é que ela faz objeções aos elementos-chave da hipótese, coisas que eu, também, considero insuportáveis e tão sufocantes quanto qualquer versão patriarcal da essência do feminino.
Na visão das matriarcalistas, o paraíso perdido do poder feminino era um paraíso porque as mulheres são maravilhosas. Quem precisava da curadoria da natureza, quando quem reinava eram mães? Eller cita a lista traçada por Jane Alpert das qualidades supostamente inatas a quem dá à luz, incluindo "empatia, intuição, adaptabilidade, consciência do crescimento como processo e não como algo que objetiva uma meta, criatividade, sentimentos protetores em relação aos outros e capacidade de reagir emocionalmente, além de racionalmente". A leitura de tais louvores às qualidades bondosas do ser mulher nos leva a pensar com saudades em Joyce Carol Oates e seu resmungo brilhante, "como posso viver minha vida sem cometer um ato com uma tesoura gigantesca?".
Eller descreve até que ponto a cultura popular e até mesmo a acadêmica já foram contaminadas pelo mito. Especialistas lideram peregrinações repletas a locais em que acreditam que tenham florescido o matriarcado e suas culturas dominadas por deusas, entre eles Malta, Creta, Irlanda e Turquia. Universidades oferecem cursos com títulos como "Reivindicando a Deusa" e "A Polêmica da Deusa e do Matriarcado".
O mito da pré-história matriarcal não é novo e nem sempre é apenas propaganda dirigida às mulheres. Muitas culturas tradicionais falam em épocas distantes no passado em que mulheres reinavam -e reinavam mal. O matriarcado foi transformado de relato literário e cautelar em suposta história em 1861, com "Das Mutterrecht" (Direito Materno), do antropólogo Johann Jakob Bachofen (1815-1887). Baseando-se em fontes gregas clássicas, Eller escreve: "Bachofen postulou uma era de matriarcado que teria chegado ao fim na era clássica, com a ascensão dos homens e do chamado "princípio masculino'". Um século mais tarde, animadas com as pesquisas e teorias de alguns acadêmicos, especialmente da arqueóloga Marija Gimbutas, as feministas começaram a traçar uma linha do tempo aproximada.
Os detalhes geralmente são vagos, mas o que se supõe é que as sociedades humanas tenham começado matricêntricas, focalizadas na primazia de mães e filhos. Os homens estavam presentes e eram bem-vindos, é claro, mas não se preocupavam com a virgindade ou castidade das mulheres porque ignoravam o papel desempenhado pelos pais na reprodução.
Os matriarcalistas devotam especial atenção à Europa no período Paleolítico Superior, começando há cerca de 40 mil anos, "quando, de repente, aparecem resquícios arqueológicos muito mais extensos, incluindo imagens esculpidas e pintadas de mulheres". Na era Neolítica, mais ou menos entre 8.000 e 4.000 anos atrás -após o desenvolvimento da agricultura, mas antes do aperfeiçoamento da metalurgia-, consta que a cultura matriarcal estaria em plena glória. Mas foi nesse momento que a catástrofe a atingiu.

Códigos do patriarcado
Nômades saqueadores vindos das estepes russas, um povo ao qual Gimbutas deu o nome de "kurgans", começaram a invadir as terras vizinhas, levando com eles códigos violentos de patriarcado e destruindo ou expulsando as matriarcalistas, mais pacíficas. Em 3000 a.C. tudo já estava acabado para as ginecocratas. As mulheres tinham sido subordinadas, e até mesmo suas imagens de deusas tinham sido substituídas por um único, poderoso e másculo Yahweh. Na segunda metade de seu livro, Eller cuidadosamente recorta cada fio do qual é tecido esse mito matriarcal. As imagens de deusas das quais tanto se orgulham as feministas que defendem a idéia do matriarcado? Basta olhar para a Grécia antiga: Hera, Atenas e outras deusas estão por toda a parte, mas as mulheres eram virtuais escravas em suas próprias casas. Todas as imagens pré-históricas que evocam barrigas grávidas e genitália feminina e que adornam locais como Catalhoyuk, o mais santo dos santuários das matriarcalistas?
Como nuvens, essas esculturas e abstrações podem assemelhar-se a qualquer coisa que o espectador queira enxergar nelas. A ignorância dos homens pré-históricos? Segundo Eller, o que vem sendo questionado durante toda a história é o papel da mãe na reprodução.
A idéia muitas vezes dominante é de que os homens plantam a semente, enquanto as mulheres meramente atuam como o campo no qual cresce a semente -o homúnculo.
Eller é uma feminista engajada e inflexível, e sua análise ampla da universalidade da hegemonia masculina não tem nada de sentimental e é potencialmente desanimadora. Mas ela se recusa a cair no pessimismo. Chama a atenção para o fato de que todos os estudos das diferenças sexuais sempre mostraram que a sobreposição entre os sexos é enorme e as diferenças genuínas pequenas demais para nos limitarem para sempre. E, sugere, um futuro que ofereça visibilidade, poder e status maior às mulheres será um lugar melhor para todos nós -não porque as mulheres sejam mais simpáticas ou menos destrutivas do que os homens, mas porque esse futuro é justo.


Natalie Angier escreve sobre ciências no "The New York Times". Seu livro mais recente é "Mulher" (Editora Rocco). O texto acima apareceu originalmente no "The New York Times Book Review".
Tradução de Clara Allain.

Onde encomendar:
The Myth of Matriarchal Prehistory (Beacon Press), de Cynthia Eller, e os demais livros citados nesta edição podem ser encomendados, em São Paulo, na Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 0/xx/ 11/285-4033) e, no Rio de Janeiro, na Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel. 0/ xx/21/ 294-5994). Na Internet:
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