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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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O autor no divã

Aconselho de amigos, Franz Kafka decidiu buscar uma resposta para suas inquietações naquela nova ciência, a psicanálise. Para isso, teria de viajar -psicanalistas eram raros na Praga de então-, mas, ainda segundo os amigos, o esforço valeria a pena.
Foi. O psicanalista recebeu-o, pediu que deitasse no divã e que falasse qualquer coisa que lhe viesse à cabeça. Minutos se passaram, vários minutos. Nada ocorria a Kafka e ele, cansado após a longa viagem de trem, acabou adormecendo.
E aí sonhou. Sonhou que se tinha transformado num monstruoso inseto, uma criatura repulsiva que subia pelas paredes e que era olhada por todos com estranheza e nojo. Acordou trêmulo, assustado e excitado a um tempo; tão assustado e tão excitado, que só depois de alguns momentos lembrou onde estava. Ocorreu-lhe então contar o sonho. Chegou a formular a frase em sua mente -como o advogado que se prepara para apresentar um caso-, mas, enquanto fazia isso, a frase, a própria frase, experimentou um processo de metamorfose. Ele já não diria algo como "Sonhei que tinha me transformado num monstruoso inseto". As palavras que agora lhe ocorriam, como se sussurradas por imperiosa voz interior, eram: "Quando Gregor Samsa acordou de agitado sono naquela manhã viu-se, em sua cama, transformado num monstruoso inseto".
Estas palavras não podiam ser ditas ao psicanalista. Não porque fossem inadequadas; na psicanálise, Kafka disso sabia, nada é inadequado, tudo é relevante. Mas ele já não sentia necessidade de falar. Nem mesmo de estar ali. Levantou-se, pois, para dizer ao psicanalista que estava concluindo o tratamento e que iria embora.
Isso não foi possível: sentado em sua poltrona, Sigmund Freud dormia a sono solto. Kafka ainda se perguntou se ele não estaria sonhando com monstruosos insetos; mas essa pergunta agora era inútil. Como inútil (ainda que transcendente) teria sido perguntar a Gregor Samsa quais haviam sido seus sonhos durante o agitado sono.


Moacyr Scliar é autor, entre outros, de "Os Leopardos de Kafka" (Companhia das Letras).


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